Livros 2021 #6 - Escravidão (2019)

Terminei ontem a leitura do livro Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugual até a morte de Zumbi dos Palmares (2019), o primeiro volume da trilogia que ainda está sendo lançada pelo jornalista Laurentino Gomes. Um livro sobre um assunto triste, mas necessário para que todos reconheçamos as duras cicatrizes que a escravidão deixou em nosso país.

Como o próprio sub-título sugere, o livro trata em suas quatrocentas e poucas páginas de pouco mais de dois séculos de História. Não é escrito por um historiador, mas Laurentino consegue trazer muito dessa metodologia de historiador na composição da obra, como uma dedicação à pesquisa e levantamento de dados, visita a locais, acesso a documentos e uma extensa bibliografia. E por ele ser um jornalista consagrado consegue transpor pra nós, leitores, todo esse levantamento de uma maneira bastante acessível, que aguça nosso interesse no livro.

Ao mesmo tempo estou lendo 1808, o primeiro livro da primeira trilogia histórica que ele escreveu, e senti uma evolução incrível: o tipo de amadurecimento que só o tempo traz mesmo ao escritor. Escravidão ficou um texto riquíssimo do começo ao fim, mesmo que ainda tenha os vícios de linguagem do próprio Laurentino, como repetir informações (dizendo que tal coisa foi citada no capítulo anterior, etc), e manter um assunto restrito a cada capítulo, sem criar uma ligação ou continuidade entre eles. Não são críticas, são mais as característica da escrita dele.

Eu gosto muito de como o Laurentino organiza o tempo nesse livro. O livro, mesmo tratando de histórias que se passam em mais de dois séculos, iniciando no primeiro leilão de cativos em 1444 em Algarve, Portugal, até a morte de Zumbi dos Palmares em 1695 e a descoberta do ouro em Minas, não se atém necessariamente a mostrar acontecimentos em linha reta. Laurentino divide em grande parte por temas, e se debruça sobre eles, discorrendo ás vezes partindo do passado colonial até a época atual. 

Um exemplo: em um dos capítulos onde o tema foram as tribos africanas que eram escravizadas por outros africanos, onde negociavam essas vidas capturadas com os portugueses para servirem de mão de obra na colônia brasileira, o autor fala de como essas pessoas tiveram suas identidades, origem, cultura e costumes perdidas. E então ele cita o documentário Brasil: DNA África onde por meio de exames de ancestralidade genética, diversas pessoas negras brasileiras puderam descobrir suas ascendências perdidas na África na época da imigração forçada. Inclusive mostra o encontro de um desses descendentes com um líder tribal atualmente, questionando o porquê de tanta crueldade ter acontecido no passado. O desfecho é uma das partes mais emocionantes do livro.

Uma coisa que eu gosto também nesse livro é a mistura de fatos históricos com estórias mais particulares para ilustrar o maior número de perspectivas da mesma narrativa. Em um determinado capítulo o autor nos explica em como havia uma repreensão à religião africana por meio da Igreja, com batismos forçados (não com a imersão tradicional, e sim colocando sal na boca dos escravizados e jogando água benta), e em como até mesmo a escravidão era um negócio lucrativo para os Jesuítas, que tanto lucravam com dinheiro e escravos para suas igrejas, como até usavam a prerrogativa que escravizar a África era algo necessário para "levar a palavra de Deus para os africanos hereges".

E junto desse tema, Laurentino fala sobre a incrível história real do também jesuíta, o padre Pedro Claver, um padre bondoso e correto no meio de tanta corrupção, que por iniciativa própria se dedicou a cuidar e dar alento aos pobres escravos que cruzavam o Atlântico: curando feridas, os alimentando e hidratando, dando roupas e conforto depois das barbaridades que viviam dentro dos navios negreiros. Ele se dedicou em corpo e alma, e por quarenta anos existem estimativas que ele ajudou mais de trezentos mil escravos. Uma única pessoa se dedicando a isso sozinha. Isso é muito louco.

Essa coisa de mostrar informações em diversos planos é algo que bons jornalistas sabem fazer, e no caso de um livro com um assunto tão marcante, é uma contribuição excepcional que Laurentino Gomes nos dá.

Por fim, o livro tem muitos temas, e fica difícil citar aqui todos. Eu passei muito mal ao ler sobre como eram os navios negreiros e sua dura travessia pelo Atlântico. O autor até nos apresenta um site completíssimo com um banco de dados muito organizado com vários registros desses navios negreiros, o slavevoyages.org. São dois capítulos focados nisso, mas são de revirar o estômago. 

Me ajudou também a entender, e ter mais argumentos, sobre como rebater quando dizem que "os negros também escravizavam outros africanos no seu continente". Achei uma resposta ótima do próprio Laurentino no Roda Viva que serve de início para a resposta:

E complementando isso, usando informações do próprio livro, na África não existiam demarcações ou sequer uma noção de que ali todos estavam no mesmo continente. Todos viviam em tribos, e cada um no seu quadrado. E assim como acontecia com os indígenas brasileiros, haviam guerras e os perdedores eram escravizados. O ponto é que na África o valor não estava tão atribuído a quem tinha mais extensão de terras, mas sim quem tinha mais recursos em força braçal. O rico não era quem tinha a maior porção de terreno (como era na Europa), mas sim quem tinha o maior número de escravos. Isso num tempo em que não havia maquinário agrícola, insumos, ou toda a tecnologia existente hoje.

Então uma tribo subjugar a outra era uma forma dela ascender e ter riquezas através da escravidão dos membros da tribo derrotada. Seres humanos cativos eram a moeda de troca. E portugueses, que viviam num país minúsculo, onde quase nenhum lusitano branco queria cruzar o Atlântico para viver no calor e no meio do mato que era o Brasil, só viam como opção de explorar a colônia americana por meio da mão de obra escrava vinda da África.

E com todos esses incentivos dos portugueses, a escravidão virou um negócio milionário, onde os europeus se aproveitando dessa característica escravocrata e as incontáveis guerras entre as tribos africanas, viram que poderiam negociar com eles, e expandir ainda mais essa desumanidade sem precedentes que mudou a configuração do mundo para sempre.

Resumindo: não dá pra eximir a culpa dos europeus brancos, presidente Burronaro. Tenha responsabilidade pelo que você fala, seu grande idiota sem estudo.

Só tenho a agradecer ao meu grande amigo Thiago pela excelente indicação! Esse livro é uma obra essencial, mesmo sendo chocante e forte. Como o próprio Laurentino fala na introdução, esse livro tem a intenção de ser "uma história da escravidão", que assim como tantas outras, ajudam a gente a ter uma perspectiva dessa cicatriz imensa em nossa História brasileira e na História Mundial. E além de tudo teve revisão e anotações do lendário Alberto da Costa e Silva, um dos maiores acadêmicos sobre história afrobrasileira.

Nota: 10
(vão achar que eu dou 10 pra todo mundo agora é? Mas fazer o quê, merecido!)

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