Amber #84 - O mendigo e o nobre.

5 de outubro de 1939
02h24

Era noite. O frio rasgava a pele, passando a toda velocidade, como se corresse dentro de um trem bala vindo dos Alpes. Naquelas ruas no meio da noite, apesar de bem iluminadas, era difícil ver o quão colorida era aquela cidade. Tudo era tingido pela cor laranja das lâmpadas incandescentes dos postes da rua. Uma cidade grande. O lago imenso que banha aquele lugar já havia sido deixado pra trás há muito tempo. Carros e mais carros coloridos, estacionados na rua, os postes e os letreiros brilhantes na noite davam um ar único para a paz que existia naquele local. Você tinha a sensação de estar ao mesmo tempo em uma cidade grande, como também teria a impressão de estar numa cidade pequena do interior.

Um guarda vê então um homem passando. Ele caminhava pela rua, coberto de uma manta grossa. Tinha uma pasta executiva que carregava com uma alça, e pela sua aparência, parecia algo extremamente caro e refinado, pois era feita com couro e muito bem adornada. Quando o vento passou o guarda sentiu que ele exalava um cheiro de sujeira misturado com suor, aquele cheiro característico que moradores de rua têm. Andava com dificuldade, e parecia muito fraco, magro. Conforme ele ia na sua direção, via que seu rosto era iluminado pela luz da rua. Apesar do seu olhar tranquilo, o guarda achou que seria melhor abordá-lo mesmo assim.

Monsieur? Já passam das duas da madrugada. O que o senhor está fazendo?”, disse o guarda, em francês.

Quando o homem tirou o cobertor da cabeça e fitou o guarda, o oficial viu pelo seu estado o que já suspeitava. Se tratava obviamente de um mendigo.

“Estou indo visitar uma pessoa. Essa pessoa mora bem ali”, disse o mendigo, em francês, apontando para uma casa a poucos metros dali.

“Aquela casa? A amarela?”, perguntou o guarda. O mendigo confirmou com a cabeça, “Aquela casa é dos Villeréglan. O senhor tem certeza que conhece as pessoas que moram ali?”.

“Sim. Eu os conheço sim”, disse o mendigo. O guarda permaneceu duvidando da verdade que ele dizia, mas como ficou em silêncio, o mendigo achou que poderia avançar, “Se me permite, com licença”.

Mas o guarda não deixou. Fez uma cara de descrente, arqueando as sobrancelhas.

“Senhor, por favor me acompanhe. Tenho certeza que podemos achar um lugar para que o senhor passe a noite. Não precisa dormir na rua nesse frio”, disse o guarda pegando o mendigo pelo braço e o puxando, “A família Villeréglan é muito tradicional aqui, faziam parte da nobreza francesa. Com certeza sua presença não é aceitável lá, eles não devem conhecer nenhum morador de rua”.

“Não!! Eu tô falando sério! Me solta!!”, disse o mendigo, puxando e tentando se livrar do guarda.

“Senhor, por favor, colabore! Os Villeréglan estão dormindo agora!”, insistiu o guarda.

O mendigo então viu que tinha que ser tudo ou nada. Ele havia vindo de muito de longe pra poder desistir ali naquele momento.

“Jérome!!”, gritou o mendigo, “Sou eu aqui! Venha dizer pra ele quem eu sou!!”, e novamente tomou mais ar, e deu mais um grito ainda mais alto enquanto era arrastado, “Jérome!! Acorda logo e me dá uma ajuda aqui!”.

Então o mendigo viu uma luz se ligando no andar de cima da casa dos Villeréglan. Uma pessoa lá dentro abriu a cortina e viu o mendigo, e desceu correndo, ainda de roupão.

“Senhor guarda! Espera!”, gritou o homem, que estava apesar da cara de sono parecia ter uma elegância nata, “Eu conheço esse homem! Por favor, pode deixar comigo!”.

“Monsieur Villeréglan! O senhor tem certeza mesmo? Esse mendigo não é um arruaceiro?”, perguntou o guarda.

“Não, não é não. Podem deixa-lo comigo. Por favor”, disse o senhor Villeréglan, “Sinto muito pelo incômodo que isso tenha causado senhor guarda”.

E o guarda então se despediu formalmente e voltou à sua ronda noturna. Villeréglan então abraçou o mendigo e os dois foram em direção da imensa casa.

“Poxa, você poderia ter dito que iria visitar! Sua sorte que eu estava ainda no banheiro me arrumando pra dormir! Você parece péssimo! Não é á toa que o cara achou que você fosse um mendigo”, disse o senhor Villeréglan.

“Sério mesmo? Bom, eu vim a pé da Alemanha. Precisava despistar algumas pessoas e sumir sem deixar nenhum vestígio”, disse o mendigo, entrando na casa, “Mendigos são sempre a melhor opção. São pessoas invisíveis naturalmente pela sociedade. Mas foi bem difícil, pra tomar um simples banho era sempre um sufoco enorme”.

A casa era extremamente confortável e grande. A lareira havia acabado de se apagar, era possível ver as últimas cinzas em chamas. O senhor Villeréglan o pediu para se sentar por um momento e subiu, enquanto o mendigo sentava numa cadeira – a coisa mais confortável que havia sentado em semanas. Durante alguns segundos fechou os olhos, jogou o cobertor fedido no canto e abraçou os braços da cadeira, inspirando e expirando lentamente o ar em seus pulmões. Agarrou a bolsa em suas mãos e a abriu. Viu apenas as primeiras fotos. Parecia um laboratório de biologia, parecia ter algumas coisas dissecadas, mas nada muito fácil de se decifrar. Deu uma última checada na bolsa, vendo se tudo estava lá. Revisou o caderno de anotações.

Schultz. Espero que você consiga aí no oriente achar mais informações sobre isso que eu achei. Quem será que é esse Helliger? Parece que ele tem patrocinado essas pesquisas do exército japonês, pensou o mendigo, fechando a bolsa ao perceber que Villeréglan descia.

Aquele cheiro de madeira lhe trazia diversas memórias da infância. Dos tempos que ele andava por lá e corria descalço brincando de esconde-esconde com as outras crianças.

“Toma, uma toalha limpa e uma navalha. Aproveita e mais a barba, saucisson!”, disse o senhor Villeréglan.

“Ah, corta essa, Jérome. Eu passei dos quarenta, chega desses apelidos da infância!”, disse o mendigo, “Me chama pelo meu nome que vou ficar bem mais satisfeito”.

Nessa hora o senhor Villeréglan sorriu. Por mais que o tempo passasse, algumas coisas não mudavam mesmo.

“Sem problemas então, senhor Roland Briegel”, disse o senhor Villeréglan, “Você está fedendo, e essa sua barba por fazer te dá aparência de no mínimo uns sessenta. Sobe lá no banheiro dos hospedes e veja se toma um banho e dorme um pouco. Será que posso saber ao menos o porquê da visita repentina?”.

Nessa hora Briegel, que subia as escadas com a toalha em mãos virou pra ele, com o rosto sério. Vendo que ele não o havia respondido, Villeréglan fez outra pergunta.

“E essa maleta que você tem pendurada aí? Ela parece muito requintada, como se carregasse algo importante. Você não desgrudou dela desde que entrou”, perguntou Villeréglan, “Pelo visto deve ter algo importante aí, não?”.

“Eu gostaria que não fizesse muitas perguntas. É mais pela sua segurança”, disse Briegel, parando no meio da escada, “Eu não gostaria que acontecesse nada com ninguém. Menos ainda com alguém como você, que é meu parente”.

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