Amber #119 - Lamian, Ramyeon, Lamen.
6 de dezembro de 1939
12h58
Eunmi e os outros se juntaram a Aomame e Tengo em um local um bocado inusitado: uma caverna. Ali era um local que proveria um abrigo para o frio, e um bom esconderijo, além de um local para repouso, principalmente depois de tantas emoções vividas nas últimas horas. Tudo estava tingido com o alaranjado de uma fogueira que haviam acendido nos fundos da caverna. Em uma panela não muito grande Tengo estava cozinhando usando mesmo fogo. Um cheiro delicioso dominava o local.
A coreana estava sozinha na entrada da caverna, de braços cruzados, vendo os cristais da geada brilhando como um pó de diamante sobre as plantas. Quando sentiu o cheiro que vinha da parte interna da caverna, sua boca se encheu de água, e seu estômago reagiu, pedindo comida. Estava com muita fome. Conforme a coreana ia adentrando de volta à caverna vira que todos estavam dando risada e conversando junto de Tengo, que estava no comando da panela. Aomame estava sentada encostada num canto quieta, com sua cara séria de costume.
"Que cheiro bom. O que está fazendo?", perguntou Eunmi ao se aproximar.
"Eu adoro cozinhar para muitas pessoas! Usei todo o resto de macarrão que eu tinha, e fiz um prato que vai agradar chineses, japoneses, e é claro... Coreanos!", disse Tengo, e Eunmi se aproximou da panela, que estava tampada, e então o japonês abriu. Um vapor com um delicioso cheiro subiu no rosto de Eunmi, e aquele cheirinho a levou de volta para a casa da sua mãe. Para a simplicidade da infância. Para os tempos idos. Quando ela abriu os olhos depois dessa louca viagem viu o que havia na panela. Era uma sopa feita com macarrão chinês, com carnes, legumes, e molho shoyu.
"Minha nossa! Ramyeon!", disse Eunmi, radiante. A empolgação dela fez todos abrirem um belo sorriso. Exceto Aomame, que continuava quieta no seu canto, fechando os olhos, fingindo dormir para não ser incomodada.
"Pra gente isso aí é lamian", disse Li, falando nome do prato em chinês.
"Lámen, lámen, lámen! Lembrem-se de quem está cozinhando é um japonês. E vamos usar o nome japonês aqui! Hahaha!", brincou Tengo, pegando algumas tijelinhas para servir a lamén, "Senta aí, coreana! Vamos comer! Hora do almoço!".
Haviam apenas umas quatro tigelas similares. O resto eram copos improvisados como tigelas para comer. Era algo simples, mas o coração por trás era imenso.
"Vocês estavam fazendo o que esse tempo todo? Batendo papo?", perguntou Eunmi, esperando enquanto Tengo servia sua refeição.
"Sim! Tengo-san é gente fina!", disse Chou, "Ele estava contando da sua vida. Tengo e Aomame são da cidade grande, são de Tóquio! E o Tengo era professor de matemática".
"Opa, correção: um excelente professor de matemática", disse Tengo, entregando o almoço para Eunmi. Chou nessa hora deu risada, e Aomame virou o rosto, os observando, ainda com uma expressão séria.
"Como um professor de matemática entrou na Kenpeitai?", perguntou Eunmi, curiosa.
"Ué, a gente tem que vir de algum lugar, não é mesmo? Eu fui indicado, disseram que eu tinha uma alta inteligência, enfim, nunca achei que era pra tanto. Mas uma vez lá dentro fui subindo aos pouquinhos. A matemática me ajudou a entrar na Agência de Inteligência, mas lá dentro ela não me ajudou em quase nada, pra falar a verdade. Ainda tem um bocado de coisa pra conquistar, mas estou feliz onde estou", disse Tengo, terminando de servir todos. Ele então encheu a penúltima tigela, e se virou para Aomame, que estava atrás dele, "E estou feliz de estar com quem estou também".
