Amber - Encontros sob a sombra da aveleira (3)
27 de setembro de 1883
A senhorita Poincaré estava terminando de estender o lençol na mesa, posta sob a sombra da mesma aveleira, quando ouviu os passos de alguém se aproximando, caminhando pela grama. Ainda faltavam dez minutos para às uma da tarde, e quando ela olhou pro lado e viu que era Briegel, ela ficou extremamente surpresa em vê-lo ali.
“Minha nossa, incrível! O senhor ainda chegou mais cedo do que combinamos, monsieur Falkenhayn!”, disse Poincaré.
“Boa tarde, fräulein Poincaré”, disse Briegel, tomando a iniciativa e a ajudando com as cadeiras, embora ainda estivesse com o rosto bem rabugento como sempre, “Não choveu nesses dias, então o cocheiro veio mais rápido. Não tinha noção do tempo que gastaria para vir aqui”.
Era curioso como os dois se tratavam. Obviamente a conversa dos dois era em alemão. Mas Poincaré, claramente uma donzela francesa, chamava Briegel de “monsieur” Falkenhayn, enquanto Briegel, um jovem alemão, a chamava de “fräulein” Poincaré, usando os honoríficos em suas respectivas línguas.
Tão logo os dois aprontaram a mesa, ambos se sentaram e se serviram de chá, iniciando a conversa.
“Por que você faz isso?”, perguntou Briegel, direto ao ponto.
“Eu já disse, gostei de você. Desse seu jeito de ser. Você é jovem, e eu também na minha época tive uma pessoa que me ajudou a ter esse tipo de pensamento. E se uma pessoa nos ajudou, seríamos muito egoístas se não ajudássemos outros de volta. De ter noção de que tudo o que quiser pode ser conquistado, basta ter uma atitude mental correta”, disse Poincaré.
“E você conquistou tudo o que você queria?”.
“Até o momento, o que queria, sim. Claro que a vida apronta seus desvios de caminho, mas basicamente tudo o que quis, sim”.
“Incluindo um casamento?”.
Dessa vez Poincaré ficou séria. Ela não achava que o êxito feminino era constituir um casamento. Era uma pessoa bem livre e desimpedida, uma pessoa com certeza muito a frente de seu tempo, das mulheres do século XIX.
“Eu não tenho nada contra casamento. Apenas não encontrei a pessoa correta até hoje. Enquanto isso, gosto de ler, me divertir, dançar, e tenho minha profissão”, disse Poincaré.
“É curioso ver uma mulher assim, tão independente”.
“Te impõe algum medo, monsieur Falkenhayn?”, disse Poincaré, com um olhar provocador. Não era intimidador de forma alguma, mas era impossível ficar quieto diante daquele olhar. E Briegel a respondeu:
“Acho que um pouco, sim. Assusta de início”.
“Pois o monsieur não devia temer nada. Não existe muita coisa de diferente de mim para as outras mulheres. Hoje em dia talvez seja raro uma mulher letrada, e talvez seja até impensável uma mulher beirando os trinta que não tenha se casado ainda, mas não quer dizer que eu não queira, por exemplo, constituir família”, disse Poincaré, e Briegel se surpreendeu com a exposição do caráter dela, “Apenas quero fazê-lo quando eu bem entender. No momento que eu achar que deve ser feito. Não no momento que a sociedade pressiona”.
“Muito bem. É interessante conhecer um pouquinho de você. Qual seria a lição de hoje?”, perguntou Briegel, e Poincaré iniciou:
“Quero expandir um pouco a linha do que foi dito ontem. Sabe, mentalizar o objetivo, a meta, é algo imprescindível. Então passar para o que estou prestes a te ensinar hoje é essencial que as ideias de ontem sejam assimiladas e postas em prática”, disse a Poincaré, e nesse momento ela olhou para o céu. Estava ensolarado, sem nenhuma chance de chuva. Ela então comentou: “Hoje ainda vai chover. Tenho certeza disso”.
