Amber #120 - A tartaruga negra & o velho.
6 de dezembro de 1939
18h51
Pequim já havia caído na mão dos japoneses já havia mais de dois anos. O Império Japonês já havia se instalado na antiga capital do império milenar e uma verdadeira ditadura havia sido instaurada lá, restringindo liberdades e abusando da truculência contra os que fossem contra a ocupação nipônica. Porém, mesmo estando em guerra, pessoas tinham que viver suas vidas, e as coisas tentavam correr em seus eixos, na medida do possível. O Japão estava realizando uma dura investida mais ao sul do país no inverno daquele ano, mas Pequim já estava em suas mãos. E por mais que estivesse sob o governo japonês, a cidade enfim estava começando a respirar ares da industrialização, e deixando de ser apenas uma cidade histórica. E isso em partes agradava o povo que vivia ali.
“Olha isso, os japoneses estão investindo aqui”, disse Huang, ao ver algumas fábricas no caminho.
“Mão de obra barata, baixos salários, tudo para satisfazer a megalomania daquele imbecil do Hirohito”, disse Ho, revoltada, “Eu não duvido nada que as condições que eles colocam os chineses para trabalharem aqui devem ser as piores existentes”.
Tsai, que ia na frente, ao bisbilhotar pela esquina, fez um gesto com o braço para que parassem.
“Esperem um pouco”, sussurrou Tsai, “Dois soldados japoneses passando”.
“Patrulha noturna? Poxa, poderiam dar uma folga para eles para que ficassem debaixo das cobertas nesse frio”, sussurrou Schultz para Huang e Ho, “Meu pinto tá encolhido nesse gelo todo, tá ruim demais pra mijar”.
Já era noite, mas ainda havia algum movimento nas ruas. Pessoas fazendo as últimas compras do dia, naquele dia frio de dezembro. Porém a cidade devia ser guardada, então era possível ver a presença de guardas nas ruas. Saldaña e White estavam quietos, especialmente depois de tudo o que havia acontecido anteriormente antes de entrarem em Pequim. Pareciam mais conformados, era difícil dizer o que realmente se passava na cabeça deles. Talvez estivessem apenas cansados também. O que importa era que eles eram levados sem problemas por Ho e Huang, sem oferecer um pingo de resistência.
“Vamos, sem fazer barulho, por favor”, disse Tsai, tomando a frente. A Gongzhu era a guia. Sempre responsável tomava a frente, verificando todos os cantos, se haviam pessoas, soldados, ou qualquer coisa suspeita. Tudo bem que o clima frio do inverno, e o fato de estar de noite, facilitou muito na hora de caminhar sobre as ruas de Pequim. Schultz e os outros tomavam todo o cuidado para não fazer barulho, mas ao mesmo tempo era curioso bisbilhotar por trás das janelas de onde passavam as rotinas das famílias chinesas na época. Apesar das dificuldades, pareciam quentinhos, e mesmo com pouca comida, apreciavam com um sorriso, como se fosse um banquete.
“Nem parece que logo ali tá rolando uma guerra”, sussurrou Schultz, e Ho ouviu, dando um sorriso.
“Não é cem por cento da população que está no fronte, Schultz”, disse Ho, baixinho para Schultz, “Além do mais, existe muita racionalização de bens durante uma guerra. As pessoas que vivem longe das batalhas também estão travando uma guerra pela sobrevivência no meio da miséria imposta pela guerra que acontece nem tão distante daqui”
“É, verdade. E pra onde estamos indo? Ficar zanzando na cidade é perigoso, se um soldado nos achar, estamos fudidos”, disse Schultz, e no momento que Ho tomou ar para responder, foi Saldaña quem os interrompeu:
“Falta muito? Tô afim de dormir”.
Ho ao ouvir a voz do americano a interrompendo ficou desconcertada.
“Ei, mexicano, você não vai fazer nada pra fugir mesmo, não é?”, disse Schultz, e Saldaña resmungou consigo mesmo, “Eu nunca vi uma pessoa assim. Você poderia estar fazendo bagunça, gritando pra deus e o mundo, mas não. Você fica quieto”.
“Eu já disse, chucrute. Esse aí é orgulhoso que dá dó”, disse White, e Saldaña apenas ficou ouvindo com a feição emburrada.
“Não sei se isso é orgulho, ou se é burrice, francamente”, disse Schultz, “Não é mesmo, Ho?”.
Ho olhou para Saldaña e chacoalhou negativamente a cabeça.
“Ah, enfim, vai entender”, disse Ho, “Mas espera aí. Acho que sei onde a Gongzhu está nos levando. Se não me engano é logo ali”.