Aomame se ergueu e foi até Tengo, pegar a tigela. Eunmi, ao vê-la se aproximar, reparou nas roupas ocidentais que a japonesa vestia. Pareciam a última moda, ela era uma pessoa extremamente elegante. Era até meio vergonhoso estar na frente dela fedendo e com uma roupa militar suja.
"E você? Qual sua história?", perguntou Eunmi, para Aomame. Ela ficou por um momento encarando Eunmi sentada sem dizer nada, e um silêncio perturbador dominou o recinto.
"Eu era uma assassina de aluguel. Uma pessoa me colocou na Kenpeitai, para que eu por meio dos serviços à nação pudesse ser absolvida dos meus crimes", disse Aomame, se virando e voltando para o seu canto.
"Uma pessoa?", perguntou Eunmi. Aomame não respondeu, ficou calada comendo.
"Longa história...", disse Tengo, vendo que sua parceira estava o encarando logo atrás.
Quando Eunmi provou a primeira colherada sentiu uma satisfação que a preenchia do dedão do pé até o último fio de cabelo. Não era nada elaborado, mas era um prato que tinha o que mais fazia uma comida parecer deliciosa: o carinho da sinceridade. Ao engolir quase pôde sentir o caldo descendo pelo esôfago e pousando no estômago vazio.
"Minha nossa, ficou simples, mas está delicioso. Como conseguiu essa carne?", perguntou Eunmi.
"Bom, essa carne nós pegamos de uns...", disse Tengo, mas Aomame prontamente o interrompeu:
"Nem queira saber, coreana. Apenas coma".
Todos estavam realmente com fome. Não havia muita fartura, mas a pouca comida era aproveitada a cada colherada, como se fosse um banquete. A concentração em comer era tamanha que por um longo tempo ninguém falou nada. Foi Aomame quem quebrou o silêncio:
"E você, coreana? Todos aqui se apresentaram e falaram um pouquinho de cada um enquanto você estava sozinha lá em cima. Acho que agora é sua vez".
Eunmi nesse momento ficou pensativa. O seu reflexo na sopa rebatia a luz que brilhava sobre seu rosto.
"É verdade, né? Acho que só a Gongzhu deve saber algo sobre mim, uma vez que ficávamos direto enquanto ela me treinava", disse Eunmi, erguendo o rosto e dando um sorriso, "Acho que eu nunca cheguei a me abrir para vocês, não é mesmo?".
"Bom, sempre existe uma primeira vez", disse Tengo, retribuindo o sorriso.
"Tá certo, vou começar então. Como sabem, meu nome é Ri Eunmi. Tenho 18 anos, nasci no dia oito de março", começou Eunmi, "De acordo com mamãe eu nasci numa montanha ao norte da península coreana. Meu pai engravidou minha mãe antes do casamento, e eles viviam viajando de lugar em lugar, buscando um local para se estabelecerem. De acordo com minha mãe, um belo dia resolvi nascer. E isso aconteceu justo quando eles passavam pelo Monte Paekdu".
Todos ouviam atentamente a história de Eunmi, mas apenas Tengo ficou chocado ao ouvir.
"Monte Paekdu? Minha nossa, só eu reparei nisso? Mais coreana que isso, impossível", disse Tengo, chamando a atenção para esse detalhe. Eunmi nessa hora sorriu para ele, feliz em ver alguém que conhecia sobre sua terra natal.
"O que tem esse monte? Eu nunca ouvi falar", disse Li, e pela expressão de todos os chineses ali, ninguém nunca havia ouvido realmente falar nesse local.
"Monte Paekdu é a montanha símbolo da Coréia. Tem até um mito de que o primeiro rei do reino da Coréia nasceu lá. E sua mãe era uma ursa", brincou Tengo, "Tá, os mitos japoneses também não têm o que defender, é um mais viajado que o outro. Espero que essa ursa só tenha sido peluda na 'área de diversão' lá embaixo, porque uma mulher toda peluda deve ser algo horrível!".
"Você realmente conhece, Tengo! Foi lá que eu vim ao mundo!", disse Eunmi.
