Amber #108 - São nessas pessoas que deposito a minha vida.

6 de dezembro de 1939
7h39

Cinquenta horas e um minuto. Schultz, Chou e Tsai que ouviam naquele momento não sabiam se aquilo era um blefe, ou era factual. Um artifício para amedrontar, ou um prenúncio evitável? Schultz e Chou ficaram calados, e toda aquela descontração de minutos atrás havia caído por terra. O olhar de ambos então pousou em Tsai, que estava com o rosto calmo e sério fitando Saldaña, como se tentasse captar algum resquício de mentira de parte dele e ao mesmo tempo pensando na estratégia a seguir.

“Cinquenta horas e um minuto. Vocês têm esse prazo para me soltar. Dá pouco mais de dois dias, se fizeram as contas. Esse é uma diretriz que deixei com meus subordinados para o caso de ser pego”, disse Saldaña, voltando o olhar para todos com uma expressão vitoriosa, “E não pensem que o fato da minha captura ter sido um imprevisto de que eles fariam diferente e não me resgatariam”.

“Dois dias, então? Esse é o prazo que vocês dão a si mesmos? Isso não tem sentido algum, isso sim, tá parecendo balela!”, disse Schultz, descrente.

“Na verdade o prazo real são de três dias exatos. Setenta e duas horas. Já passaram quase vinte e quatro horas, mas como vocês estão me tratando bem, achei melhor avisa-los. Nunca achei que seria tão bem tratado como um cativo”, disse Saldaña, respondendo Schultz. Seu olhar estava tranquilo e feliz, ele parecia realmente estar com tudo sob o controle. Não dava nenhum sinal de que era uma mentira, nem no tom de voz, menos ainda na linguagem corporal. Seu olhar se voltou para Tsai, agora com uma feição inquisitória, mas Tsai continuava olhando com uma expressão calma para Saldaña, que prosseguiu: “E então? A minha liberdade, ou a vida de vocês?”.

Chou não sabia o que responder. Schultz achava que isso era um blefe. Mas Tsai estava indecifrável. E então a Gongzhu respondeu:

“Uma pessoa que nem você solta por aí é muito perigosa. Talvez tenha algo que Chao não contou por vocês estarem os perseguindo daquela maneira, mas uma coisa posso te garantir, senhor Ted Saldaña: Nosso pelotão não é igual ao do Chao. E quando estamos unidos, não tenho dúvidas que conseguiríamos nos defender de quantos soldados que vierem te buscar fossem precisos”, disse Tsai, e nesse momento ela voltou seu olhar para Chou e Schultz, com um olhar de ternura e confiança, “São nessas pessoas que confio, e são nessas pessoas que deposito a minha vida”.

Saldaña apenas baixou a cabeça num risinho contigo. E então ergueu a cabeça olhando para Tsai com o mesmo sorriso estampado na cara. Tsai então o deixou lá, pedindo para que todos se preparassem para partir, arrumando as coisas, pois Pequim estava a apenas um dia de viagem por entre o mato. O plano de Tsai era entrar em Pequim pelo oeste, uma vez que havia a possibilidade de estarem no aguardo deles na entrada sul da cidade. Especialmente se fossem soldados de Saldaña, caso suas palavras não fossem um mero blefe para causar hesitação nelas.

“Certo, estão todos aqui?”, disse Tsai, colocando uma pesada mochila nas costas, assim como faziam todos os outros, “Espera um pouco, cadê a Eunmi?”.

“Ah, ela ainda está num canto logo ali atrás, Gongzhu. No mesmo lugar desde que ela saiu correndo de Saldaña. Ela parece que não quer ver o rosto desse aí não”, disse Li, respondendo a Tsai. Saldaña soltou um sonoro “pff” com a boca, menosprezando os sentimentos da coreana, que não suportava olhar para o homem que havia lhe estuprado da forma brutal como ele fizera.

“Aquilo nem foi um estupro. Essa menina é exagerada pra caralho”, ironizou Saldaña, e todas ouviam aquilo sem acreditar que ele continuava dizendo que não havia estuprado a pobre Eunmi, “Ela é tão feia que nem merece ser estuprada”.

