Amber #78 - A estranha garota dos olhos cor-de-mel.
Anastazja corria entre as árvores desesperada. Nem ela mais sabia pra onde estava indo. Apenas sabia que devia ir rápido para algum lugar, qualquer que fosse, o mais rápido que pudesse, para buscar ajuda. Na sua cabeça um turbilhão de coisas estava passando, e tinha medo de que o pior acontecesse com Alice, Liesl e Kovač. Não conseguia mais prestar atenção em nada, tinha medo que estivesse correndo em círculos, ou que eventualmente um animal selvagem a encontraria. Não tinha tempo pra pensar nisso, apenas devia seguir em frente e buscar ajuda o mais rápido possível!
Tomada pelo desespero não conseguiu perceber que havia uma pedra cheia de musgo na sua frente, ao pisar acabou escorregando e caindo de cara no chão, aos pés de uma árvore que ali estava. Ao se levantar, viu que seu nariz estava sangrando com a pancada. Soltou um novo grito de dor ao dar um passo e ver que o ferimento da sua perna, que havia acontecido enquanto escapava de Varsóvia, havia aberto.
Correndo mancando Anastazja não via nenhuma esperança na sua frente, até chegar numa trilha, que parecia uma estrada de terra. Devia decidir logo pra que lugar ir, e ao virar pra sua esquerda ouviu uma voz vindo detrás dela.
“Ei, esse lado é pra Varsóvia. Se eu fosse você não iria por aí”.
Ao se virar Anastazja viu uma menina. Ela devia ter dez anos, ou menos. Tinha um cabelo castanho claro todo encaracolado, pele branca e rosto bem fino. Vestia uma roupa infantil, que parecia que já havia visto dias melhores, pois não parecia estar muito limpa e estava em péssimo estado. Tinha buracos e muita sujeira. Ele falava um alemão com muito sotaque.
Ela estava sentada de joelhos, e estava comendo um pedaço de bolo. Sua boca estava completamente suja, e suas mãos também. Parecia ser uma criança de rua ou algo do gênero.
“Ah, dá licença menina. Eu preciso ir buscar ajuda”, disse Anastazja, virando pro outro lado da estrada e andando a passos rápidos, soltando gemidos de dor, mancando.
Ao se aproximar da menina, Anastazja virou o rosto pra ela, e seus olhos se encontraram com os da menina. Por um momento o mundo pareceu ficar estranhamente em câmera lenta. Os olhos da menina que a encarava eram de uma cor de mel que parecia ficar dourada sob o sol daquele dia. Aqueles olhos, que pareciam pedras preciosas, pareciam atrai-la, como se ela desse um mergulho dentro de um vulcão explodindo.
Quando Anastazja percebeu havia caído. Novamente. E sequer havia reparado que havia colocado uma perna na frente da outra. Ao virar seu rosto, viu que a menina estava em pé, se aproximando dela que estava no chão. Ela terminava de comer o bolo, estava lambendo os dedos.
“Minha nossa, que olhos são esses. Eu nunca vi olhos assim”, disse Anastazja que, naquela posição, os olhos da menina pareciam menos ameaçadores, “Quem diabos é você?”.
“Isso não importa agora. Você parece bem desesperada. Procura algo?”, disse a menina, se abaixando na frente de Anastazja.
A polonesa não sabia explicar, mas havia algo de estranho na menina. Ela olhava pra ela e ao mesmo tempo não parecia estar lá. Era uma sensação muito estranha.
“Preciso buscar ajuda. Tenho amigas, elas...”, disse Anastazja, mas fez uma pausa ao ver que estranhamente havia perdido o ar. Ao tomar mais fôlego prosseguiu: “...Elas estão naquela direção. Soldados nazistas as pegaram, estão todas correndo perigo!”.
“Entendi”, disse a menina. Ela sequer expressou qualquer emoção. Não parecia frieza. Simplesmente parecia não dar a mínima.
“Por isso mesmo, eu preciso correr. Achar alguém...”, disse Anastazja, se erguendo, mas a dor era grande na sua perna periga, “Ah, que merda, merda, merda!! Preciso achar ajuda, rápido!!”.
A menina apenas observava Anastazja. Por um momento ela perguntou se aquela menina tinha algum tipo de autismo, pois ela parecia perdida, com os olhos fixados em qualquer movimento que a polonesa fazia, como se ela não fosse um ser humano, e sim um pedaço de carne ambulante.