De fato Ho estava certa. Depois de pouco mais de cinco minutos de caminhada entre os becos de Pequim, Tsai viu uma casa grande, um sobrado, que se destacava com suas paredes verdes e detalhes em madeira. Era realmente uma mansão muito chique. Tsai foi em frente, com passos rápidos, até a porta, onde bateu três vezes.
“Já vai, um minuto!”, disse uma voz masculina.
Schultz viu em cima do batente da porta uma placa. Havia um baixo relevo de uma tartaruga com algo que parecia uma cobra em cima do seu casco, ao lado de dois caracteres chineses, que ele só reconheceu o primeiro.
“Escuta, ali em cima... É ‘misterioso’ e o quê?”, disse Schultz, se referindo aos dois caracteres chineses logo acima da porta.
“Xuanwu. Guerreiro Misterioso. Ou pode-se ler Guerreiro Sombrio também”, completou Huang.
Nesse momento um homem abriu a porta. Ele aparentava ter pelo menos uns sessenta anos, andava de bengala, e tinha um cabelo grisalho puxado para trás em um topete. Estava com a barba feita, e parecia até atlético, mesmo pra quem usava uma bengala.
O velho ao ver Tsai pousou seus olhos nela demoradamente. E então sem dizer nada, fechou a porta na cara dela.
“Espera, senhor Cheng! Não fecha, por favor. Precisamos de um lugar para passar a noite, e pensei que o senhor poderia nos ajudar”, disse Tsai.
O velho olhou para Tsai através da fresta da porta. Schultz se assustou com o olhar de ódio que o velho direcionava para a Gongzhu. Mesmo atrás dela era algo bem visível.
“A última vez que hospedei você e aquele palerma atrás de você me deu motivos o suficiente para que não os desse um teto para vocês pousarem pelo resto da vida, Tsai Louan!”, disse o velho Cheng. Schultz então achou que era com ele, uma vez que ele estava atrás de Tsai.
“Hã? Eu?”, disse Schultz, pasmo, apontando para si mesmo sem entender.
“Não, o outro atrás. Huang”, disse Ho.
“Isso foi há muito tempo, senhor Cheng, por favor, reconsidere”, disse Tsai, explicando, “Nós mudamos, nós crescemos, e não vai ter uma briga como foi antes”
Briga? Como assim? Eles destruíram uma casa numa briga de casal?, pensou Schultz, e Tsai prosseguiu:
“E estamos com duas pessoas perigosas. Precisamos de uma casa forte e bem guardada como a do senhor. E quando falo que precisamos, é porque realmente precisamos. Por favor, só até completarmos essa missão. Prometemos que vamos devolver a casa inteira”, disse Tsai, e o senhor Cheng olhou demoradamente para os olhos dela. Depois de uma pausa cheia de suspense ele balançou a cabeça olhando para baixo.
“Tudo bem, podem ficar. Mas se atrapalharem um segundo do meu sono, vou expulsar vocês no momento seguinte!”, advertiu Cheng, bem brabo. Depois que Tsai confirmou com a cabeça, fazendo uma reverência de gratidão, o velho abriu a porta, os recepcionando.
Schultz não conseguia acreditar. Parecia uma casa ocidental com tudo o que havia direito. Uma casa extremamente aconchegante, com lareira, até um grande lustre no centro. Escadarias, quartos, até um criado. Se a China inteira estava passando necessidade do lado de fora, ali do lado de dentro havia o maior luxo.
“Acho que o único que não conhece o senhor Cheng e você, certo Schultz?”, disse Tsai, tomando a frente. Schultz olhou para os lados, para Ho e Huang e ficou sem reação. A Gongzhu prosseguiu: “Ludwig Schultz, esse é o senhor Cheng. Ele é um dos homens de confiança do generalíssimo, e também líder do pelotão da Tartaruga Negra, um dos quatro pelotões de confiança da República da China”.
“O quê? Nossa! Alguém no nível da Tsai?”, disse Schultz, surpreso.
“Sim, do nível da Tsai e do outro líder de pelotão que você já chegou a conhecer. Adivinha quem é?”, perguntou Ho.
“Espera aí, não vai me dizer que é o Chao?”, disse Schultz, e Ho confirmou com a cabeça, “Inacreditável”.
“Aquele moleque é o líder do Pelotão do Dragão Azul. Eu sou o líder do pelotão da Tartaruga Negra, e a Tsai é a líder do Pássaro Vermelho”, disse Cheng, “Sejam bem vindos à minha casa, mas por favor, não façam bagunça. Eu estou sentindo meu corpo meio mole, acho que devo estar pegando um resfriado por conta desse inverno maldito”.