“Cala boca, seu babaca!”, disse Schultz, dando um tapa na nuca do americano, “A gente só não te matou porque você é mais útil vivo, imbecil”.

“Certo, Li, Chou, Yamada, e Chen, será que vocês poderiam ficar com a Eunmi lá? Deem o tempo que ela precisar pra se recompor. Eu anotei nesse mapa a trilha que iremos seguir”, disse Tsai, dividindo a equipe, “Schultz, Huang, Ho, vocês irão comigo e nossos prisioneiros. Nós vemos lá em Pequim, tudo bem?”.

“É melhor que você não tente nenhuma gracinha no meio, seu americano imbecil”, ameaçou Schultz, mas nem isso abalava a confiança que Saldaña tinha.

“E pra que eu me arriscaria? Pra me ferir á toa? Eu já te disse, chucrute...”, disse Saldaña, se aproximando de Schultz para falar ao pé do ouvido do alemão, “...Eu não vou tentar fugir, ou te enganar. ‘Eles’ é que virão me buscar”.

Ho e Chen se despediram, dando um beijo. Era muito difícil vê-los separados, mas a situação exigia que fosse assim. Eunmi ainda não estava num estado psicológico aceitável depois do abuso para poder seguir em frente com todos. Depois de um longo abraço apertado os dois se despediram.

Antes de sair, Schultz chamou Chou e Li, para conversar com elas num canto. Enquanto cochichavam, os três olhavam para Yamada atentamente. O japonês, confuso por estarem fitando ele daquele jeito, não tinha a mínima ideia do que eles conversavam ali.

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15h51

Tsai liderava o grupo sempre guiando todos no caminho. Schultz, apesar de estar já acostumado a caminhar muito desde que chegou na China, estava exausto. Aquela barriguinha de cerveja era coisa do passado, até parecia mais jovem. Ho já parecia estar completamente curada, andando sem problemas. E esses dois últimos revezavam na escolta dos dois americanos, que, por mais estranho que possa parecer, foram extremamente comportados. Não tentaram absolutamente nada no caminho, nem ao menos ameaçaram fugir ou algo do gênero.

Se era um blefe essa conversa de serem resgatados, eles estavam muito confiantes nessa mentira.

“Ah, falta muito? Podemos fazer uma pausa?”, disse Schultz, exausto, “Eu já não tô sentindo minhas pernas!”.

“Espera aí, eu conheço esse lugar. Acho que já viemos por aqui no passado, não?”, disse Huang, reconhecendo onde estavam.

“Sim. Acredito que depois daquele morro ali já dá pra ver Pequim”, respondeu Ho, sorrindo para Huang.

“Ah, isso é música pros meus ouvidos! Pequim! Enfim!”, disse Schultz, respirando aliviado, “Tsai, você foi muito malvada! A gente poderia ter feito uma pausa pra descansar um pouco, a gente chegaria mais inteiros! Eu tô só o pó da rabiola...”.

“Mas essa foi justamente a ideia, Schultz! Estamos no inverno, é melhor corrermos antes do anoitecer para não precisarmos acampar e dormir ao relento nesse frio”, disse Tsai, e Schultz via que fazia sentido, fazer um esforço para chegar o mais rápido para poder eventualmente dormir numa cama quentinha. A Gongzhu então subiu no topo do aclive, e sacou seus binóculos. Ela se virou então pra Schultz e o chamou, de maneira empolgante: “Vem cá, vem ver isso aqui nos meus binóculos”.

Ao chegar no topo da ladeira, Schultz vira várias luzes ao longe, o que parecia ser uma cidade. Ele não tinha ideia do que era, mas como ainda era o fim da tarde, era possível ver ainda alguma coisa. Tsai apontou para um rio, mais especificamente para uma ponte.

“Será que você a conhece?”, disse Tsai, ao pé do ouvido de Schultz. Isso deixou o alemão arrepiado dos pés até a cabeça.

