Amber #117 - Aomame & Tengo.

A mulher continuou encarando Eunmi. Não tinha uma expressão de raiva, ou algo do gênero, parecia na verdade meio impaciente. Sua expressão séria continuava impressa no seu rosto, junto dos braços cruzados, sem tirar os olhos da coreana, com um claro olhar de quem a desafiava a dar o disparo. O homem que estava junto, ao contrário dela, ficou com uma cara mais apreensiva, com receio de que Eunmi fosse realmente puxar o gatilho.

Aqueles momentos pareciam horas. Porém quanto mais tempo Eunmi os encarava, mais algo lhe dizia que ela já os tinha visto em algum lugar.

“Aomame-san! Tengo-kun!”, gritou Yamada, ao se arrastar pro lado pra sair de trás de todas aquelas pessoas na sua frente pra poder ver. O japonês se ergueu, e mesmo mancando um pouco, se pôs alguns passos na frente de Eunmi, sem entrar na sua mira, “Eunmi, calma, eles são amigos! São eles que estavam nos esperando no final da trilha!”.

Eunmi nesse momento se recordou que havia os visto de relance enquanto o carro fugia da perseguição dos japoneses. Foi bem de relance, mas deu pra se recordar das suas feições.

Porém a coreana não baixou sua pistola.

“Entendi. E são amigos? São de confiança?”, perguntou Eunmi para Yamada.

“Claro que são! Eles me ajudaram muito, e fiquei super feliz quando vi que eles estavam atrás de mim”, explicou Yamada, empolgado em querer mostrar os seus amigos, “Eram eles com quem eu conversava, Chou e Li. Eram eles que o Schultz deve ter visto. Eu não consegui apresenta-los antes a vocês por medo de que os descobrissem, afinal, poderia ser perigoso para eles serem descobertos!”.

“Descobertos porquê?”, perguntou Li, e então a japonesa se aproximou calmamente, mas ainda mantendo uma pose séria.

“Annyeong haseyo. Dajia-hao”, disse a japonesa, cumprimentando num perfeito coreano e chinês, respectivamente, e sem nenhum sotaque. Ela prosseguiu falando em chinês: “Pode baixar essa arma, não viemos aqui para os ameaçar, ou algo do gênero”, mesmo depois de pedir para Eunmi baixar a arma, ela não baixou, e continuou mirando na japonesa, que se apresentou: “Meu nome é Aomame Mayuko, e ali é o meu parceiro, Kawase Tengo”.

“Aomame?”, Chou se espantou, virando o rosto para todos ali, “Que sobrenome é esse que nunca ouvi falar? Tá na cara que é inventado”.

Mayuko Aomame ao ouvir o cochicho de Chou ficou braba, mas se conteve. Cerrou os olhos e encarou Chou, tombando a cabeça, como se sua expressão dissesse que havia ouvido o que ela havia dito.

“Hahahaha!”, riu Tengo, que parecia ser bem mais simpático que sua parceira, “Mas é verdade, nem eu nunca tinha ouvido esse sobrenome antes, acho que só deve ter a família dela com esse sobrenome em todo o Japão!”, ele se aproximou  e colocou a mão no ombro dela, que prontamente mexeu o ombro pra tirar o mão dele de cima dela, “Você não muda nada, Aomame. Continua fazendo a mesma cara quando falam do seu sobrenome!”.

“Aomame é com o kanji de ‘verde’ e ‘ervilhas’”, explicou Yamada, desenhando com o indicador sobre sua palma.

“Entendi. Não é todo dia que encontramos alguém com ‘sobrenome de ervilha’, hahahaha!”, brincou Chou, mas apenas ela e Eunmi deram risada. Chen continuava parado olhando tudo de trás. Aomame ergueu as sobrancelhas e olhou pra cima, impaciente com as brincadeirinhas que sempre faziam ao ouvir seu sobrenome incomum. Tengo ao lado dela ficava tentando conter o riso, muitas vezes sem sucesso.

“E pra quem vocês trabalham?”, perguntou Eunmi, ainda sem baixar a arma.

“Nós dois somos Kenpeitai”, disse Aomame, e nessa hora todos ficaram apreensivos. Suas feições que eram de descontração depois da piada, subitamente ficaram sérias e desconfiadas. Aomame percebeu a mudança do clima, mas não se abalou. Continuava séria e fria, dizendo: “Bom, pelas caras de vocês não foi uma reação boa, mas não dou a mínima. Estamos procurando uma pessoa, e queremos saber se voc...”.

“Vão embora daqui”, disse Li, mostrando o rifle nas mãos, sem apontar pra eles, de forma ameaçadora ao lado de Eunmi, que continuava com a pistola M1911 mirada neles, “Não queremos ficar juntos de agentes da inteligência imperial japonesa. Vocês são bandidos da pior espécie! Não tem como estarmos juntos de genocidas como vocês!”.