Anastazja já estava a alguns metros distante da estranha garotinha, e então a menina gritou:
“Ei, por esse lado, logo naquela curva, tem uns poloneses armados”, disse a menina, apontando para o lado contrário de onde Anastazja estava indo, pro lado de Varsóvia, “Eles que me deram esse pedaço de bolo. Acho que eles podem te dar uma mãozinha pra você ajudar suas amigas”.
Anastazja virou seu olhar para a menina com um ar incrédulo.
“Tem certeza? Poloneses?”, perguntou Anastazja, sem acreditar.
“Sim. Logo ali naquela curva”, disse a menina, e Anastazja se aproximou apressadamente dela.
“Será que pode me mostrar onde eles estão?”, pediu Anastazja.
“Sim. Por aqui”, disse a menina, indo na frente. Anastazja foi seguindo ela e ao fazer a curva, de fato havia escondido no meio das árvores um pequeno acampamento de rebeldes poloneses. Eles eram mais de quinze homens, e todos armados. Parecia que estavam fazendo uma pausa, preparando a refeição, ou algo do gênero. A estranha menina foi junto de Anastazja até encontrar o acampamento, mas em nenhum momento expressou o mínimo de empatia pela dificuldade que a própria Anastazja estava passando tentando caminhar. Parecia que mesmo se Anastazja ficasse sozinha, esperneando de dor, nada tocaria aquele coração a ponto de ajuda-la. Aquela menina por mais que por fora parecesse frágil, não parecia agir como um ser humano.
“Vocês, senhores, por favor. Minhas amigas foram encurraladas por uns cinco nazistas logo ali naquela direção!”, disse Anastazja, apontando na direção de onde veio, “Foi essa menina que me trouxe aqui, ela...”.
Ao virar o rosto Anastazja tomou um susto, pois a menina simplesmente havia sumido.
Anastazja não conhecia essa menina. Mas era exatamente a mesma garota estranha, aquela que estava estripando filhotes de gato, e que estava convivendo com Alice, semanas atrás.
------
Liesl já nem mais sentia direito os golpes. Na verdade as memórias dela já estavam ficando confusas e distantes. Mas estranhamente ela não conseguia apagar sua consciência. Liesl conseguia ver e ouvir tudo o que ocorria na sua frente, apenas tinha uma noção de tempo e local de onde estava completamente embaralhada.
E apenas uma outra pessoa que havia visto aquilo tudo poderia guiar e fazer uma ligação entre todas aquelas estranhas memórias sem conexão.
Os pés de Dirlewanger caminhavam em sua direção. Ele parecia ter os pés tortos para fora, ou talvez apenas estava demonstrando algum tipo de superioridade com a presa que estava largada no chão. Aquilo tinha um cheiro estranho, um cheiro ruim. As folhas e o gramado que eram pisados pareciam se curvar a sua presença, quase como se fosse uma reverência, e então... “AHHHHHHHHHHH!”
Liesl sentiu mais um chute no abdome, que a fez rolar mais ou pouco pra longe de Dirlewanger.
Ela via Kovač na sua frente. Ele estava ferido no chão e tentava se aproximar de defender Alice, que estava tendo suas roupas rasgadas, enquanto os homens colocavam pra fora seus falos já enrijecidos, prontos para consumar o ato do estupro contra Alice Briegel ali mesmo. Uma vontade imensa de se levantar bateu em Liesl, mas ela sequer teve força pra colocar suas mãos no solo, quando... “AHHHHHHHHHHH!”.
Mais um chute de Dirlewanger, dessa vez nas costas, bem no meio da sua coluna. Após rolar algumas poucas vezes, Liesl estava de novo deitada no chão, com o corpo virado pra Oskar Dirlewanger, mas seu rosto estava olhando pra cima.
Era estranho o quão lúcido ela estava. Liesl se recordava exatamente do que havia visto no céu naquela hora. Algumas poucas folhas de outono pareciam cair na sua frente, e embora o céu não estivesse completamente encoberto, pode ver algumas nuvens se movendo no céu. E de uma dessas nuvens sentiu como se uma gota de chuva caísse na sua testa. Refrescante. Viu então o rosto de Dirlewanger, tampando o sol. Ele sorria, um sorriso psicótico de quem não estava satisfeito em apenas subjugar. Estava prestes a pisar até que não sobrasse mais nada.