Mas a paisagem era incrível. A ponte era extremamente maciça, pesada, e a primeira coisa que chamou a atenção foram os lindos arcos que a compunha. Eles eram feitos de granito, completamente simétricos, pareciam fazer aquela ponte que devia ser tão pesada parecer ser... Leve!

Diversos pilares a preenchiam de um lado até o outro, e o alemão podia ver que havia algo em cima de cada pilastra, apenas não conseguia distinguir o que era por conta da distância. Aquela era uma arquitetura como ele nunca antes vira em toda a Europa. E abaixo dessa mesma ponte um lindo e calmo rio passava, enfeitando e enriquecendo ainda mais aquela linda estrutura, fazendo ela se refletir na água, transformando os arcos em círculos refletidos em sua superfície.

“Minha nossa, que ponte linda! Eu nunca vi um negócio assim antes! Nem mesmo na Europa, nem em nenhum lugar do mundo!”, disse Schultz, que nem tinha palavras para descrever aquela beleza arquitetônica.

“Foi mais ou menos isso que a pessoa que dá nome a essa ponte disse quando foi descrever essa ponte para o povo europeu”, disse Tsai, olhando ao longe a ponte, como se respirasse um ar cheio de orgulho de estar de volta à cidade que um dia fora a capital do seu país.

“Ei, mas nós chineses não usamos esse nome. É a Ponte Lugou, e sempre será, Tsai. Não tem nenhum italiano pra ditar como devemos chamar esse monumento aqui não”, disse Huang, ao subir no aclive com os outros logo atrás.

Schultz por um momento ficou em silêncio, quando enfim entendeu o que Huang queria dizer.

“Espera aí, você disse italiano? Não acredito. Essa é a Ponte Marco Polo?”, perguntou Schultz para Tsai, chocado. Ela assentiu com a cabeça, “Inacreditável. Então é onde toda essa maldita guerra começou”.

“Dizem que foi por culpa de um japonês maldito que ‘se perdeu’ e as tropas nipônicas queriam invadir Pequim por cima de tudo para achar esse japonês que sabe lá deus onde foi parar. Isso é, se esse ‘tal japonês’ existiu de fato”, disse Huang, carregado no sarcasmo, “Antigamente pelo menos eles pensavam num motivo para guerrear”.

“Bom, não vamos perder tempo. Vamos seguindo para Pequim, meninos”, disse Tsai, que começou a descer.

Schultz foi logo atrás, mas ele estava com uma impressão estranha. Havia algo de estranho. Uma sensação de estar sendo observado por alguém, como se pudesse sentir a energia de algo no ar. O alemão olhava pros lados, e não conseguia ver ninguém, e achou que talvez fosse pelo fato de todos estarem caminhando num local aberto, desprotegido.

E então um barulho grave começou a ser ouvido. Bem baixo no começo, que parecia vir dos arredores de Pequim. Conforme a altura do som ia aumentando, não era possível distinguir da onde vinha esse estranho som, ele parecia vir de todos os lugares ao redor, era algo muito estranho.

“Tsai, olha ali!”, disse Schultz, apontando para algo que brilhava vindo da direção de onde estava a cidade. Parecia algo em chamas, pois o brilho era vermelho e saía muito pouca fumaça, e ascendia ao céu quase que como uma linha reta.

“Puta merda, essa bosta tá vindo em nossa direção!”, disse Huang, e de fato a coisa estava vindo mesmo em direção deles, cruzando o céu num rugido que fazia vibrar até mesmo o ar dentro dos seus pulmões. Um rugido sobrenatural, como se fosse de um verdadeiro dragão, cruzando os céus da China.

“O que é aquilo? É um avião?”, perguntou Tsai, confusa.

“Acho que a ordem seria perguntar primeiro se era um pássaro, e depois se era um avião”, brincou Schultz, mas Tsai quase não ouviu, uma vez que o ruído já estava em um nível ensurdecedor. Ele então vendo que ela continuava  tentar entender o que era aquilo, pegou no antebraço da chinesa e a puxou para fora dali, “De qualquer forma essa bosta parece estar vindo pra cá, é melhor buscarmos abrigo, senão a gente vai entrar em Pequim dentro de um caixão!”.

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