Livros 2021 #7 - Um lugar bem longe daqui (2018)


Trajetórias de vida no geral nos tocam de uma maneira bem única. Existem obras que dão essa impressão da gente ver a vida inteira de uma pessoa, como se pudéssemos ser passageiros da viagem, vendo tudo de longe. Tem escritores que conseguem fazer isso muito bem, especialmente no campo dos romances. Foi isso que senti ao terminar Um lugar bem longe daqui, da autora norte-americana Delia Owens, o livro do mês de abril do maravilhoso clube do livro do Chicas & Dicas que participo.

Depois que terminei Garota, mulher, outras no mês passado fiquei muito marcado. Não achei que haveria outro livro em um tempo tão curto que deixaria uma impressão tão ímpar. Errei feio (ainda bem!). A autora, Delia Owens, é uma zoologista bem famosa nos Estados Unidos. Conhece a natureza como ninguém, já fez vários livros sobre animais e biologia, e isso é uma coisa incrível que ela traz para enriquecer seu romance: o livro tem um detalhamento incrível sobre a fauna e flora — mas não é chato ou entediante. Claro que se você tiver acesso ao Google para saber de quais animais e plantas ela fala enriquece ainda mais (e, minha sugestão pessoal: uma versão ilustrada pra gente ver fotos sobre tudo o que é citado no livro), mas essa riqueza de detalhes só nos deixa mais imergidos no cenário real da natureza que o livro exibe.

O livro conta a história de Kya. Aos sete anos ela vê sua mãe simplesmente saindo de mala e cuia, abandonando os filhos na casa. Dias depois os irmãos mais velhos também deixam a casa, e ela, ressaltando, aos sete anos, está sozinha no mundo, com um pai alcoólatra que mal aparece, vivendo num chalé no meio de um brejo (marsh, em inglês) na Carolina do Norte.

Nem preciso dizer que o livro, especialmente nesse começo, é tristeza só. Aos sete anos, sem saber preparar comida, nem de ser matriculada na escola, e extremamente vulnerável, dá agonia imaginar uma criança tão nova se vendo obrigada a se virar sozinha. Isso sem contar a saudade da mãe e dos irmãos, a nossa vontade como leitor é dar um abraço na Kya no meio de tanta dificuldade.

Mas ao mesmo tempo o livro é sobre esperança. Como aquelas coisas lindas que acontecem, a ajuda sempre aparece de algum lado. A menina cheia de curiosidade começa a conhecer o brejo, e a cada conquista a gente como leitor comemora! Seja aprender a pescar, a fazer mingau (que ela, coitada, praticamente só comia isso), ou chamar as garças e corujas daquele habitat de "família". Uma menina que não sabe ler, vive na solidão de um brejo no meio do mato, mas que vai descobrindo tudo sobre a riqueza que a natureza lhe mostra ao seu redor. A gente aprende junto da Kya sobre toda a vida pulsante do brejo!

A estrutura do livro é muito boa também. A Delia Owens é uma autora que gosta muito de descrever cenários, mas é sempre bem objetiva e clara, não são descrições chatas do ambiente. Gosto muito do estilo de escrita dela: os capítulos em geral começam com o dia nascendo no brejo e termina com a noite adentrando no mesmo. Os clímax estão quase sempre no meio. Talvez seja uma característica da escrita dela.

O livro tem uma investigação de um crime no meio — a morte de um personagem, apresentada logo no primeiro capítulo, que se passa dezessete anos no futuro (1969). Existe uma linha do tempo da infância da Kya, partindo de 1952, onde acompanhamos a vida dela no brejo, com os eventos se desenrolando (e nos dando pistas) para nos levar até o final dos anos sessenta onde vemos a investigação, que personagens estariam envolvidos, o julgamento, e o desfecho do livro. Norte-americanos adoram essa coisa de julgamentos, mas achei esses capítulos na Corte meio fracos comparado com o resto do livro.

A protagonista é outro tesouro do livro. Kya, cujo nome é Catherine, é alvo de todo tipo de preconceito dos vilarejos vizinhos. Por não ter tanto contato social, seja pelo pai ausente, abandonada pela família, a gente vê como isso dificulta o seu desenvolvimento. E pra piorar, as pessoas que moram nas cidades próximas ao brejo, a tratam como uma selvagem, a perseguem e a ridicularizam. Como conheceu a dor do abandono logo cedo, a gente vê como pra ela é difícil confiar em alguém. Sentimos a dor dela de se envolver e acabar sendo traída — e a opção que ela vê é justamente tentar evitar isso, se isolando cada vez mais, tendo como amigos apenas os bichos que moram no brejo.

Mas ela eventualmente conhece pessoas que conseguem derreter um pouco esse gelo e vão, bem aos pouquinhos, ganhando espaço na vida dela. Dois deles que daria destaque seriam o Tate, e o simpático vendedor Pulinho (em inglês o nome dele é Jumpin', hahaha!). Tate era amigo de Jodie, um dos irmãos mais velhos de Kya. É ele quem, por exemplo, a ensina a ler, lhe traz livros, e vai ganhando espaço no coração da protagonista também. E o Pulinho, além de ter um coração imenso, que trata Kya como se fosse uma filha na ausência do pai, é um retrato fiel do quão nojento era o racismo norte-americano nos anos 60: seja o isolamento onde negros não podiam frequentar espaços de pessoas brancas, indo até as ameaças, perseguições e ofensas que sofriam por conta da cor da sua pele. Kya, mesmo sendo uma criança branca, tem essa pureza de não julgá-lo pela etnia. Coisa rara naquele tempo (e até hoje, infelizmente).

"Um lugar bem longe daqui" figurou entre listas de best-sellers entre 2019 e 2020. E com a Hello Sunshine, a firma de produção de ninguém menos que a divina Reese Witherspoon tocando o projeto de um filme sobre o livro. No elenco temos a Daisy Edgar-Jones, uma estrela em ascensão dessa nova geração de ótimos atores e atrizes britânicos. Está sendo gravado agora, inclusive, e a Netflix já correu pra garantir os direitos de streaming.

Sem mais, difícil achar um defeito no livro. Obra essencial que me fez chorar diversas vezes: mas lágrimas de felicidade ao ver as conquistas e a Kya crescendo. Esses momentos de felicidade são como oásis no meio das dificuldades da vida da coitada. E esses momentos em que nosso coração é preenchido por elas são de ficar na memória dessa obra maravilhosa.

Nota: 9

Só não dou 10 porque as últimas cem páginas não são tão boas quanto o resto. São boas, bem escritas, mas o resto do livro merece no mínimo uma nota "excelente".

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