Briegel tomou um gole de chá e depois da fala da donzela olhou para o céu azul. Não tinha nem mesmo um sinal de que fosse chover. Nem sequer uma nuvem naquele momento. O olhar dos dois se encontraram em silêncio, e então Briegel se acanhou quando algo lhe veio à mente:
“Sobre antes de ontem, aliás, eu peço desculpas. Mas parando para pensar um pouco, tudo aquilo que você disse fazia sentido. Acho que nessa vida louca onde cada um só pensa em si mesmo, a gente até não consegue acreditar quando uma pessoa decide nos ajudar de coração, sem esperar nada em troca”, disse Briegel, cabisbaixo, relembrando o que aconteceu dois dias atrás, “Eu fiz um teste, e deu muito certo. Coisa besta mesmo, mas não achei que foi coincidência”.
“É verdade? Me conta então!”, pediu Poincaré, interessada no que ele iria dizer, e Briegel contou seu relato:
“Ontem, enquanto eu caminhava de volta, me deu muita vontade de comer um doce típico daqui da Alemanha, os chineques. Acho que você deve conhecer são em forma circular, meio enrolados…”, disse Briegel, e Poincaré confirmou com a cabeça que os conhecia, e ele continuou o relato, “Então, enquanto caminhava para minha casa, pensei: queria muito comê-los naquele dia, como sobremesa mesmo, depois da janta”.
“E então?”, perguntou Poincaré.
“Fiquei me imaginando comendo os que minha mãe faz. Não é porque é ela quem os faz, mas são realmente deliciosos. Mas lembrei dessa coisa toda de poder da mente que você disse, e resolvi dar uma chance. Senti esse ‘calor no estômago’ que você citou. Cheguei em casa, troquei de roupas, e desci para jantar. E depois da janta minha mãe aparece com uma travessa de chineques que ela havia feito à tarde, enquanto eu estava voltando para casa”.
“Uau, realmente incrível! Você deu uma chance, e a coisa aconteceu! Realmente, não foi uma coincidência. Às vezes essas coisas acontecem exatamente para nos mostrar o caminho correto. E que o caminho correto é esse mesmo: acreditar”, disse Poincaré, e Briegel confirmou com a cabeça. Ela prosseguiu: “Pois bem, então deu pra notar que você deu o braço a torcer e tentou. Isso pode ser aplicado a muitas coisas na sua vida, mas o que quero ensinar é algo que potencializa muito mais isso tudo”.
“Espero que não envolva nenhum ritual de magia negra ou algo do gênero”, brincou Briegel, e Poincaré até se assustou ao ver que aquele jovem rabugento tinha um resquício de bom humor.
“Nada, não tem nada a ver. O que quero dizer tem a ver com a palavra. Mas não quero entrar em méritos de religião, e sim trazer isso de uma forma prática e bem didática. Você vai poder aplicar isso, e aliado com o pensamento correto, o céu será o limite para o crescimento”.
“Palavra? Como assim? Palavra de Deus?”, perguntou Briegel, já meio descrente do que ela estava tramando.
Poincaré subitamente e olhou para o céu, como se algo lhe tivesse chamado a atenção. Ela sorriu. Briegel virou o rosto para onde ela olhava e não viu nada, exceto algumas nuvens no horizonte.
“Não é sobre religião, ou algo do gênero. A palavra é como um mecanismo para tornar o desejo que está na nossa mente em realidade. Colocar para fora, monsieur Falkenhayn, dizer para si mesmo em forma de palavras, faz com que as engrenagens do destino comecem a se mexer para que as coisas aconteçam”, disse Poincaré, e Briegel prestava atenção, interessado.
“Sempre achei meio coisa de gente doida falar sozinho”, disse Briegel, levando a sua boca alguns biscoitos.
“Pode parecer para os outros de fora. Mas para você, te ajudará a não apenas acreditar no que vai acontecer, como a palavra te fará realizar o que você quiser. Farei isso, serei aquilo, ou tal coisa vai acontecer”, disse Poincaré, dando ênfase nas últimas expressões, apontando com a mão em direções diferentes para tornar ainda mais enfático, “Nós somos os seres que possuem o dom da fala. E a fala sempre teve um papel importantíssimo no nosso desenvolvimento”.