Mas aí então Liesl lembra de ter ouvido tiros.
“Ei, seus inúteis, peguem o tcheco!! Não se esqueçam do tcheco!!”, era a voz de Dirlewanger.
Vozes gritando algo em polonês indecifrável eram ouvidas.
“Morram todos vocês! Vocês nem são gente! Bando de animais asquerosos!!”, era a voz de Dirlewanger.
Tiros e mais tiros. Liesl não conseguia determinar a localização, menos ainda quem estava sendo acertado, isso é, se alguém estava sendo acertado. Mais gritos em polonês indecifrável.
“Será que eu tenho que fazer tudo aqui?!”, gritou Dirlewanger, que depois que Liesl ouviu sentiu duas piadas no seu corpo, correndo por cima dela. Nem mesmo forças mais ela tinha pra gritar, mas tudo aquilo parecia tão claro.
E novamente sentiu passos em cima dela, de apenas uma pessoa, e de “algo” que parecia sendo carregado por essa pessoa, pois sentiu algo se arrastando rapidamente por cima dela.
“Liesl, Liesl! Fique acordada, aguente firme!!”.
“Venham logo, ajudem aqui!! Ela está viva!! Precisamos leva-la para o hospital!!”.
“Liesl!! Não morra, Liesl, não morra!! Nós prometemos encontrar o papai e voltarmos juntas para a Alemanha!!”.
“Alice, solta ela! Temos que leva-la rápido, vamos!! Com cuidado, gente!”.
Árvores passando. Postes. Casas. Uma mulher com uma cruz vermelha no jaleco.
“Minha nossa, essa menina precisa de tratamento médico agora mesmo, vamos todos nós levar ela o mais rápido possív...”
...
...
“Ahhh!”, gritou Liesl, se erguendo de onde estava deitada, “Ai... Que dor!”, nessa hora ela apertou seu abdome.
Ao olhar ao seu redor viu que estava num leito de um hospital. Ao ver mais atentamente, viu que era um leito improvisado, pois claramente aquelas paredes não eram as de um hospital. Suas coisas estavam na sua mochila, colocada em cima de um criado mudo do outro lado da sala. Sua cabeça ainda estava tentando voltar pra realidade. A luz ia enfim sendo absorvida corretamente pelos seus olhos, era possível ver algumas enfermeiras cruzando a porta, algumas com pressa, outras mais calmas. Muitas pessoas de jaleco e outras pessoas feridas passando pra lá e pra cá.
“Tá acordada?”, disse uma voz feminina infantil ao seu lado.
Quando Liesl virou o rosto rapidamente a reconheceu.
“Você?”, disse Liesl, assustada. Era a mesma menina estripadora de gatos de semanas atrás. Liesl então retomou a consciência pelo susto de vê-la ali, e virou seu rosto em todas as direções daquele quarto, mas não havia ninguém, exceto ela, “Isso só pode ser brincadeira! Eu só fechei os olhos por um segundo, e, nossa, onde raios eu estou?”.
“Polônia”, disse a menina.
“Tá, mas em que cidade?”, perguntou Liesl.
“Não sei, é um nome estranho”, disse a menina.
“Ora sua, como assim? Como não sabe onde você está?”, disse Liesl, incrédula mas nessa hora a menina se ergueu, foi até detrás da porta, e entregou a ficha médica de Liesl que estava pendurada atrás. Quando Liesl pegou nas mãos, ainda sem entender, viu que a menina apontou para algo que estava escrito.
“Lvov”, disse Liesl, lendo o papel, “Tá, mas... Cadê Alice e a Anastazja?”.
“Não sei. Disseram que iam atrás de um coronel, ou capitão, sei lá”, disse a menina, sentando na cadeira e olhando para o chão, enquanto com o dedo ficava enrolando o cabelo. Suas palavras pareciam perdidas, soltas no ar.
“Coronel?”, disse Liesl, “Eu não acredito que aquelas duas foram sozinhas! Faz tempo isso? Eu não acredito que eu apaguei por horas! Eu só fechei os olhos por uns momentinhos!”.