A Kenpeitai foi a polícia militar e serviço de inteligência do Império Japonês. Uma equivalente da junção da Schutzstaffel (a SS alemã) e da Sicherheitsdienst (a SD alemã, onde Schultz e Briegel trabalham).

“Calma, senhorita, por favor!”, disse Tengo, tentando apaziguar o clima que estava esquentando, “Sim, somos da Kenpeitai, mas não somos malvados. É meio difícil de explicar, mas no fundo sabemos que somos apenas uns fantoches do governo, uma vez que sabemos de exatamente tudo o que se passa por debaixo dos panos. E isso tudo que estão fazendo no leste asiático é completamente errado, e não compactuamos de forma alguma com isso. Na verdade somos contra, e queremos derrubar o imperador e suas políticas, e devolver a liberdade pro nosso país. Essa coisa que querer conquistar o leste europeu é apenas uma desculpa pra mostrar poderio militar e repreensão. A política da sobrevivência do mais forte”.

Mas naquele momento o coração de Eunmi batia forte. Uma batida cheia de dor, coberta de memórias que ela daria tudo para esquecer. Ela estava na frente de dois agentes da temível Kenpeitai. E quando ouviu quem eles eram, seus ouvidos não escutavam mais nada. Ela os via, mas seu olhar estava longe. E ela não deixava de apontar a arma de maneira ameaçadora contra eles.

“Cala a boca, Tengo”, disse Aomame, sem erguer a voz, mas com um tom único imperativo, “Ei, chinesa, não é porque sou mal-humorada que sou malvada, ok? Esse tipo de preconceito é muito infantil e imaturo. Se quisesse, já teria os dizimado agora mesmo! E seria uma passagem só de ida!”.

“Meninas, eles são de confiança, eu juro! Deem um voto de confiança a eles assim como deram a mim, é apenas o jeito da Aomame-san!”, disse Yamada, defendendo seus amigos.

“Aomame, por favor, espera. Vem cá, vamos tomar um ar. Calminha, calminha!”, disse Tengo, colocando as mãos no ombro da japonesa e a levando para longe das outras, “E gente, por favor, confiem em nós. Eu sei que é difícil de acreditar que pode haver um agente que está contra o governo, mas sim, existem, mesmo sendo muito raros. É exatamente por acreditarmos em algo maior é que não compactuamos e queremos usar o próprio sistema para derrubar esse governo corrupto que o Hideki Tojo a cada dia bota mais suas garras!”.

Foi a vez de Yamada intervir:

“Viu, eu disse que eram bonzinhos! Eu compartilho totalmente a visão deles, embora eu possa fazer bem menos coisas que eles podem fazer, afinal sou um soldado raso e sem um bom nome...”, disse Yamada, se lamentando no final de sua condição.

Chou e Li imediatamente se olharam, como se conhecessem aquele discurso. Parecia muito o que Schultz dizia, que apesar de ser alemão, e de trabalhar na SD como espião nazista, ele queria na verdade era derrubar Adolf Hitler do poder e restaurar a democracia e a paz na Alemanha. Parecia que elas haviam encontrado pessoas com a mesma visão, mas do lado japonês. Tanto Li quanto Chou pareciam compreender e acreditar no que Tengo Kawase dizia.

“Não, tudo bem, escuta, não é tão raro ter essa visão como vocês dizem”, disse Chou, tomando a frente, “Agora você, Eunmi, abaixa essa arma, vamos”.

Porém Eunmi não estava dando ouvidos a nenhuma palavra que Kawase dizia. E continuava encarando de forma ameaçadora Aomame, que era levada por Tengo para fora dali. O coração de Eunmi ainda estava em choque por ter se deparado com agentes da Kenpeitai. Apenas uma única certeza dominava seu coração, a de que aquele casal de japoneses não eram de confiança.

“Eunmi? Você tá bem?”, perguntou Yamada baixinho ao perceber que a mão da coreana tremia, e ela suava frio.

O descontrole. A perda total da sanidade quando pressionada. O mesmo que acontecera antes, quando encontrou e foi traída por Jin-su. E também quando encontrou Saldaña, e todas as memórias do estupro vieram à tona. E agora mais essa. Absolutamente nenhuma palavra que Tengo havia dito entrou na mente de Eunmi. Ela havia ignorado tudo completamente. Na sua percepção a conversa ainda estava na parte que eles se apresentavam como membros de Kenpeitai.

“Não, tudo bem. Confiamos em vocês”, disse Li, tomando a frente, “Eu mesma antes não confiava no Yamada, mas acho que agora eu quem tenho que dar o braço a torcer. Esse discurso de serem agentes da inteligência, e de que não poderiam ficar quietos vendo o que de errado acontecia na sua frente nos lembram muito alguém”, e ao dizer Li baixou a cabeça num sorriso, se lembrando de Schultz.