Briegel continuava quieto, ouvindo. Ela prosseguiu:
“Pois a fala é a intenção. Quando você fala, você exprime a sua determinação. Até as pessoas ao redor começam a acreditar também, e isso ajuda ainda mais para que as coisas aconteçam. Se ficamos apenas vivendo passivamente, por mais que pensemos nas coisas, elas demoram para se realizar”.
“Faz sentido. Parece prático”, disse Briegel, e ela confirmou com a cabeça, prosseguindo:
“E essa intenção pura, afasta quaisquer resquícios de azar, por exemplo. Falar é uma energia que é gerada pelo nosso corpo, é você pegar o pensamento e externar. E uma vez que você o transforma em energia, essa energia fará com que essa coisa aconteça. É a vontade do ser humano, e essa força faz com que sejamos capazes de realizar qualquer coisa imaginável”.
Briegel nesse momento olhou para ela, balançando a cabeça, confirmando. Ele olhou para a xícara, bebeu mais um pouco, e virou seu rosto para a faculdade, a contemplando.
“Estou começando a gostar dessas coisas que você fala, fräulein Poincaré. Dá vontade de acreditar e tentar”, disse Briegel.
“Pois eu vou te provar que isso pode acontecer”, disse Poincaré, quase como se aceitasse o desafio. Briegel então olhou para ela, com um sorriso irônico.
“Ah, é? E como pretende isso?”, disse Briegel, se debruçando com os braços sobre a mesa, com um sorriso ardiloso no rosto.
“Eu já o fiz”, disse Poincaré, olhando para cima, sorrindo.
Briegel a princípio não entendeu o motivo dela ter elevado a cabeça, mas quando percebeu decidiu segui-la, e voltou seu olhar para entre os galhos acima. Ele ficou surpreso quando vira que não via mais o azul do céu completo acima dele. Ele se ergueu da cadeira e se afastou da sombra da árvore, de forma que ele pudesse ver o céu inteiro.
O jovem se surpreendeu ao ver que aquele céu azul e limpo de minutos atrás havia dado lugar a nuvens, deixando o azul do céu competindo poucos espaços no meio daquelas nuvens que pareciam de algodão.
“Mas hoje não tinha cara que ia chover! Como isso é possível?”, perguntou Briegel, e nesse momento ele percebeu que a donzela Poincaré o olhava com um sorriso nos lábios.
“Basta usar a palavra, monsieur Falkenhayn. Tudo na vida pode se realizar, se acreditarmos, e se essa energia for colocada para fora por meio da palavra”, disse Poincaré, se erguendo da cadeira, e se aproximando de Briegel, “Meu intuito na verdade não era fazer chover, mas fazer com que você acreditasse que isso era possível. A natureza confirma, enviando o fenômeno na hora certa”.
Briegel olhou demoradamente para a Poincaré. E ela também mantinha o olhar sobre ele. De fato aquela mulher tinha algo de especial. Ela definitivamente não era como as outras. Ele só não sabia exatamente o quê. Mal sabia que as engrenagens da vida dos dois estavam prestes a se engatarem juntas, e quando isso acontecesse, a união seria tão forte que giraria de tal forma que as duas pareceriam uma só.
“Bom, até depois de amanhã, certo? Eu prometi que viria aqui todos os dias, não faltarei no último, com certeza”, disse Briegel, e Poincaré assentiu.
“Sim, claro! Estarei esperando aqui, nesse mesmo lugar”, disse Poincaré, e Briegel se despediu.
Como sempre, Briegel voltava caminhando, refletindo sobre tudo o que haviam conversado. Era sempre muito conteúdo. Como era uma caminhada considerável, o jovem Briegel olhava para o céu, vendo as nuvens se unindo, e se tornando cada vez maiores.
Tomara que não chova até eu chegar em casa, pensava Briegel, desejando com força.
A verdade é que, apesar do tempo estar se fechando, e cada vez mais e mais nuvens escuras dominassem o céu, foi apenas quando Heinrich Briegel cruzou o portão de casa, e colocou a chave na fechadura, que sentiu uma gota de chuva cair na sua mão, tímida. Ele sorriu e entrou em casa. Mal se passaram cinco minutos e, quando ele olhou pela janela, uma refrescante chuva de verão caía, abrandando o calor depois de um dia ensolarado.
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