Amber - Encontros sob a sombra da aveleira (2)
25 de setembro de 1883
Com seus talheres, Briegel brincava com o cozido que sua mãe lhe havia servido de almoço, jogando a carne de um lado para outro. Ele sequer se recordava da garota que havia conhecido, e tinha marcado de se encontrarem. A vida continuava um tédio imenso, e os pais do jovem Heinrich continuavam apreensivos com a melancolia pela vida que o filho demonstrava.
“Heinrich, meu filho, coma direito. Comida não é para se brincar”.
E nesse momento Heinrich olhou para sua mãe, ainda com uma expressão frustrada no rosto. Uma expressão cansada de tudo aquilo. Enquanto todos estavam se casando, tendo suas vidas, Briegel continuava lá, sem perspectiva, sem absolutamente nada a se esperar da vida.
“Desculpa, não estou com fome, mãe”, disse Briegel, se erguendo da mesa e abandonando a refeição.
Depois que Briegel cruzou a entrada da cozinha, a mãe tentou ir até ele, preocupada com a atitude do seu amado filho. Foi então nesse momento que ela ouviu alguém tocando o sino de campainha da porta. Eram badaladas suaves, mais decididas. Briegel nesse momento parou no corredor, e viu sua mãe passando na sua frente, indo até a porta.
“Olá, senhora? Boa tarde!”, disse a pessoa do lado de fora, uma voz feminina, e nesse momento Briegel reconheceu a voz. Era a mesma mulher da festa de domingo, “Sinto muito vir incomodar, mas será que o seu filho está?”.
A mãe de Heinrich estava profundamente surpresa ao abrir a porta e dar de cara com aquela mulher. Ela ficou até muda por alguns instantes, com as sobrancelhas arqueadas e os olhos saltando-lhe a face. Briegel não viu a expressão da mãe, mas estranhou aquele silêncio de súbito ao abrir a porta e dar de cara com aquela mulher que ele não tinha a mínima ideia de quem era.
“M-minha nossa, v-você?”, disse a mãe de Heinrich, Ruth Briegel, dando um leve gaguejar. Era óbvio que a mãe de Briegel sabia exatamente quem ela era, mas a verdade é que a donzela era uma pessoa tão simples e humilde de caráter, que a jovem rapidamente abriu um simpático sorriso e quebrou um pouco o gelo daquela situação. A dama na porta perguntou sobre o filho da senhora Briegel, e terminou com outro sorriso cortês. Após ver o sorriso, a mãe de Briegel tomou postura e a respondeu: “Sim, pois não! Meu filho está aqui sim, um momento só que vou chamá-lo”.
A mãe de Briegel então a convidou para entrar e já foi se virando e falando alto: “Filho!! Tem visita para você!”, mas quando a senhora percebeu tomou um susto, pois Heinrich estava ali na sala já, mas não com uma cara frustrada e desmotivada de antes. Era um misto de surpresa e rabugice.
Encarando aquela mulher em sua sala, Briegel só tinha uma pergunta a fazer:
“O que raios você está fazendo aqui?”.
E então a mulher virou o rosto para o relógio cuco no meio daquela grande sala, deu uma longa olhada nos seus ponteiros, e depois se voltou para Briegel, com uma expressão feliz.
“São 13h21. Estava te esperando lá no campo de frente para a entrada da universidade, mas como você não veio, vim até aqui te chamar”.
Briegel balançou negativamente a cabeça olhando para baixo sem acreditar no que estava acontecendo. Ele fez um sinal com a cabeça para a mãe, pedindo para que ela os deixassem a sós, e ela vendo que não era nada demais deixou o filho ali. No fundo a mãe de Briegel estava até feliz que o filho havia trazido uma mulher para casa, mas o que Briegel sentia era um sentimento muito longe de felicidade em ver aquela mulher lá.
“Eu só tenho até às duas da tarde de intervalo. Meu cocheiro está esperando no portão da sua casa. Acho que o chá que preparei eventualmente deve ter esfriado, mas será que você pode vir comigo para conversarmos?”.
“Ah, nossa, não acredito que você veio até aqui!”, disse Briegel, birrento. A mulher tinha vindo até sua casa, e agora não tinha como fugir. Briegel ficava andando de um lado para o outro, enquanto a mulher da festa apenas ficava na porta o aguardando com um singelo sorriso. Quando Briegel a encarou, viu que não tinha como escapar. Balançou a cabeça negativamente sem acreditar, olhou para a mulher novamente, e anunciou para sua mãe em voz alta: “Mãe, eu vou sair, lá pelas três eu tô de volta!”.
