Amber #105 - O rançoso e a petulante (5)

“Schultz! É ele! Não pode ser! Não!”, disse Eunmi, assustada. Cada palavra era dita pausadamente, por conta do choque. Não imaginava ver aquele rosto assim tão cedo.

“Saldaña”, disse Schultz, dando dois passos a frente, para olhar para o rosto do americano. Ted Saldaña olhava pra Schultz sorrindo, mas um sorriso confiante, como se não tivesse surpresa nenhuma em ver o alemão ali. Schultz prosseguiu: “De todos os merdas do mundo, tinha que ser justamente você. Eu estou sem palavras, não posso acreditar nisso!”.

Tsai, com o braço cruzado no seu abdome, massageando por conta da dor, se aproximou de Saldaña, dando uma boa olhada nele.

“Quem é ele, Schultz?”, perguntou Tsai, “O que um americano está fazendo aqui na China?”.

“Foi ele quem nos capturou quando chegamos em Hong Kong. Nos manteve presos, e fez coisas terríveis comigo e com a Eunmi. Me torturou e...”, pausou Schultz, sem conseguir terminar a frase. Virou seu rosto para a coreana, e Schultz percebera que as lembranças daqueles acontecimentos terríveis pareciam vívidos, como se tivessem acontecido momentos atrás. Porém o rosto de Eunmi estava em furor. Os punhos dela estavam cerrados, chegavam a tremer.

Schultz baixou a cabeça ao ver Eunmi. Um silêncio dominou o local. E antes que alguém perguntasse o que havia acontecido, Eunmi completou a fala de Schultz:

“Ele torturou o senhor Schultz, e depois me estupraram sem dó”, disse Eunmi, mas nem isso abalava Saldaña. Seu rosto continuava calmo, como se na cabeça dele nada daquilo que havia feito era errado. Como se um estupro contra uma pessoa como Eunmi fosse uma coisa natural.

Mas todos do Pelotão Pássaro Vermelho ficaram chocados ao ouvirem o que Eunmi disse.

“Eunmi, eles fizeram o quê...?”, disse Chou, sem acreditar. Tsai apenas olhava Eunmi, com um olhar triste, como se não conseguisse, nem quisesse dizer nada nesse momento. O que mais chocou Li foi ver uma vítima de estupro assim, na sua frente. Sempre fora uma mulher muito livre, nunca imaginou que isso acontecia na vida real. Mas Eunmi estava lá, uma pessoa tão próxima, vítima de uma coisa tão horrível.

“Não entendo essa cara de todos vocês”, disse Saldaña, com sarcasmo, “Vocês usam palavras muito fortes. Não foi um estupro, ela tá exagerando. Essas mulheres de hoje em dia são todas umas frescas”, ao falar isso, Saldaña estava deixando Schultz completamente furioso, relativizando a coisa assim, e diminuindo o terror que Eunmi viveu ao ser abusada. Mas o pior estava por vir, e Saldaña não parecia ter nenhum julgamento moral pra falar o seguinte: “Foi uma trepada. E ela gostou! Sem contar que ela é muito feia. É até sorte que alguém queira comer essa asiática branquela”.

Eunmi nessa hora desabou de chorar. Desde que ela tinha visto Saldaña já tinha ficado abalada, mas ao ouvir essas asneiras a tristeza falou mais alto. Todas as imagens do ato, a violência, as agressões, tudo aquilo parecia tão vivo na sua memória! E aquele homem estava ali, e ainda falando todas aquelas mentiras na frente de todos, como se não tivesse coração! Eunmi era uma pessoa forte. Uma pessoa que, apesar do amor que sentia pelo seu primo, foi capaz de superar tudo aquilo e interroga-lo daquela maneira. Mas aquilo era demais. Ela era apenas uma garota que lutava contra traumas imensos que vivera desde a infância até então. Uma garota que chorava sozinha, escondida, para não incomodar ninguém.

Mas aquelas lágrimas eram mais fortes que ela.

“Eunmi... Vem cá, vamos sair daqui”, disse Li, se aproximando da coreana, mas Eunmi quando se viu em lágrimas não conseguia acreditar que estava chorando. Seu rosto se contorcia, mostrando toda a força que ela fazia na tentativa em vão de segurar as lágrimas que caíam, enquanto ela gentilmente afastava Li com o braço, enquanto ela tentava se aproximar.

“Não, por favor, me deixa. Eu preciso ficar sozinha”, disse Eunmi, se afastando de Li, e de todos. Ela se virou e saiu correndo dali, como se corresse sem rumo, apenas com o objetivo de sair da frente daquele canalha. Nesse momento todos viram que a coreana poderia ser forte, mas ainda era humana. E como toda pessoa, ficava feliz, braba, pensativa, e chorava, se entristecia, e tinha momentos que precisava ficar um pouco sozinha, como qualquer outra pessoa.

Li e Chou gritavam por Eunmi, indo atrás dela, mas Tsai fez um gesto para que parassem e deixassem a coreana sozinha um tempo. Era necessário.

“Não acredito, olha só o que você fez! O que você tem na cabeça?”, disse Schultz, apontando o dedo para Saldaña de forma ameaçadora, “Seu retardado! Sua cabeça deve ter merda no lugar de miolos, só pode! Você é um canalha estuprador, e vem com essa dizendo que foi frescura! Dizendo que ela mentiu!”, Schultz erguia o tom cada vez mais, mas Saldaña não parecia nem aí. Continuava com um singelo sorriso estampado no rosto, encarando Schultz, “Como ousa dizer essas coisas na frente dela! Não foi ‘uma trepada’. E menos ainda ‘ela gostou’, seu crápula! VOCÊ A ESTUPROU SUMARIAMENTE! Como tem coragem de dizer essas coisas na frente de todo mundo, e ainda na frente dela?!”.