"Claro que eu sei! É um local super importante para vocês, coreanos. Tem uma simbologia como o Monte Fuji é para nós, japoneses. Espero que você não use o fato de ter nascido no Monte Paekdu para ganhar o direito de ser a líder suprema da Coréia ou algo do gênero no futuro. Ninguém em sã consciência acreditaria que alguém veio ao mundo naquele lugar!".
"Hahaha! Pode deixar", disse Eunmi, "Bom, prosseguindo, minha infância foi tranquila, apesar das dificuldades de viver numa Coréia dominada pelo Japão. Papai trabalhava bastante, mamãe cuidava de mim. Sou filha única. Em julho desse ano meus pais decidiram que eu deveria me casar, e minha sorte era que o rapaz que eu estava interessada era também meu amor desde a infância. Nós tínhamos uma quedinha um pelo outro desde que éramos crianças! Tudo na minha vida estava encaminhado".
"Puxa, que legal. Poucas pessoas têm essa sorte, coreana", disse Tengo, "Qual o nome dele?".
"Park Si-mok", disse Eunmi, com tristeza em sua voz. Tengo e Aomame não entendiam o tom de sua voz, mas ao repararem na expressão de todos os chineses ali, parecia ser um capítulo triste da vida de Eunmi. Ela então prosseguiu: "Meu noivo, Si-mok, era uma ótima pessoa. E naquele momento apenas conseguíamos ver a felicidade que se abria à nossa frente, com os olhos arregalados imaginando tudo o que viveríamos", Eunmi fez uma pausa, e sua feição ficou ainda mais triste, "Tudo mudou quando nosso vilarejo, perto de Hyesan, no norte da Coréia, foi atacado. Eu não sei o motivo, mas isso também não interessa. O que importa é que meu noivo foi cruelmente assassinado na minha frente por um capitão do exército imperial japonês".
"O tal capitão Miura", disse Aomame, sem virar o rosto para Eunmi.
"Exato. Depois do ataque eu fui separada da minha família. E por ser jovem, fui mandada para servir soldados japoneses, como uma 'mulher de conforto'. Foi horrível, eu era abusada, estuprada, vivia num local péssimo e sujo, isso sem contar a brutalidade dos soldados japoneses contra mim e as outras garotas", disse Eunmi, com lágrimas nos olhos, mas com uma resolução firme em cada palavra que dizia, "Isso tudo até, vamos dizer, 'um outro belo dia' quando conheci um homem ocidental. Ele parecia ser russo, tinha o cabelo loiro e meio grisalho. Eu era puro ódio, e numa conversa ele disse que sabia uma pessoa que poderia me ajudar".
"Uma pessoa pra te ajudar na sua vingança?", perguntou Tengo, interessado.
"Sim. Ele me deu um dinheiro para que eu fosse para a Alemanha, atrás de um agente da SD alemã, chamado Ludwig Schultz. Eu o encontrei e consegui convencê-lo a vir comigo para a Ásia".
"Uau, Alemanha. Que coisa doida!", disse Tengo, admirado, "E como você conheceu a Hime-sama?", Tengo rapidamente voltou atrás, ao ver que havia se referido à Tsai pelo nome japonês, "Quer dizer, a Gongzhu?".
"Com o Schultz fomos parar em Xangai, e fomos atrás do meu primo, que era um espião que ajudava a Tsai. Fomos levar algumas informações para ela e assim a conhecemos. E junto, ganhamos esses valiosos amigos", disse Eunmi, se referindo aos amigos chineses, "Mas esse meu primo na verdade era um traidor disfarçado, mas já passou. Foi difícil, mas conseguimos lidar com ele".
"Uau. É uma baita estória. Você é nova, mas já viveu umas coisas bem intensas", disse Tengo, se arrependendo por ter menosprezado a coreana.
Aomame então se ergueu, parando na frente de Eunmi, com a fogueira entre as duas.