18h51
Pequim já havia caído na mão dos japoneses já havia mais de dois anos. O Império Japonês já havia se instalado na antiga capital do império milenar e uma verdadeira ditadura havia sido instaurada lá, restringindo liberdades e abusando da truculência contra os que fossem contra a ocupação nipônica. Porém, mesmo estando em guerra, pessoas tinham que viver suas vidas, e as coisas tentavam correr em seus eixos, na medida do possível. O Japão estava realizando uma dura investida mais ao sul do país no inverno daquele ano, mas Pequim já estava em suas mãos. E por mais que estivesse sob o governo japonês, a cidade enfim estava começando a respirar ares da industrialização, e deixando de ser apenas uma cidade histórica. E isso em partes agradava o povo que vivia ali.
“Olha isso, os japoneses estão investindo aqui”, disse Huang, ao ver algumas fábricas no caminho.
“Mão de obra barata, baixos salários, tudo para satisfazer a megalomania daquele imbecil do Hirohito”, disse Ho, revoltada, “Eu não duvido nada que as condições que eles colocam os chineses para trabalharem aqui devem ser as piores existentes”.
Tsai, que ia na frente, ao bisbilhotar pela esquina, fez um gesto com o braço para que parassem.
“Esperem um pouco”, sussurrou Tsai, “Dois soldados japoneses passando”.
“Patrulha noturna? Poxa, poderiam dar uma folga para eles para que ficassem debaixo das cobertas nesse frio”, sussurrou Schultz para Huang e Ho, “Meu pinto tá encolhido nesse gelo todo, tá ruim demais pra mijar”.
Já era noite, mas ainda havia algum movimento nas ruas. Pessoas fazendo as últimas compras do dia, naquele dia frio de dezembro. Porém a cidade devia ser guardada, então era possível ver a presença de guardas nas ruas. Saldaña e White estavam quietos, especialmente depois de tudo o que havia acontecido anteriormente antes de entrarem em Pequim. Pareciam mais conformados, era difícil dizer o que realmente se passava na cabeça deles. Talvez estivessem apenas cansados também. O que importa era que eles eram levados sem problemas por Ho e Huang, sem oferecer um pingo de resistência.
“Vamos, sem fazer barulho, por favor”, disse Tsai, tomando a frente. A Gongzhu era a guia. Sempre responsável tomava a frente, verificando todos os cantos, se haviam pessoas, soldados, ou qualquer coisa suspeita. Tudo bem que o clima frio do inverno, e o fato de estar de noite, facilitou muito na hora de caminhar sobre as ruas de Pequim. Schultz e os outros tomavam todo o cuidado para não fazer barulho, mas ao mesmo tempo era curioso bisbilhotar por trás das janelas de onde passavam as rotinas das famílias chinesas na época. Apesar das dificuldades, pareciam quentinhos, e mesmo com pouca comida, apreciavam com um sorriso, como se fosse um banquete.
“Nem parece que logo ali tá rolando uma guerra”, sussurrou Schultz, e Ho ouviu, dando um sorriso.
“Não é cem por cento da população que está no fronte, Schultz”, disse Ho, baixinho para Schultz, “Além do mais, existe muita racionalização de bens durante uma guerra. As pessoas que vivem longe das batalhas também estão travando uma guerra pela sobrevivência no meio da miséria imposta pela guerra que acontece nem tão distante daqui”
“É, verdade. E pra onde estamos indo? Ficar zanzando na cidade é perigoso, se um soldado nos achar, estamos fudidos”, disse Schultz, e no momento que Ho tomou ar para responder, foi Saldaña quem os interrompeu:
“Falta muito? Tô afim de dormir”.
Ho ao ouvir a voz do americano a interrompendo ficou desconcertada.
“Ei, mexicano, você não vai fazer nada pra fugir mesmo, não é?”, disse Schultz, e Saldaña resmungou consigo mesmo, “Eu nunca vi uma pessoa assim. Você poderia estar fazendo bagunça, gritando pra deus e o mundo, mas não. Você fica quieto”.
“Eu já disse, chucrute. Esse aí é orgulhoso que dá dó”, disse White, e Saldaña apenas ficou ouvindo com a feição emburrada.
“Não sei se isso é orgulho, ou se é burrice, francamente”, disse Schultz, “Não é mesmo, Ho?”.
Ho olhou para Saldaña e chacoalhou negativamente a cabeça.
“Ah, enfim, vai entender”, disse Ho, “Mas espera aí. Acho que sei onde a Gongzhu está nos levando. Se não me engano é logo ali”.
