O falecer da senhora Nascimento.
Na firma onde trabalhei em 2010 fiz uma amiga, a Kátia.
Eu era um estagiário começando na vida e sem saber de nada da mesma. Ela tinha mais ou menos a idade que eu tenho hoje na época que trabalhávamos juntos, mas ainda assim ela era uma pessoa extremamente solícita, que não ligava para minha inexperiência. Ela não era minha chefe, mas era uma das chefes do setor de onde eu trabalhava.
Ela inclusive que organizava um happy hour com outros funcionários em um botecão pé sujo todas as sextas perto da firma. Até hoje tenho as fotos dessa nossa agremiação.
Sempre uma pessoa que vivia a vida ao seu máximo, a Kátia não conhecia a palavra "moderação". Era isso também uma das coisas que eu mais admirava nela! Eu sempre fui muito cagão e comedido, então achava que devia me espelhar mais no exemplo dela.
Tudo bem que haviam muitos exageros. Eu lembro que ela vivia sem grana, e me dizia que gastava tudo em bebida, o que a deixou com vários problemas — de obesidade, até diabetes. Ela realmente bebia muito, mas o alcoolismo era a forma dela lidar com os problemas: o machismo da sociedade, o preconceito que vivia por ser gorda, e por dizer que achava que havia errado em muita coisa na vida. Que besteira, Kátia! Difícil imaginar alguém que era tão alto astral com tais pensamentos na cabeça.
Mas acima de tudo ela era uma pessoa livre, apesar de todos os problemas que havia encarado na vida.
Acho que só divórcios foram uns dois ou três. E isso antes dos trinta anos. Eu lembro que ela falava isso meio séria, como se dissesse: de desgraça eu já tenho aos montes. E pelo pouco que ela contava desses relacionamentos com homens bem escrotos nos happy hours, dá pra entender um pouco do que a havia deixado daquele jeito. Ela sofreu horrores.
Ela era vegetariana, por exemplo. Disse que era por conta de um desses maridos dela, que era super vegano. Ficou tanto tempo sem comer carne forçada no relacionamento, que mesmo quando terminou e saiu a separação, ela não conseguia mais nem botar na boca nenhuma carne, fosse bovina, frango ou suína. Parece que foi um término bem trágico, não sei.
Ela sofria muito por ser gorda. Mas mesmo assim era uma pessoa que sabia se vestir muito bem, era uma pessoa muito ligada em moda. Graças a ela eu descobri, por exemplo, o que era um bolero. Ela me deu uma echarpe de aniversário muito chique que inclusive é a que estou vestindo na atual foto do meu perfil nas redes sociais.
Uma das coisas que eu mais admirava nela era o quão livre e desimpedida ela era.
E ao mesmo tempo era a pessoa mais fiel do mundo quando estava num relacionamento. Não traía o companheiro nem em pensamento. Gostava de homens nerds e ás vezes comentava que era interessada em mim. Mas havia uma diferença de idade grande, e eu não me sentia atraído por ela. Acontece.
Eu lembro que eu fui demitido da firma que a gente trabalhava em abril de 2011. Foi um pouco antes disso que ela disse que havia encontrado um "caroço" no seu seio.
Como eu ainda tinha contato com o pessoal do trabalho, acompanhei de longe. Era câncer de mama. No blog dela ela postava de vez em quando a evolução do processo. Blog esse que acho que ela começou a escrever por minha influência também.
Talvez o vício dela por álcool e o aumento do peso fez com que a gordura na região dos seios acabasse por formar um tumor ali. Os tratamentos eram terríveis, mas ela se esforçou muito, e conseguiu vencer o câncer na mama. Mas, por conta de ser um câncer, ela tinha que realizar check-ups constantes pra saber se não havia migrado para outro lugar.
E hoje, enquanto olhava o blog dela, achei a postagem que ela fez sobre quando o tumor apareceu no cérebro. A partir dali começaria uma luta dela que duraria quase dois anos. Uma luta que, vendo agora as últimas postagens dela no Facebook póstumo dela, foi cruel e triste.
Enquanto eu descia para ver as mensagens e as últimas fotos que ela postava, eu pensava: "nossa, isso ela postou cinco dias antes de morrer", "e aquilo outro foi faltando três dias".
E ela estava ativa. E não queria preocupar ninguém, o que mostra o quão grande era seu coração. Pensando na felicidade dos outros até o último momento.
No final, quando talvez os médicos achavam que não havia mais nada a fazer, deram a ela um ultimato misericordioso: indicou que ela voltasse para São Paulo e ficasse ali com a família. Descansando. Mas na verdade Kátia estava morrendo. E aquele 27 de fevereiro era poucos dias distante até o dia 11 de março de 2018, o dia que ela faleceu.
Eu não tinha a mínima ideia de que era seus últimos dias. Eu lembro que mandei uma mensagem pra ela, mensagem essa que estava distante apenas quatro dias até seu falecer. E mesmo sofrendo, ao ver que a coisa que ela mais gostava — que era viver — estava chegando ao fim, ela foi generosa do suficiente para não me deixar preocupado:
E quando a perguntei como estava, ela disse "melhor".
Talvez não "melhor" no sentido clínico, mas por estar num lugar melhor por ter a chance de passar seus últimos momentos ao lado dos pais, irmão e marido que ela tanto amou. Eu também não entrei mais no assunto e deixei que essa fosse sua última mensagem que, pensando hoje, fala tanto, sabe?
Mas suas coisas ficaram. Ficou a amizade dentro do coração, a lembrança. Ela, achando que estava ficando velha ao entrar aos trinta. Eu, mal tinha chegado aos vinte e estava aprendendo sobre o mundo a cada momento que convivia com ela.
E curiosamente ela faleceu em 2018. O ano em que eu fiz trinta anos.
Sinto saudades, mas rever as coisas dela me ressuscitam no coração sua imagem, e o quanto eu preciso aprender com ela. Uma nostalgia que aquece meu coração também ao mesmo tempo.
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