Meu vizinho, senhor Aurelindo.
No dia 14 de agosto eu estava aqui no meu Wii U jogando. Tinha acabado de instalar Splatoon, aquele divertido jogo de tiro onde as pessoas têm como objetivo jogar tinta por todo o cenário e ganhar do adversário. Eu tinha acabado de instalar o jogo quando ouvi uma voz na rua: "Por favor, alguém me ajuda, alguém por favor, meu pai tá morrendo!".
A voz tinha um tom de choro, fui correndo até a varanda e vi minha vizinha na rua implorando para que alguém aparecesse com ajuda. Eu a conhecia, e era óbvio que eu sabia de quem ela falava: o pai dela, o qual ela clamava por ajuda, era meu vizinho, o senhor Aurelindo.
Quando eu era criança eu não gostava muito dele. Sempre tava com uma cara emburrada, e eu sempre o encontrava quando saía com meu pai para buscar pão de manhã nos fins de semana. Meu pai dizia para eu dar bom dia para ele, e eu sempre o cumprimentava meio sem gosto. Porém, conforme eu fui crescendo, ele se mostrava bem simpático.
Muitas vezes eu o via varrendo a calçada, naquela casa feia com cor de cimento, que dividia o muro aqui em casa. Era uma casa alta onde morava ele com alguns filhos e suas famílias, num terreno enorme. Minha mão detestava pois como o muro era bem alto, ás vezes parecia que ele subia na laje dele pra ficar espiando a nossa casa.
Particularmente nunca liguei pra isso. Mas a amizade ia aumentando. Ele se mostrara bem gentil, tinha dias que a gente passava bem mais do que o cordial "bom dia, seu Aurelindo" e ficávamos falando jogando papo fora. Eram poucos, mas bons minutos.
Porém a idade foi chegando. Aquele senhor que ficava varrendo a calçada, logo não estava mais varrendo. Andava meio troncudo, depois começou a usar uma bengala. Depois trazia consigo um banco e sentava ali na calçada, na frente do portão, vendo o cachorro dele fazer bagunça aqui e ali.
Mas um dia ele passou mal, foi hospitalizado, e eu não o vi mais. Isso foi mais ou menos no fim do ano passado. Nem mesmo ficava mais sentado na frente do portão.
Sentia falta dele, mas também sabia que envelhecer era implacável.
Quando desci e avisei minha mãe dos clamores da vizinha por ajuda, pegamos a chave e fomos lá. Ela, aos prantos, berrava: "Meu pai tá morrendo, eu não acredito, meu pai tá morrendo agora!".
Minha mãe entrou e foi acudi-la e ver como estava o senhor Aurelindo. Mas eu fiquei do lado de fora, vendo os netos todos desesperados chamando pelo SAMU, querendo telefone da base policial do bairro, ou de simplesmente alguém que pudesse ajudar. Quando minha mãe voltou ela disse que ele estava com o rosto roxo, respirando fraco, deitado na cama.
Não demorou muito para o SAMU chegar. Os paramédicos desceram da ambulância equipados e foram sem demora adentrando na casa. Do lado de fora eu os via adentrando o imóvel, e ficava recitando mantras mentalmente torcendo para o melhor. Não demorou nem dois ou três minutos e eles saíram, pegando uma prancheta com papel. Um dos netos perguntou para o paramédico o motivo daquilo, e o médico respondeu:
"Não há nada que possamos fazer".
E então todos na casa, que eram muitos, caíram em prantos quase que em uníssono.
E naquela hora eu fiquei pensando: parece que é o fim mesmo. Esse homem nasceu provavelmente no meio do sertão do nordeste, veio há décadas fazer a vida aqui em São Paulo, trabalhou, teve sérios problemas de alcoolismo e, de acordo com a minha mãe, espancava muito a esposa, que parece que não aguentou e faleceu bem antes dele. Mas depois não se casou de novo, e tinha tomado jeito. Terminou de criar os filhos, e era um excelente avô. Uma das netas devia ter uns vinte anos, claramente a que mais era apegada a ele.
Um homem que viveu tanta coisa, que viu tanta coisa, estava em seus últimos momentos ali, a poucos metros de mim. Será que o jovem Aurelindo imaginava se ele conheceria alguém, ou tinha ideia de quem estaria presenciando seus últimos momentos naquele quatorze de agosto?
Naquele momento, o filme se passou na minha cabeça. Aquele senhor viveu e viu muita coisa. E naquele momento de despedida, entre todos daquela família imensa que ele criou, estava um vizinho no portão que tinha idade para no mínimo ser o neto dele. Uma pessoa que talvez ele nem imaginava que existiria, e que estaria ali, presenciando o fim de sua trajetória.
Seu Aurelindo morreu em paz, de velhice, rodeado por seus familiares próximos que choravam por não ter mais o querido pai e avô mais por perto.
Vá em paz, vizinho.
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A causa da morte não foi COVID19. Parece que foram causas naturais. Ele já estava abatido por conta de doenças que aparecem por conta da idade, e, de acordo com seus familiares, ele almoçou, disse que ia tirar um cochilo, e teve uma espécie de engasgo na cama enquanto dormia.
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