“Verdade! Quando vocês conhecerem o senhor Schultz, vão ver só que não estão sozinhos nesse ideal. Existem outros!”, disse Chou, empolgada, dando uns passos pra frente, “Nós apenas temos esse mundo, não existe motivo para guerrear. E tendo as ferramentas para trazer um pouco de paz, temos a chance de ir contra a maré e agir pelo certo, pelo correto, e pela justiça. É nisso que acreditamos também, embora até do nosso lado tenham também pessoas de visão distorcida”.

Chen confirmou com a cabeça, mas havia algo que o preocupava mais: Ri Eunmi. Indo discretamente por trás enquanto todos falavam, ele se pôs num local que conseguia ver claramente o rosto da coreana, e vira que ela realmente não parecia nada bem. Tremia, suava frio, estava pálida e seus olhos pareciam dilatados, olhando para o chão, mesmo que a cabeça estivesse erguida e voltada pra direção de Aomame e Tengo. Eunmi sussurrava algo abrindo os lábios, e Chen rapidamente percebeu que pelo movimento ela dizia pra si mesmo diversas vezes “Kenpeitai... Kenpeitai... Kenpeitai...”.

“É melhor que não fale assim com a gente, sua japonesa idiota!”, gritou Eunmi, e ao ouvir isso Aomame se virou para a coreana:

“O quê?”, perguntou Aomame, “O que foi que você disse?”.

“Ah, nossa, calma aí, Aomame-san!”, disse Yamada se colocando entre as duas.

“Isso mesmo que você ouviu! Não vou confiar em alguém da Kenpeitai!!”, gritou Eunmi, engatilhando a pistola.

“Ei, espera aí, ela não ouviu o que eu disse?”, perguntou Tengo, que também tentava segurar Aomame, que estava ficando sem paciência.

“Ah, que infantil! Uma adolescente coreana que nem pelos na buceta tem me falando como agir! Se está tão confiante em erguer a voz comigo, venha cá então que vou dar umas palmadas na pirralha que você é pra aprender a ter um pouco mais de respeito! As briguinhas na escola que você teve, de puxar o cabelo da amiguinha, não vão te proteger dessa vez, menina!”, disse Aomame, ignorando completamente os apelos de Tengo e Yamada.

Eunmi então saiu correndo no encontro de Aomame.

“Vou te fazer engolir o que disse, sua vaca!!”, gritou Eunmi. Enquanto Chou e Li gritavam e corriam até ela para tentar para-la, “Vocês do Kenpeitai todos merecem morrer!!”.

“Me solta, Tengo!!”, disse Aomame, enquanto Tengo a segurava apertando seus braços contra ela, “Me solta!! Já disse pra me soltar!!”, gritou Aomame, e deu uma cotovelada no abdome de Tengo que caiu no chão soltando um sonoro “Uuuh!”, com as mãos no estômago.

Eunmi começou a correr e disparar a arma, mas os tiros simplesmente não acertavam nada, uma vez que ela estava fora de si. Ao se aproximar de Aomame ela jogou a pistola pro lado e começou a lutar ali mesmo contra a japonesa, fechando os punhos e desferindo socos.

“Você luta bem pra uma menina que acabou de aprender o que é um sutiã!”, disse Aomame, “Mas preste bem atenção, apenas lutar bem não é o suficiente pra me derrotar”.

Aomame se defendia sem problemas, e a coreana começou então a dar chutes e mais chutes, que tanto a japonesa conseguia se esquivar, como até mesmo os suportar, se defendendo do impacto. A japonesa sabia que a coreana estava fora de si. E ao mesmo tempo ela era inteligente pra saber que atacar Eunmi ali iria fazer com que Chou, Li e Chen a atacassem, então Mayuko Aomame percebeu uma coisa no olhar de Eunmi: desperdício de energia.

“Só isso que pode fazer? Vamos, mais forte, menina!”, provocava Aomame enquanto Eunmi desferia várias sequências de socos e chutes contra ela, que sem muito esforço conseguia defender. A força dos golpes da coreana diminuía cada vez mais, e era exatamente isso que a japonesa imaginava que aconteceria.

“Estamos do mesmo lado, menina. Vê se fica calma, e larga desse estresse. Vai acabar ficando cheia de rugas antes de chegar na idade”, disse Aomame antes do ultimato.

A japonesa simplesmente pegou o braço de Eunmi e usou a própria força da coreana contra ela mesma, usando todo o impulso e ímpeto dela para derruba-la em um único golpe, certeiro, executado com maestria.

Já no chão, virada pra cima, Eunmi estava recuperando os pensamentos. Aomame se aproximou dela, flexionou os joelhos, e olhou para a coreana no fundo dos olhos.

“Somos amiguinhos, garota. Não queremos o mal de vocês, só queremos ajudar. Temos uma missão assim como vocês, e se vocês nos ajudarem, poderemos ajudar vocês também”, disse Aomame ao ver o rosto de Eunmi, já com uma aparência bem mais calma, com a respiração bem forte. A japonesa estendeu a mão para ajudar ela a se levantar do chão, “De acordo?”.

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