Já dentro da carruagem os dois seguiram de volta. O cocheiro era bem hábil, e apesar da distância, o trajeto demorou mais ou menos de dez minutos. A mulher olhava para Briegel de vez em quando, mas pela cara ranzinza dele era um recado de que ele não queria papo com ninguém, olhando pela janela os campos verdes da linda Alemanha que se preparava para a chegada do outono.
O caminho até a Universidade de Heidelberg era sobre uma estrada de terra e vários campos, repletos de árvores e propriedades privadas com seus gramados verdes. Pássaros cantavam, e raios de sol iluminavam aquela paisagem superando o bloqueio das nuvens. Briegel se sentia bem vendo aquilo, era algo difícil de se explicar. Ele havia passado a vida inteira por aquela paisagem, mas nunca havia reparado da maneira que havia reparado.
Algumas vezes ele olhava para a mulher, e era curioso quando o olhar dos dois se encontravam. Talvez a primeira impressão não havia sido das melhores, e a segunda talvez tenha sido tão pior quanto, dado à sua insistência em chegar ao ponto de ir buscá-lo em sua própria casa. Mas havia algo naquela mulher que o fazia se sentir bem. Apesar de dez anos mais velha, havia algo que o dizia que poderia confiar nela, algo que não era visível aos olhos. Ela parecia alguém disposta a ajudar, não importasse a resposta que recebesse, fosse negativa ou positiva. Isso era extremamente difícil de se achar num mundo que acham que devemos sempre nos erguer usando nossas próprias pernas, ir a luta, sem a ajuda de ninguém.
Aquela mulher parecia estar disposta a fazer o que nenhuma pessoa tinha o intuito de fazer: se baixar ao nível da pessoa e, junto dela, subir juntos.
Chegaram sem problemas até o local que ela havia marcado. De fato havia uma aveleira, e sob sua sombra, uma mesinha redonda com tampo de vidro e cadeiras brancas. A mulher foi na frente, verificar a chaleira.
“Muito bom, ainda está morno! É de camomila, você quer açúcar?”, disse a mulher ao chegar na mesa que ficava sob a sombra de uma árvore, num campo de frente à entrada da Universidade de Heidelberg. Ela já havia se despedido do cocheiro, e pedido para ele aguardasse para levar Briegel de volta. A mulher apontou com a mão, pedindo para que Briegel se sentasse, enquanto ela servia as xícaras.
“Eu tomo sem açúcar mesmo, obrigado”, disse Briegel, reforçando com um gesto com a mão.
Ela se sentou e colocou um torrão de açúcar, mexendo com uma colher. Naquele silêncio, onde só se ouvia o vento, pássaros, e o tintilar da colher na xícara de porcelana, a mulher prosseguiu:
“Fica difícil conversarmos sem eu saber o seu nome. Como você se chama?”.
Briegel ficou um tempo parado olhando para o lado, pensativo. A mulher rapidamente estranhou, e o encarou também, não entendo porque ele demorava aquele tempo em falar algo tão óbvio como o próprio nome.
“Falkenhayn. Me chame de Falkenhayn”, disse Briegel, mas estava escrito em sua cara que aquilo era mentira.
“Você mente muito mal. Mas tudo bem, eu te chamo disso, de Falkenhayn”, disse a mulher, e Briegel ao ouvir isso ficou desconcertado. Parecia que ela além de tudo era vacinada contra mentiras. Ela prosseguiu: “Então me chame de, vamos ver… Poincaré”.
Se era óbvio que Briegel havia mentido sobre seu nome, era ainda mais claro que a mulher havia mentido também sobre seu nome, uma vez que ela inflexionou antes de falar o seu nome, uma coisa que ninguém faz. Porém ela falou com um tom tão firme, e com uma entonação tão sólida, que Briegel não duvidou que ela estivesse falando a verdade, e que ele era o espertalhão ali que a havia enganado, dizendo um nome falso.
“Então o que você, frau Poincaré, quer tanto conversar comigo? Deve ser algo importante para a senhora ter ido até a minha casa me buscar. Temos menos de meia hora, quem te ser rápido”, disse Briegel, e a Poincaré terminou de beber o chá e pousou a xícara de volta na mesa.
“Sou solteira, é melhor me chamar de fräulein Poincaré”, disse Poincaré, trocando a flexão de senhora (frau) pela senhorita (fräulein), “O que eu quero te ensinar é bem simples. Mas não é algo que você vai colocar em prática agora e ter resultados amanhã. Se conseguir, ótimo, mas meu objetivo é que hoje você apenas me ouça, monsieur Falkenhayn”.