"É verdade, Tengo. É uma história impressionante mesmo, garota. Você infelizmente experimentou o que havia de pior no ser humano, mas ainda assim você continua seguindo em frente. Sem dúvida ter vivido toda essa história deve ter sido horrível. Fico imaginando, ouvindo tudo o que você contou, como deve ter sido sentir isso tudo na pele", disse Aomame, séria, mas extremamente franca, "Eu não acredito também que entre todas as pessoas do mundo que poderíamos encontrar nesse país imenso, justamente acabaríamos trombando com pessoas tão próximas da Chugoku-no-hime".
"Nossa, ela é tão famosa assim?", perguntou Li.
"Ô se é!", disse Yamada, com um espanto exagerado. Todos encararam ele nesse momento, e ele enrubesceu.
"Tsai Louan é uma lenda em toda a Ásia. É praticamente impossível encontrar uma única mulher soldado no meio desse mundo militar machista", disse Tengo. Era possível sentir um nojo ao falar a palavra "machista", mesmo sendo homem. Era a infeliz verdade, o mundo mostrava uma evolução, mas a Ásia ainda era muito machista. Ele prosseguiu: "E alguém como a Tsai, que nem mesmo famosos soldados masculinos chegam a ter um décimo da habilidade que ela tem, chamar de algo 'raro' é elogio. É sumariamente impossível uma mulher chegar onde ela chegou".
Li e Chou sorriram. No fundo seus corações estavam preenchidos com o imenso orgulho e gratidão de ter alguém como Tsai perto delas. E isso porque todos do pelotão do Pássaro Vermelho já sentiam todo dia esses sentimentos preenchendo suas almas, todo santo dia. Chen quebrou o silêncio:
"Ela é uma líder inspiradora, antes de qualquer coisa. O caminho mais fácil é ser um chefe. Ser um líder poucos optam, que não fica apenas na posição de comando. Mas ainda por cima ser alguém que inspira seus subordinados, é como uma rara flor que desabrocha uma vez a cada século. E temos noção que a Gongzhu é essa rara flor, e somos extremamente gratos a isso".
Chou, Li e Eunmi assentiram com a cabeça. Mas Tengo e Aomame ficaram em silêncio espantados apenas com o fato de Chen ter aberto a boca.
"Uau. E não é que ele fala?", disse Aomame, abismada, "Pelo menos ele guarda as palavras pros momentos certos. E fala de maneira perfeita".
Chen estava distraído, olhando para o outro lado. Talvez nem tenha ouvido direito.
"Bom, vamos arrumar as coisas e ir para Pequim?", disse Eunmi, indo até suas coisas.
"Nem pensar, isso é loucura", disse Aomame, elevando a voz, "Vamos passar a noite aqui".
"O quê? Mas você não quer encontrar o Saldaña? Eu também quero logo saber onde está o Capitão Miura! Esse era o acordo, Aomame!".
Aomame fitava Eunmi com um olhar impaciente. Tengo percebeu que era a hora de se erguer e explicar melhor a situação para a coreana.
"Calma, calma aí vocês duas. Não quero mais ninguém se esmurrando aqui, calma!!", disse Tengo, e Aomame virou pra ele balançando a cabeça, como se ela o perguntasse com um olhar o que ele estava pensando. Aomame se afastou, e Tengo se voltou para a coreana: "Eunmi, é perigoso. Acabamos matando e ferindo mais de uma dezena de soldados japoneses. Eles estão furiosos passando um pente fino em cada metro quadrado da região, é muito perigoso sair agora".
"Mas se tomarmos cuidado, podemos conseguir ir na surdina!", disse Eunmi, mas Aomame e Tengo balançaram negativamente a cabeça:
"Se ficarmos parados eles vão cada vez mais pensar que estamos nos distanciando. É melhor evitá-los pelas costas do que encara-los pela frente. Amanhã de manhã partiremos para Pequim. É aqui pertinho, dá algumas horas de caminhada. Só peço um pouquinho de paciência!", concluiu Tengo, e Eunmi se aquietou. Realmente o que ele dizia fazia sentido.
"Tudo bem. De manhã então, temos um acordo. Sem falta", disse Eunmi, se afastando de suas coisas, e voltando calada para a porta da caverna ficar sozinha junto de sua ansiedade.