A menina continuava parada, olhando pra janela, depois pro teto, depois pro chão, sem expressar nada. Parecia ser a pessoa mais calma do mundo naquele momento.
“Ei, me diga, faz tempo que elas saíram?”, perguntou Liesl.
“Foi ontem”, disse a menina.
“Ontem?!”, perguntou Liesl, sem acreditar, “Como assim? Que dia é hoje?”.
“Dezenove”.
Tomada pelo desespero não conseguiu perceber que havia uma pedra cheia de musgo na sua frente, ao pisar acabou escorregando e caindo de cara no chão, aos pés de uma árvore que ali estava. Ao se levantar, viu que seu nariz estava sangrando com a pancada. Soltou um novo grito de dor ao dar um passo e ver que o ferimento da sua perna, que havia acontecido enquanto escapava de Varsóvia, havia aberto.
Correndo mancando Anastazja não via nenhuma esperança na sua frente, até chegar numa trilha, que parecia uma estrada de terra. Devia decidir logo pra que lugar ir, e ao virar pra sua esquerda ouviu uma voz vindo detrás dela.
“Ei, esse lado é pra Varsóvia. Se eu fosse você não iria por aí”.
Ao se virar Anastazja viu uma menina. Ela devia ter dez anos, ou menos. Tinha um cabelo castanho claro todo encaracolado, pele branca e rosto bem fino. Vestia uma roupa infantil, que parecia que já havia visto dias melhores, pois não parecia estar muito limpa e estava em péssimo estado. Tinha buracos e muita sujeira. Ele falava um alemão com muito sotaque.
Ela estava sentada de joelhos, e estava comendo um pedaço de bolo. Sua boca estava completamente suja, e suas mãos também. Parecia ser uma criança de rua ou algo do gênero.
“Ah, dá licença menina. Eu preciso ir buscar ajuda”, disse Anastazja, virando pro outro lado da estrada e andando a passos rápidos, soltando gemidos de dor, mancando.
Ao se aproximar da menina, Anastazja virou o rosto pra ela, e seus olhos se encontraram com os da menina. Por um momento o mundo pareceu ficar estranhamente em câmera lenta. Os olhos da menina que a encarava eram de uma cor de mel que parecia ficar dourada sob o sol daquele dia. Aqueles olhos, que pareciam pedras preciosas, pareciam atrai-la, como se ela desse um mergulho dentro de um vulcão explodindo.
Quando Anastazja percebeu havia caído. Novamente. E sequer havia reparado que havia colocado uma perna na frente da outra. Ao virar seu rosto, viu que a menina estava em pé, se aproximando dela que estava no chão. Ela terminava de comer o bolo, estava lambendo os dedos.
“Minha nossa, que olhos são esses. Eu nunca vi olhos assim”, disse Anastazja que, naquela posição, os olhos da menina pareciam menos ameaçadores, “Quem diabos é você?”.
“Isso não importa agora. Você parece bem desesperada. Procura algo?”, disse a menina, se abaixando na frente de Anastazja.
A polonesa não sabia explicar, mas havia algo de estranho na menina. Ela olhava pra ela e ao mesmo tempo não parecia estar lá. Era uma sensação muito estranha.
“Preciso buscar ajuda. Tenho amigas, elas...”, disse Anastazja, mas fez uma pausa ao ver que estranhamente havia perdido o ar. Ao tomar mais fôlego prosseguiu: “...Elas estão naquela direção. Soldados nazistas as pegaram, estão todas correndo perigo!”.
“Entendi”, disse a menina. Ela sequer expressou qualquer emoção. Não parecia frieza. Simplesmente parecia não dar a mínima.
“Por isso mesmo, eu preciso correr. Achar alguém...”, disse Anastazja, se erguendo, mas a dor era grande na sua perna periga, “Ah, que merda, merda, merda!! Preciso achar ajuda, rápido!!”.
A menina apenas observava Anastazja. Por um momento ela perguntou se aquela menina tinha algum tipo de autismo, pois ela parecia perdida, com os olhos fixados em qualquer movimento que a polonesa fazia, como se ela não fosse um ser humano, e sim um pedaço de carne ambulante.
Anastazja já estava a alguns metros distante da estranha garotinha, e então a menina gritou:
“Ei, por esse lado, logo naquela curva, tem uns poloneses armados”, disse a menina, apontando para o lado contrário de onde Anastazja estava indo, pro lado de Varsóvia, “Eles que me deram esse pedaço de bolo. Acho que eles podem te dar uma mãozinha pra você ajudar suas amigas”.