“Sou todo ouvidos”.
“Quando eu te disse que conseguiria te colocar no exército, e te ajudar a conquistar tudo o que você sempre quis, eu não estava mentindo. Existe algo infalível para te colocar lá, e tudo o que você precisa está bem aqui”, disse Poincaré, apontando com o indicador na sua cabeça. Briegel por um momento ficou olhando aquilo sem entender, ele sequer havia percebido que ela apontava para a própria cabeça.
“Na cabeça? O que você quer dizer?”, perguntou Briegel.
“Que o primeiro passo é você visualizar o seu objetivo, monsieur Falkenhayn. Pois é onde tudo nasce. Precisamos de uma semente, precisamos de algo inicial, primordial. E tudo começa na sua cabeça, todos os objetivos que temos na vida, todos os anseios, tudo o que queremos ser”, disse Poincaré, ainda com o indicador sobre sua própria cabeça, “Todas as coisas que já foram realizadas por qualquer Homem, começaram com um mísero pensamento”.
Briegel ficou olhando sério para a Poincaré, a encarando, sem dizer nada. Ela prosseguiu:
“Na nossa mente tudo é possível. As coisas no mundo físico são conquistadas com muita luta e dedicação, mas na nossa mente conseguimos criá-las a qualquer momento numa velocidade instantânea. E isso é algo extremamente importante”.
Ele olhava para os lados em silêncio, mas prestando atenção, dando uma chance para ouvi-la do começo ao fim:
“Ver na nossa cabeça o que desejamos é o primeiro passo para materializar isso tudo na nossa realidade. Essa é a fagulha que realiza todos os nossos objetivos, e ter essa chama formada na nossa cabeça é mais do que meio caminho andado rumo ao objetivo”.
A donzela Poincaré era bem incisiva. Suas palavras eram cheias de decisão, ela realmente parecia ter certeza sobre tudo o que ela falava:
“Por isso, mesmo que tudo pareça que está contra, quero que você faça o que vou te pedir, Falkenhayn. Quero que se veja num futuro, não muito distante, aceito no exército. Você já como um homem forte, realizado, fazendo tudo o que você sempre quis. E não quero apenas que você imagine isso como algo distante, quero que você acredite”.
Algo parecia estar dando errado. Briegel ao ouvi-la nesse momento a encarou, e conforme ela ia falando, mais ele ia ficando brabo. Era visível na maneira que ele cerrava os olhos, mesmo que ele estivesse segurando todo aquele sentimento.
“Quero que você sinta esse calor no estômago de quando estamos prestes a realizar algo. Esse sentimento de coragem, como se você já estivesse lá. Pois a verdade é que você vai realizar, não importa o que aconteça. Por isso eu quero que você se imagine, sonhe, pois sonhar é de graça. Quero esse incentivo, e que essas boas energias geradas desse sentimento pavimentem o caminho até o objetivo. Mas para isso quero que tente, e nessa primeira etapa, que isso seja apenas na sua mente”.
E então ele, que já dava sinais de que não aguentava mais, se ergueu subitamente. Bradando em voz alta, ele disse:
“Chega dessa asneira. Não sei porque raios estou perdendo meu tempo aqui”, disse Briegel, furioso, se erguendo da cadeira. A dama Poincaré, assustada, também se ergueu, enquanto o via deixando o local, indo até a estrada de volta para casa.
“Não, espere! O que eu estou dizendo é verdade!”, disse a donzela Poincaré, enquanto corria ao seu encontro, “Monsieur Falkenhayn, peço apenas que me dê uma chance!”, e nesse momento ela o puxou pelo braço, e ele se virou, com o fúria no olhar. Ela concluiu: “Você não tem nada a perder. E quando isso der certo, você vai ver que você vai poder aplicar isso pelo resto da sua vida em absolutamente tudo. Ter uma mente positiva e focada é o grande segredo para que nós conquistemos absolutamente tudo na vida. Apenas dê a si mesmo uma chance!”.
Mas Briegel soltou-se dela e sem nem ao menos virar para se despedir, foi embora em silêncio, em passos decididos. Pela forma que ele pisava na grama, era claro que ele estava realmente furioso.
“Nos vemos então depois de amanhã! Às uma da tarde! Estarei aqui, aguardando!”, disse a pobre Poincaré, enquanto Briegel tomava a estrada a pé de volta para casa.
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