12h58
Eunmi e os outros se juntaram a Aomame e Tengo em um local um bocado inusitado: uma caverna. Ali era um local que proveria um abrigo para o frio, e um bom esconderijo, além de um local para repouso, principalmente depois de tantas emoções vividas nas últimas horas. Tudo estava tingido com o alaranjado de uma fogueira que haviam acendido nos fundos da caverna. Em uma panela não muito grande Tengo estava cozinhando usando mesmo fogo. Um cheiro delicioso dominava o local.
A coreana estava sozinha na entrada da caverna, de braços cruzados, vendo os cristais da geada brilhando como um pó de diamante sobre as plantas. Quando sentiu o cheiro que vinha da parte interna da caverna, sua boca se encheu de água, e seu estômago reagiu, pedindo comida. Estava com muita fome. Conforme a coreana ia adentrando de volta à caverna vira que todos estavam dando risada e conversando junto de Tengo, que estava no comando da panela. Aomame estava sentada encostada num canto quieta, com sua cara séria de costume.
"Que cheiro bom. O que está fazendo?", perguntou Eunmi ao se aproximar.
"Eu adoro cozinhar para muitas pessoas! Usei todo o resto de macarrão que eu tinha, e fiz um prato que vai agradar chineses, japoneses, e é claro... Coreanos!", disse Tengo, e Eunmi se aproximou da panela, que estava tampada, e então o japonês abriu. Um vapor com um delicioso cheiro subiu no rosto de Eunmi, e aquele cheirinho a levou de volta para a casa da sua mãe. Para a simplicidade da infância. Para os tempos idos. Quando ela abriu os olhos depois dessa louca viagem viu o que havia na panela. Era uma sopa feita com macarrão chinês, com carnes, legumes, e molho shoyu.
"Minha nossa! Ramyeon!", disse Eunmi, radiante. A empolgação dela fez todos abrirem um belo sorriso. Exceto Aomame, que continuava quieta no seu canto, fechando os olhos, fingindo dormir para não ser incomodada.
"Pra gente isso aí é lamian", disse Li, falando nome do prato em chinês.
"Lámen, lámen, lámen! Lembrem-se de quem está cozinhando é um japonês. E vamos usar o nome japonês aqui! Hahaha!", brincou Tengo, pegando algumas tijelinhas para servir a lamén, "Senta aí, coreana! Vamos comer! Hora do almoço!".
Haviam apenas umas quatro tigelas similares. O resto eram copos improvisados como tigelas para comer. Era algo simples, mas o coração por trás era imenso.
"Vocês estavam fazendo o que esse tempo todo? Batendo papo?", perguntou Eunmi, esperando enquanto Tengo servia sua refeição.
"Sim! Tengo-san é gente fina!", disse Chou, "Ele estava contando da sua vida. Tengo e Aomame são da cidade grande, são de Tóquio! E o Tengo era professor de matemática".
"Opa, correção: um excelente professor de matemática", disse Tengo, entregando o almoço para Eunmi. Chou nessa hora deu risada, e Aomame virou o rosto, os observando, ainda com uma expressão séria.
"Como um professor de matemática entrou na Kenpeitai?", perguntou Eunmi, curiosa.
"Ué, a gente tem que vir de algum lugar, não é mesmo? Eu fui indicado, disseram que eu tinha uma alta inteligência, enfim, nunca achei que era pra tanto. Mas uma vez lá dentro fui subindo aos pouquinhos. A matemática me ajudou a entrar na Agência de Inteligência, mas lá dentro ela não me ajudou em quase nada, pra falar a verdade. Ainda tem um bocado de coisa pra conquistar, mas estou feliz onde estou", disse Tengo, terminando de servir todos. Ele então encheu a penúltima tigela, e se virou para Aomame, que estava atrás dele, "E estou feliz de estar com quem estou também".