Anastazja virou seu olhar para a menina com um ar incrédulo.
“Tem certeza? Poloneses?”, perguntou Anastazja, sem acreditar.
“Sim. Logo ali naquela curva”, disse a menina, e Anastazja se aproximou apressadamente dela.
“Será que pode me mostrar onde eles estão?”, pediu Anastazja.
“Sim. Por aqui”, disse a menina, indo na frente. Anastazja foi seguindo ela e ao fazer a curva, de fato havia escondido no meio das árvores um pequeno acampamento de rebeldes poloneses. Eles eram mais de quinze homens, e todos armados. Parecia que estavam fazendo uma pausa, preparando a refeição, ou algo do gênero. A estranha menina foi junto de Anastazja até encontrar o acampamento, mas em nenhum momento expressou o mínimo de empatia pela dificuldade que a própria Anastazja estava passando tentando caminhar. Parecia que mesmo se Anastazja ficasse sozinha, esperneando de dor, nada tocaria aquele coração a ponto de ajuda-la. Aquela menina por mais que por fora parecesse frágil, não parecia agir como um ser humano.
“Vocês, senhores, por favor. Minhas amigas foram encurraladas por uns cinco nazistas logo ali naquela direção!”, disse Anastazja, apontando na direção de onde veio, “Foi essa menina que me trouxe aqui, ela...”.
Ao virar o rosto Anastazja tomou um susto, pois a menina simplesmente havia sumido.
Anastazja não conhecia essa menina. Mas era exatamente a mesma garota estranha, aquela que estava estripando filhotes de gato, e que estava convivendo com Alice, semanas atrás.
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Liesl já nem mais sentia direito os golpes. Na verdade as memórias dela já estavam ficando confusas e distantes. Mas estranhamente ela não conseguia apagar sua consciência. Liesl conseguia ver e ouvir tudo o que ocorria na sua frente, apenas tinha uma noção de tempo e local de onde estava completamente embaralhada.
E apenas uma outra pessoa que havia visto aquilo tudo poderia guiar e fazer uma ligação entre todas aquelas estranhas memórias sem conexão.
Os pés de Dirlewanger caminhavam em sua direção. Ele parecia ter os pés tortos para fora, ou talvez apenas estava demonstrando algum tipo de superioridade com a presa que estava largada no chão. Aquilo tinha um cheiro estranho, um cheiro ruim. As folhas e o gramado que eram pisados pareciam se curvar a sua presença, quase como se fosse uma reverência, e então... “AHHHHHHHHHHH!”
Liesl sentiu mais um chute no abdome, que a fez rolar mais ou pouco pra longe de Dirlewanger.
Ela via Kovač na sua frente. Ele estava ferido no chão e tentava se aproximar de defender Alice, que estava tendo suas roupas rasgadas, enquanto os homens colocavam pra fora seus falos já enrijecidos, prontos para consumar o ato do estupro contra Alice Briegel ali mesmo. Uma vontade imensa de se levantar bateu em Liesl, mas ela sequer teve força pra colocar suas mãos no solo, quando... “AHHHHHHHHHHH!”.
Mais um chute de Dirlewanger, dessa vez nas costas, bem no meio da sua coluna. Após rolar algumas poucas vezes, Liesl estava de novo deitada no chão, com o corpo virado pra Oskar Dirlewanger, mas seu rosto estava olhando pra cima.
Era estranho o quão lúcido ela estava. Liesl se recordava exatamente do que havia visto no céu naquela hora. Algumas poucas folhas de outono pareciam cair na sua frente, e embora o céu não estivesse completamente encoberto, pode ver algumas nuvens se movendo no céu. E de uma dessas nuvens sentiu como se uma gota de chuva caísse na sua testa. Refrescante. Viu então o rosto de Dirlewanger, tampando o sol. Ele sorria, um sorriso psicótico de quem não estava satisfeito em apenas subjugar. Estava prestes a pisar até que não sobrasse mais nada.
Mas aí então Liesl lembra de ter ouvido tiros.
“Ei, seus inúteis, peguem o tcheco!! Não se esqueçam do tcheco!!”, era a voz de Dirlewanger.
