Livros 2021 #10 - A gorda (2017)

Mês passado no clube do livro tive a oportunidade de ler A gorda, livro da escritora moçambicana Isabela Figueiredo. Um livro que comecei achando que o tema era gordofobia, mas vai muito além disso. O livro conta a trajetória de Maria Luísa, uma menina que, assim como a autora, é descendente portuguesa nascida em Moçambique, que retornou à Portugal. E lá ganha novas amizades, amores, e tem uma vida conturbada ao lado da mãe rígida e um pai carinhoso que é acometido por AVC devastador de súbito.

Dois pontos bem fortes da autora quando escreveu gostaria de destacar: O livro tem uma linha do tempo incrível, que vale a pena prestar atenção enquanto se está lendo. O livro é dividido em capítulos com nomes de cômodos da casa: sala de estar, quartos, cozinha, sala de jantar, casa de banho, etc. E em cada um desses cômodos é como se desse destaque a algum aspecto da vida da protagonista e algum coadjuvante. Exemplo: na cozinha o foco é a convivência com a mãe dela e a relação com a comida e o sobrepeso, e assim por diante.

Além dessa característica genial por parte da autora em ter organizado assim seu livro, cada capítulo conta praticamente a trajetória inteira da vida da Maria Luísa: da infância até a meia idade. Mas vai deixando lacunas que serão preenchidas nos capítulos posteriores, que seguem a mesma receita: recontam a história de sua vida, da infância até a meia idade, com a mesma ordem de fatos, mas preenchendo lacunas (ou criando outras também). Exemplo: o pai dela sofre um derrame, mas o que aconteceu antes e a convivência dele com a Maria Luísa sob as sequelas do AVC só são mostrados em um determinado capítulo.

A autora foi tão genial que soube organizar a narrativa e criar em nossas mentes toda a ordem de acontecimentos, mesmo eles sendo apresentados em capítulos diferentes. Tem que fazer um baita planejamento, reler bastante a obra, tapar todos os buracos do roteiro e ser muito inteligente pra se fazer isso. Tanto que ela levou cinco anos pra escrever duzentas páginas. Isabela Figueiredo é realmente uma grande escritora nesse quesito!

O segundo ponto forte é a linguagem dela. Não a toa, em uma entrevista que vi dela, ela cita como inspiração alguns grandes nomes da literatura brasileira: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade além da Clarice Lispector. Alguém com tal bagagem não era de se esperar menos de um livro, certo?

E essa mistura louca de grandes nomes reflete muito no quão marcante é sua escrita. Uma amiga portuguesa falou que portugueses têm a mania de serem super rebuscados e posam de intelectuais pra se mostrarem superiores (inclusive nas brigas, portugueses parecem recorrer a parecerem mais inteligentes pra ganhar na discussão, enquanto nós brasileiros partimos pra ignorância, violência e grosseria). E essa amiga ainda brincou dizendo que se ela fosse Moçambicana seria ainda mais forte, querem parecer superiores inclusive aos portugueses.

Mas não senti isso na escrita da Isabela. Tem a superioridade e intelectualidade típica deles, e até julguei isso no começo do livro, mas enquanto avançava na leitura percebi que não era isso. O que ela tem muito são momentos de profundidade: reflexões sobre a condição dela, os acontecimentos, muito drama e frustrações pesadas. A cada cinco páginas a gente encontra trechos daqueles que são lindos para se colocarem em citações, coisas que nos tocam mesmo no fundo da alma.

O problema é que isso volta com efeito colateral para nós, leitores: o livro tem duzentas páginas, é curto, mas é extremamente denso. Eu lia quinze páginas e precisava fazer uma pausa pra organizar tudo aquilo na minha mente. Característica de livros pequenos, certo? Eu mesmo tenho muito medo de livros pequenos por isso, hahaha. Levo ás vezes quinze dias pra ler 800 páginas de um romance mas posso levar quatro meses pra ler 150 páginas do "O coração das trevas" do Joseph Conrad.

E o livro tem aquele clássico pessimismo europeu, sabe? Não que a gente no Brasil não tenha (eu mesmo sou muito pessimista e bem pra baixo), mas a gente nesse país pobre e sem futuro que elegeu Bolnosaro pensa que eles lá na Europa com uma vida mais tranquila não passe por tantos dilemas da pobreza econômica como nós, mas lá parece que o esquema é uma "pobreza de espírito" mesmo. Algo como "todo mundo dá certo nessa vida, mas comigo nada dá certo", como se mesmo uma sociedade mais igualitária pudesse garantir uma sensação de felicidade maior de seu povo. Isso é um negócio muito complexo.

Em suma: o livro é muito triste. Se você já está na bad, sugiro deixar pra ler quando você estiver numa fase melhor da vida, hahaha.

"Mas que tipo de tristeza você tá falando, Alain?"

E aqui peço licença pra falar de spoilers abaixo. O livro nem tem muita coisa reveladora, é mais mesmo a história da vida da personagem, mas tem alguns pontos que preciso avisar que são spoilers antes pra falar da tal "tristeza" do livro. 

Mas antes eu darei minha nota ao livro:

Nota: 7,5

Agora vamos aos SPOILERS ABAIXO!
Depois não diga que eu não avisei, mané.

Maria Luísa tem alguns personagens que deixam marcas bem fortes nela. Não vou citar todos, mas sim citar os que mais se destacaram na minha leitura pessoal. A primeira é a Tony, uma angolana mestiça que posa de rica e influente mas na verdade não tem onde cair morta. A Maria Luísa meio que endeusa a menina, faz tudo o que ela quer, é quase a empregadinha dela. E quando ela é sumariamente expulsa da vida dela em um trecho onde ela sente uma atração física do momento ali pela Tony, isso deixa um dos muitos traumas nela.

Outro trauma dela é em relação a mãe. A gente vê uma constante busca pela aprovação da mesma, onde ela cuida, faz carinho e a mãe é tão grossa que nem um abraço dá na filha. Sem contato, sem amizade, sem coração. Totalmente ao contrário do pai, que tem na filha um porto seguro, mas morre relativamente cedo do livro. É de cortar o coração ver o quanto ela tenta corresponder ás expectativas da mãe, mas a mãe nunca dá o reconhecimento.

E por fim o David. Ele é o namorado dela, ou pelo menos o mais importante. Vivem uma vida bonitinha, mas ele cansa dela e a troca por uma caloura. E quando Maria Luísa o põe contra a parede ele revela: era porque ela era gorda. Eventualmente ele se casa, tem filhos com outra mulher, e ela continua tentando ressuscitar essa relação. Existe até uma cena bem tórrida onde o mesmo David a estupra, e ela meio que fala pra ele "Vai, me estupra logo, é isso que você quer?", e então ele some de vez na vida. O personagem só volta em um delírio da própria Maria Luísa nas páginas finais do livro, onde ela sonha com um final feliz com ele que nunca aconteceu, exceto em sua própria cabeça. Em um mundo onde nada de ruim teria acontecido com eles, e seriam felizes para sempre. Parte que achei tão deslocada no livro que custei a acreditar no óbvio: era coisa da cabeça da protagonista e só.

"És tão torta, tão teimosa, Maria Luísa!".

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