Aomame se ergueu e foi até Tengo, pegar a tigela. Eunmi, ao vê-la se aproximar, reparou nas roupas ocidentais que a japonesa vestia. Pareciam a última moda, ela era uma pessoa extremamente elegante. Era até meio vergonhoso estar na frente dela fedendo e com uma roupa militar suja.
"E você? Qual sua história?", perguntou Eunmi, para Aomame. Ela ficou por um momento encarando Eunmi sentada sem dizer nada, e um silêncio perturbador dominou o recinto.
"Eu era uma assassina de aluguel. Uma pessoa me colocou na Kenpeitai, para que eu por meio dos serviços à nação pudesse ser absolvida dos meus crimes", disse Aomame, se virando e voltando para o seu canto.
"Uma pessoa?", perguntou Eunmi. Aomame não respondeu, ficou calada comendo.
"Longa história...", disse Tengo, vendo que sua parceira estava o encarando logo atrás.
Quando Eunmi provou a primeira colherada sentiu uma satisfação que a preenchia do dedão do pé até o último fio de cabelo. Não era nada elaborado, mas era um prato que tinha o que mais fazia uma comida parecer deliciosa: o carinho da sinceridade. Ao engolir quase pôde sentir o caldo descendo pelo esôfago e pousando no estômago vazio.
"Minha nossa, ficou simples, mas está delicioso. Como conseguiu essa carne?", perguntou Eunmi.
"Bom, essa carne nós pegamos de uns...", disse Tengo, mas Aomame prontamente o interrompeu:
"Nem queira saber, coreana. Apenas coma".
Todos estavam realmente com fome. Não havia muita fartura, mas a pouca comida era aproveitada a cada colherada, como se fosse um banquete. A concentração em comer era tamanha que por um longo tempo ninguém falou nada. Foi Aomame quem quebrou o silêncio:
"E você, coreana? Todos aqui se apresentaram e falaram um pouquinho de cada um enquanto você estava sozinha lá em cima. Acho que agora é sua vez".
Eunmi nesse momento ficou pensativa. O seu reflexo na sopa rebatia a luz que brilhava sobre seu rosto.
"É verdade, né? Acho que só a Gongzhu deve saber algo sobre mim, uma vez que ficávamos direto enquanto ela me treinava", disse Eunmi, erguendo o rosto e dando um sorriso, "Acho que eu nunca cheguei a me abrir para vocês, não é mesmo?".
"Bom, sempre existe uma primeira vez", disse Tengo, retribuindo o sorriso.
"Tá certo, vou começar então. Como sabem, meu nome é Ri Eunmi. Tenho 18 anos, nasci no dia oito de março", começou Eunmi, "De acordo com mamãe eu nasci numa montanha ao norte da península coreana. Meu pai engravidou minha mãe antes do casamento, e eles viviam viajando de lugar em lugar, buscando um local para se estabelecerem. De acordo com minha mãe, um belo dia resolvi nascer. E isso aconteceu justo quando eles passavam pelo Monte Paekdu".
Todos ouviam atentamente a história de Eunmi, mas apenas Tengo ficou chocado ao ouvir.
"Monte Paekdu? Minha nossa, só eu reparei nisso? Mais coreana que isso, impossível", disse Tengo, chamando a atenção para esse detalhe. Eunmi nessa hora sorriu para ele, feliz em ver alguém que conhecia sobre sua terra natal.
"O que tem esse monte? Eu nunca ouvi falar", disse Li, e pela expressão de todos os chineses ali, ninguém nunca havia ouvido realmente falar nesse local.
"Monte Paekdu é a montanha símbolo da Coréia. Tem até um mito de que o primeiro rei do reino da Coréia nasceu lá. E sua mãe era uma ursa", brincou Tengo, "Tá, os mitos japoneses também não têm o que defender, é um mais viajado que o outro. Espero que essa ursa só tenha sido peluda na 'área de diversão' lá embaixo, porque uma mulher toda peluda deve ser algo horrível!".
"Você realmente conhece, Tengo! Foi lá que eu vim ao mundo!", disse Eunmi.