Vozes gritando algo em polonês indecifrável eram ouvidas.
“Morram todos vocês! Vocês nem são gente! Bando de animais asquerosos!!”, era a voz de Dirlewanger.
Tiros e mais tiros. Liesl não conseguia determinar a localização, menos ainda quem estava sendo acertado, isso é, se alguém estava sendo acertado. Mais gritos em polonês indecifrável.
“Será que eu tenho que fazer tudo aqui?!”, gritou Dirlewanger, que depois que Liesl ouviu sentiu duas piadas no seu corpo, correndo por cima dela. Nem mesmo forças mais ela tinha pra gritar, mas tudo aquilo parecia tão claro.
E novamente sentiu passos em cima dela, de apenas uma pessoa, e de “algo” que parecia sendo carregado por essa pessoa, pois sentiu algo se arrastando rapidamente por cima dela.
“Liesl, Liesl! Fique acordada, aguente firme!!”.
“Venham logo, ajudem aqui!! Ela está viva!! Precisamos leva-la para o hospital!!”.
“Liesl!! Não morra, Liesl, não morra!! Nós prometemos encontrar o papai e voltarmos juntas para a Alemanha!!”.
“Alice, solta ela! Temos que leva-la rápido, vamos!! Com cuidado, gente!”.
Árvores passando. Postes. Casas. Uma mulher com uma cruz vermelha no jaleco.
“Minha nossa, essa menina precisa de tratamento médico agora mesmo, vamos todos nós levar ela o mais rápido possív...”
...
...
“Ahhh!”, gritou Liesl, se erguendo de onde estava deitada, “Ai... Que dor!”, nessa hora ela apertou seu abdome.
Ao olhar ao seu redor viu que estava num leito de um hospital. Ao ver mais atentamente, viu que era um leito improvisado, pois claramente aquelas paredes não eram as de um hospital. Suas coisas estavam na sua mochila, colocada em cima de um criado mudo do outro lado da sala. Sua cabeça ainda estava tentando voltar pra realidade. A luz ia enfim sendo absorvida corretamente pelos seus olhos, era possível ver algumas enfermeiras cruzando a porta, algumas com pressa, outras mais calmas. Muitas pessoas de jaleco e outras pessoas feridas passando pra lá e pra cá.
“Tá acordada?”, disse uma voz feminina infantil ao seu lado.
Quando Liesl virou o rosto rapidamente a reconheceu.
“Você?”, disse Liesl, assustada. Era a mesma menina estripadora de gatos de semanas atrás. Liesl então retomou a consciência pelo susto de vê-la ali, e virou seu rosto em todas as direções daquele quarto, mas não havia ninguém, exceto ela, “Isso só pode ser brincadeira! Eu só fechei os olhos por um segundo, e, nossa, onde raios eu estou?”.
“Polônia”, disse a menina.
“Tá, mas em que cidade?”, perguntou Liesl.
“Não sei, é um nome estranho”, disse a menina.
“Ora sua, como assim? Como não sabe onde você está?”, disse Liesl, incrédula mas nessa hora a menina se ergueu, foi até detrás da porta, e entregou a ficha médica de Liesl que estava pendurada atrás. Quando Liesl pegou nas mãos, ainda sem entender, viu que a menina apontou para algo que estava escrito.
“Lvov”, disse Liesl, lendo o papel, “Tá, mas... Cadê Alice e a Anastazja?”.
“Não sei. Disseram que iam atrás de um coronel, ou capitão, sei lá”, disse a menina, sentando na cadeira e olhando para o chão, enquanto com o dedo ficava enrolando o cabelo. Suas palavras pareciam perdidas, soltas no ar.
“Coronel?”, disse Liesl, “Eu não acredito que aquelas duas foram sozinhas! Faz tempo isso? Eu não acredito que eu apaguei por horas! Eu só fechei os olhos por uns momentinhos!”.
A menina continuava parada, olhando pra janela, depois pro teto, depois pro chão, sem expressar nada. Parecia ser a pessoa mais calma do mundo naquele momento.
“Ei, me diga, faz tempo que elas saíram?”, perguntou Liesl.
“Foi ontem”, disse a menina.
“Ontem?!”, perguntou Liesl, sem acreditar, “Como assim? Que dia é hoje?”.
“Dezenove”.
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