De fato Ho estava certa. Depois de pouco mais de cinco minutos de caminhada entre os becos de Pequim, Tsai viu uma casa grande, um sobrado, que se destacava com suas paredes verdes e detalhes em madeira. Era realmente uma mansão muito chique. Tsai foi em frente, com passos rápidos, até a porta, onde bateu três vezes.
“Já vai, um minuto!”, disse uma voz masculina.
Schultz viu em cima do batente da porta uma placa. Havia um baixo relevo de uma tartaruga com algo que parecia uma cobra em cima do seu casco, ao lado de dois caracteres chineses, que ele só reconheceu o primeiro.
“Escuta, ali em cima... É ‘misterioso’ e o quê?”, disse Schultz, se referindo aos dois caracteres chineses logo acima da porta.
“Xuanwu. Guerreiro Misterioso. Ou pode-se ler Guerreiro Sombrio também”, completou Huang.
Nesse momento um homem abriu a porta. Ele aparentava ter pelo menos uns sessenta anos, andava de bengala, e tinha um cabelo grisalho puxado para trás em um topete. Estava com a barba feita, e parecia até atlético, mesmo pra quem usava uma bengala.
O velho ao ver Tsai pousou seus olhos nela demoradamente. E então sem dizer nada, fechou a porta na cara dela.
“Espera, senhor Cheng! Não fecha, por favor. Precisamos de um lugar para passar a noite, e pensei que o senhor poderia nos ajudar”, disse Tsai.
O velho olhou para Tsai através da fresta da porta. Schultz se assustou com o olhar de ódio que o velho direcionava para a Gongzhu. Mesmo atrás dela era algo bem visível.
“A última vez que hospedei você e aquele palerma atrás de você me deu motivos o suficiente para que não os desse um teto para vocês pousarem pelo resto da vida, Tsai Louan!”, disse o velho Cheng. Schultz então achou que era com ele, uma vez que ele estava atrás de Tsai.
“Hã? Eu?”, disse Schultz, pasmo, apontando para si mesmo sem entender.
“Não, o outro atrás. Huang”, disse Ho.
“Isso foi há muito tempo, senhor Cheng, por favor, reconsidere”, disse Tsai, explicando, “Nós mudamos, nós crescemos, e não vai ter uma briga como foi antes”
Briga? Como assim? Eles destruíram uma casa numa briga de casal?, pensou Schultz, e Tsai prosseguiu:
“E estamos com duas pessoas perigosas. Precisamos de uma casa forte e bem guardada como a do senhor. E quando falo que precisamos, é porque realmente precisamos. Por favor, só até completarmos essa missão. Prometemos que vamos devolver a casa inteira”, disse Tsai, e o senhor Cheng olhou demoradamente para os olhos dela. Depois de uma pausa cheia de suspense ele balançou a cabeça olhando para baixo.
“Tudo bem, podem ficar. Mas se atrapalharem um segundo do meu sono, vou expulsar vocês no momento seguinte!”, advertiu Cheng, bem brabo. Depois que Tsai confirmou com a cabeça, fazendo uma reverência de gratidão, o velho abriu a porta, os recepcionando.
Schultz não conseguia acreditar. Parecia uma casa ocidental com tudo o que havia direito. Uma casa extremamente aconchegante, com lareira, até um grande lustre no centro. Escadarias, quartos, até um criado. Se a China inteira estava passando necessidade do lado de fora, ali do lado de dentro havia o maior luxo.
“Acho que o único que não conhece o senhor Cheng e você, certo Schultz?”, disse Tsai, tomando a frente. Schultz olhou para os lados, para Ho e Huang e ficou sem reação. A Gongzhu prosseguiu: “Ludwig Schultz, esse é o senhor Cheng. Ele é um dos homens de confiança do generalíssimo, e também líder do pelotão da Tartaruga Negra, um dos quatro pelotões de confiança da República da China”.
“O quê? Nossa! Alguém no nível da Tsai?”, disse Schultz, surpreso.
“Sim, do nível da Tsai e do outro líder de pelotão que você já chegou a conhecer. Adivinha quem é?”, perguntou Ho.
“Espera aí, não vai me dizer que é o Chao?”, disse Schultz, e Ho confirmou com a cabeça, “Inacreditável”.
“Aquele moleque é o líder do Pelotão do Dragão Azul. Eu sou o líder do pelotão da Tartaruga Negra, e a Tsai é a líder do Pássaro Vermelho”, disse Cheng, “Sejam bem vindos à minha casa, mas por favor, não façam bagunça. Eu estou sentindo meu corpo meio mole, acho que devo estar pegando um resfriado por conta desse inverno maldito”.
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