"Claro que eu sei! É um local super importante para vocês, coreanos. Tem uma simbologia como o Monte Fuji é para nós, japoneses. Espero que você não use o fato de ter nascido no Monte Paekdu para ganhar o direito de ser a líder suprema da Coréia ou algo do gênero no futuro. Ninguém em sã consciência acreditaria que alguém veio ao mundo naquele lugar!".
"Hahaha! Pode deixar", disse Eunmi, "Bom, prosseguindo, minha infância foi tranquila, apesar das dificuldades de viver numa Coréia dominada pelo Japão. Papai trabalhava bastante, mamãe cuidava de mim. Sou filha única. Em julho desse ano meus pais decidiram que eu deveria me casar, e minha sorte era que o rapaz que eu estava interessada era também meu amor desde a infância. Nós tínhamos uma quedinha um pelo outro desde que éramos crianças! Tudo na minha vida estava encaminhado".
"Puxa, que legal. Poucas pessoas têm essa sorte, coreana", disse Tengo, "Qual o nome dele?".
"Park Si-mok", disse Eunmi, com tristeza em sua voz. Tengo e Aomame não entendiam o tom de sua voz, mas ao repararem na expressão de todos os chineses ali, parecia ser um capítulo triste da vida de Eunmi. Ela então prosseguiu: "Meu noivo, Si-mok, era uma ótima pessoa. E naquele momento apenas conseguíamos ver a felicidade que se abria à nossa frente, com os olhos arregalados imaginando tudo o que viveríamos", Eunmi fez uma pausa, e sua feição ficou ainda mais triste, "Tudo mudou quando nosso vilarejo, perto de Hyesan, no norte da Coréia, foi atacado. Eu não sei o motivo, mas isso também não interessa. O que importa é que meu noivo foi cruelmente assassinado na minha frente por um capitão do exército imperial japonês".
"O tal capitão Miura", disse Aomame, sem virar o rosto para Eunmi.
"Exato. Depois do ataque eu fui separada da minha família. E por ser jovem, fui mandada para servir soldados japoneses, como uma 'mulher de conforto'. Foi horrível, eu era abusada, estuprada, vivia num local péssimo e sujo, isso sem contar a brutalidade dos soldados japoneses contra mim e as outras garotas", disse Eunmi, com lágrimas nos olhos, mas com uma resolução firme em cada palavra que dizia, "Isso tudo até, vamos dizer, 'um outro belo dia' quando conheci um homem ocidental. Ele parecia ser russo, tinha o cabelo loiro e meio grisalho. Eu era puro ódio, e numa conversa ele disse que sabia uma pessoa que poderia me ajudar".
"Uma pessoa pra te ajudar na sua vingança?", perguntou Tengo, interessado.
"Sim. Ele me deu um dinheiro para que eu fosse para a Alemanha, atrás de um agente da SD alemã, chamado Ludwig Schultz. Eu o encontrei e consegui convencê-lo a vir comigo para a Ásia".
"Uau, Alemanha. Que coisa doida!", disse Tengo, admirado, "E como você conheceu a Hime-sama?", Tengo rapidamente voltou atrás, ao ver que havia se referido à Tsai pelo nome japonês, "Quer dizer, a Gongzhu?".
"Com o Schultz fomos parar em Xangai, e fomos atrás do meu primo, que era um espião que ajudava a Tsai. Fomos levar algumas informações para ela e assim a conhecemos. E junto, ganhamos esses valiosos amigos", disse Eunmi, se referindo aos amigos chineses, "Mas esse meu primo na verdade era um traidor disfarçado, mas já passou. Foi difícil, mas conseguimos lidar com ele".
"Uau. É uma baita estória. Você é nova, mas já viveu umas coisas bem intensas", disse Tengo, se arrependendo por ter menosprezado a coreana.
Aomame então se ergueu, parando na frente de Eunmi, com a fogueira entre as duas.
