Livros 2021 #9 - Esmeralda - Por que não dancei (2001)
Quando eu tinha treze anos, entrei pro grupo de teatro da escola. Mesmo sendo uma escola pública, teve uma corajosa funcionária que resolveu se arriscar nessa empreitada. Fizemos primeiro uma peça usando o poema "José", do Carlos Drummond de Andrade. O ápice foi uma apresentação de dança de rua de "Thriller", do Michael Jackson, convidados nas Noites do Terror do Playcenter. Mas no meio do caminho fizemos uma peça baseada no livro da ex-moradora de rua Esmeralda do Carmo Ortiz, cujo livro tenho até hoje, com autógrafo da autora e tudo!
Achei aqui perdido nas estantes e resolvi lê-lo de novo depois de tanto tempo. Meu amigo Thiago sempre me falou da importância da literatura periférica. A riqueza e as experiências que ela traz são inestimáveis, isso sem contar as vidas que salvam, e a noção de pertencimento ao grupo, à vida no subúrbio, na periferia. E esse livro da Esmeralda é um ótimo exemplo disso.
Escrito por uma jovem que tinha seus vinte e dois na época que lançou, a escrita é bem simples e básica. Muito também pelo fato da própria Esmeralda ter se alfabetizado muito tarde, e também a dificuldade de coletar relatos que aprofundassem suas histórias: muitos por conta de estarem mortos, presos, ou terem enlouquecido por conta do uso de drogas.
Mas isso não tira a poesia maravilhosa que existe nas entrelinhas do livro: Esmeralda começa falando como é bom tomar um banho de chuveiro, uma coisa tão essencial, mas que era um luxo impensável na sua infância. E termina com a felicidade que ela sente por poder viver mais um dia, onde ela pede a Deus que nunca mais a deixe usar drogas.
Esmeralda nasceu em uma de tantas famílias desestruturadas desse país: uma mãe pobre, que vivia na rua pedindo esmolas, e que a noite abusava do álcool e espancava os próprios filhos. Não tinha pai, vivia num barraco na região da Brasilândia (periferia norte de São Paulo) e nas idas ao centro para pedir dinheiro nos semáforos, via as crianças de rua no chafariz da Praça da Sé (que acho que nem mais tem água) brincando e achava que eles eram felizes.
Sofrendo constantes violências por conta do alcoolismo da mãe, a gota d'água foram dois padrastos, o Roberto, e o Cláudio, o "Velho": ambos sumariamente a estupraram e a agrediam quando ela era apenas uma criança. O primeiro inclusive morreu de um ataque cardíaco causado por uma tuberculose não tratada fulminante na frente dela. Cansada dessa vida, Esmeralda foge de casa e passa a viver nas ruas.
Ela então conta como era a rotina, como era a lei da rua. Como se faziam os grupos, onde viviam, como faziam para comer, e os roubos para se sustentarem. Tem uma parte interessantíssima que ela conta como fazia para ir às baladinhas: compravam roupas bonitas com dinheiro roubado na rua, tomavam banho no chafariz e se perfumavam para passar a noite dançando.
Mas ao mesmo tempo ela teve muitas passagens na Febem. Ela conta que foram mais de cinquenta. E também a quantidade de abusos que sofria lá. São passagens que temos que ter estômago para ler.
A parte realmente triste é quando ela começa a usar drogas. E o fundo do poço é o capítulo sobre o crack. Mas o livro também mostra a difícil reabilitação, e a busca do tempo perdido. E além de tudo teve ninguém menos que o falecido Gilberto Dimenstein coordenando o projeto. Sempre gostei muito dele, eu o ouvia todos os dias enquanto ia pro trabalho, na CBN.
Eu lembro que na época que li, o livro me deixou uma impressão forte. E vou admitir que para aquele Alain novinho, conhecer a história dela, e inclusive conhecê-la pessoalmente quando ela veio prestigiar a peça que fizemos sobre a obra dela, salvou minha vida de diversas maneiras. Eu nunca tive vontade de usar drogas, mas ler aquele livro, saber toda a experiência da Esmeralda, me fez ter certeza que eu nunca nem usaria em nenhum momento da vida.
E foi isso o que aconteceu. Passei a adolescência e nunca provei álcool, nem maconha, nem cigarro, nem nada. Bebida eu só fui conhecer pra lá dos vinte e quatro anos, mas cigarro, maconha (nem quando fui em Amsterdã, hahah!), ou qualquer outra coisa eu nunca provei. Mesmo tendo colegas ou conhecido pessoas que usavam, nunca tive vontade. Eu não precisava daquilo, acho que o fato de eu ter uma personalidade muito forte foi uma proteção. Mas existem também impressões que ficam na gente que, mesmo que a gente não se dê conta, estão lá, nos protegendo, mesmo que a gente não perceba.
Se hoje, aos trinta e dois relendo esse livro eu já fiquei impressionado, imagino o quão impactante foi para o Alain com treze anos de idade. Livros como esses podem não ter uma escrita refinada, ou serem de um autor consagrado. Mas são igualmente importantes pelo seu papel social ao compartilhar uma experiência tão enriquecedora como foi a dessa grande mulher, negra, periférica, que hoje é uma grande jornalista, palestrante, educadora e, além de tudo, mãe. Um exemplar de literatura periférica que deve ser sempre lembrado e reverenciado.
Obrigado por existir, Esmeralda!
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