Mas Saldaña não apenas continuava com a cara irônica, como até mesmo soltou uma risada contida, como se achasse engraçado ver Schultz gritando com ele. E ao ver isso, foi Schultz quem perdeu a linha:

“Seu patife maldito!”, e Schultz deu um soco em Saldaña, o jogando no chão, na frente do seu parceiro. Tsai apressadamente foi até Schultz, o afastando de Saldaña, enquanto o americano ia se erguendo, cuspindo sangue.

“Eu já te disse, seu chucrute”, disse Saldaña, depois de se erguer, encarando Schultz que era apartado por Tsai, “Nós somos americanos. O mundo é nosso. É direito nosso fazer o que quisermos na hora que quisermos. Somos o melhor e maior país do mundo. Quem vai nos impedir?”.

Schultz ainda esboçou uma reação, mas Tsai o acalmou, segurando-o. A chinesa soltou um pequeno gemido quando Schultz tentou avançar e ela fez força para segura-lo, e Schultz se ligou nos ferimentos que ela tinha, e voltou a si. Não valia a pena gastar tempo e força com aquele canalha. Nada do que dissesse mudaria a cabeça invertida daquele americano.

“Ei, princesa, você precisa tratar esses ferimentos. Você não está nada bem”, disse Schultz, olhando nos olhos de Tsai, preocupado com ela.

“Eu estou bem, obrigada Schultz”, disse Tsai, o acalmando. Mas era visível que ela estava exausta, e precisava logo tratar daqueles hematomas, porém Tsai olhou para Chou e pediu para ela: “Chou, será que você pode cuidar dos ferimentos do Chao, por gentileza?”.

“S-sim, é pra já Gongzhu”, disse Chou, que embora estivesse preocupada com Tsai, foi até Chao, abrindo sua caixa de socorrista. Ordem era ordem.

“Obrigada, Chou”, disse Tsai, gentilmente. Ela ainda continuava com o braço sobre seu abdome, pra ajudar a suportar a dor. Tsai mesmo naquele estado conseguia pensar primeiro nos outros e depois em si mesma.

“Bom, foi tudo uma encenação, mas não precisava me bater tão forte. Ficou um negócio realista até demais”, brincou Chao, enquanto era tratado por Chou.

“Mas quando foi que vocês combinaram isso?”, perguntou Schultz.

“Foi naquele momento em que ficamos cochichando. Eu já estava achando muito fácil aquela luta naquele momento, mas o Chao me resumiu tudo bem rápido, dizendo que haviam uns caras barra pesada atrás dele, e precisava fazer aquela luta parecer real, para que eles sentissem que poderiam atacar quando um de nós fosse derrotado”, explicou Tsai, “E eles caíram certinho na isca”.

“Vocês falaram sobre fingir, mas não tinha ideia que uma encenação tivesse que ser tão real. Vocês se bateram de verdade”, disse Chou, enquanto fazia assepsia dos machucados de Chao, que por conta da dor, soltou um grito no meio do tratamento. Ele então prosseguiu:

“Esses americanos estavam na minha cola, e eu vi o estrago que eles faziam. São especialistas em emboscadas, ótimas armas, excelente treinamento. Mesmo sendo poucos, eu duvido que alguém seja páreo para eles. Meu pelotão e eu não conseguiríamos encarar eles, sem chance. Porém um passarinho me contou que um trem com Tsai e seu pelotão estava se aproximando”.

“Hunf. Não me chama de ‘passarinho’, seu mané”, disse Huang, sem gostar do tom de Chao, “Técnicas de espionagem. Eu sabia que Tsai estava se aproximando”.

“Pois bem”, disse Chao, voltando, “Uma explosão controlada, uma conversa pra dar tempo deles virem checar o que era, uma luta de mentira, e pegamos o cabeça e o assistente. Dois fugiram, mas a gente pega aqueles depois”, disse Chao, se erguendo, já cheio de ataduras e bandagens que Chou preparou, “Minha questão é, o que vamos fazer com eles agora?”.

“Deixa eles comigo, Chao. Vamos leva-los para Pequim, lá deixaremos com algumas pessoas de confiança. Esses dois aí não podem ficar soltos de forma alguma”, disse Tsai, e nesse momento ela viu seu antigo e querido pupilo, Chou Dafeng, e se aproximou dele, o abraçando, “Fiquei muito feliz em revê-lo, Dafeng! Espero que estejam te tratando bem. Se cuida, tá? E manda notícias! E não se esqueça, sempre que precisar de mim, ou do nosso pelotão, você é mais que bem vindo. Todos aqui são seus amigos”.

E Tsai novamente o abraçou. Ela era alta, mas Chou Dafeng ainda era mais. E era bem corpulento, ao contrário da estrutura magra de Tsai. O chinês imenso ficou vermelho depois do segundo abraço, e era claro o olhar de ternura dele para Tsai. A Gongzhu era como uma mãezona pra ele. E despedidas assim, embora ele não derrubasse uma lágrima, o fazia chorar muito por dentro.

“Tudo bem. Fiquei feliz também em ver que você continua a mesma coisa, Gongzhu”, disse Dafeng antes de se despedir da sua amada professora. Chou já havia terminado de tratar Chao, e era a vez de Tsai.

Pequim está logo ali, não há mais tempo a perder!

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