"É verdade, Tengo. É uma história impressionante mesmo, garota. Você infelizmente experimentou o que havia de pior no ser humano, mas ainda assim você continua seguindo em frente. Sem dúvida ter vivido toda essa história deve ter sido horrível. Fico imaginando, ouvindo tudo o que você contou, como deve ter sido sentir isso tudo na pele", disse Aomame, séria, mas extremamente franca, "Eu não acredito também que entre todas as pessoas do mundo que poderíamos encontrar nesse país imenso, justamente acabaríamos trombando com pessoas tão próximas da Chugoku-no-hime".
"Nossa, ela é tão famosa assim?", perguntou Li.
"Ô se é!", disse Yamada, com um espanto exagerado. Todos encararam ele nesse momento, e ele enrubesceu.
"Tsai Louan é uma lenda em toda a Ásia. É praticamente impossível encontrar uma única mulher soldado no meio desse mundo militar machista", disse Tengo. Era possível sentir um nojo ao falar a palavra "machista", mesmo sendo homem. Era a infeliz verdade, o mundo mostrava uma evolução, mas a Ásia ainda era muito machista. Ele prosseguiu: "E alguém como a Tsai, que nem mesmo famosos soldados masculinos chegam a ter um décimo da habilidade que ela tem, chamar de algo 'raro' é elogio. É sumariamente impossível uma mulher chegar onde ela chegou".
Li e Chou sorriram. No fundo seus corações estavam preenchidos com o imenso orgulho e gratidão de ter alguém como Tsai perto delas. E isso porque todos do pelotão do Pássaro Vermelho já sentiam todo dia esses sentimentos preenchendo suas almas, todo santo dia. Chen quebrou o silêncio:
"Ela é uma líder inspiradora, antes de qualquer coisa. O caminho mais fácil é ser um chefe. Ser um líder poucos optam, que não fica apenas na posição de comando. Mas ainda por cima ser alguém que inspira seus subordinados, é como uma rara flor que desabrocha uma vez a cada século. E temos noção que a Gongzhu é essa rara flor, e somos extremamente gratos a isso".
Chou, Li e Eunmi assentiram com a cabeça. Mas Tengo e Aomame ficaram em silêncio espantados apenas com o fato de Chen ter aberto a boca.
"Uau. E não é que ele fala?", disse Aomame, abismada, "Pelo menos ele guarda as palavras pros momentos certos. E fala de maneira perfeita".
Chen estava distraído, olhando para o outro lado. Talvez nem tenha ouvido direito.
"Bom, vamos arrumar as coisas e ir para Pequim?", disse Eunmi, indo até suas coisas.
"Nem pensar, isso é loucura", disse Aomame, elevando a voz, "Vamos passar a noite aqui".
"O quê? Mas você não quer encontrar o Saldaña? Eu também quero logo saber onde está o Capitão Miura! Esse era o acordo, Aomame!".
Aomame fitava Eunmi com um olhar impaciente. Tengo percebeu que era a hora de se erguer e explicar melhor a situação para a coreana.
"Calma, calma aí vocês duas. Não quero mais ninguém se esmurrando aqui, calma!!", disse Tengo, e Aomame virou pra ele balançando a cabeça, como se ela o perguntasse com um olhar o que ele estava pensando. Aomame se afastou, e Tengo se voltou para a coreana: "Eunmi, é perigoso. Acabamos matando e ferindo mais de uma dezena de soldados japoneses. Eles estão furiosos passando um pente fino em cada metro quadrado da região, é muito perigoso sair agora".
"Mas se tomarmos cuidado, podemos conseguir ir na surdina!", disse Eunmi, mas Aomame e Tengo balançaram negativamente a cabeça:
"Se ficarmos parados eles vão cada vez mais pensar que estamos nos distanciando. É melhor evitá-los pelas costas do que encara-los pela frente. Amanhã de manhã partiremos para Pequim. É aqui pertinho, dá algumas horas de caminhada. Só peço um pouquinho de paciência!", concluiu Tengo, e Eunmi se aquietou. Realmente o que ele dizia fazia sentido.
"Tudo bem. De manhã então, temos um acordo. Sem falta", disse Eunmi, se afastando de suas coisas, e voltando calada para a porta da caverna ficar sozinha junto de sua ansiedade.
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