Livros 2021 #11 - Herdeiras do mar (2018)

Esse mês no clube livro fomos de ficção histórica. Um gênero que eu gosto muito, que é o tema do meu romance, e existem muitas pérolas de grandes autores e autoras pelo mundo. A escolha foi Herdeiras do mar, livro da escritora Mary Lynn Bracht, uma escritora nascida na Alemanha com ascendência coreana. O livro tem como tema principal dois contrastes: as haenyeo, as mergulhadoras pescadoras coreanas, e as mulheres de conforto, um regime de escravidão sexual onde coreanas eram forçadas durante a ocupação japonesa na Segunda Guerra.

O livro conta duas histórias simultaneamente. Duas personagens, com capítulos e épocas diferentes que se situam: Hana, em 1943, e Emi, em 2011. Hana tem dezesseis anos e é uma haenyeo, uma pescadora de frutos do mar, uma tradição centenária na Coréia, que hoje é considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

As Haenyeo são em sua totalidade mulheres, tirando proveito da uma característica inerente ao sexo feminino: uma camada adiposa extra embaixo da pele, que as fazem serem mais resistentes ao frio do que os homens. Logo, mulheres podem mergulhar em águas frias por muito mais tempo que os homens. Por conta disso as haenyeo se tornaram uma comunidade semi-matriarcal, uma raridade mesmo nos tempos de hoje, desde o século XVIII. Pescam mergulhando mesmo, num tempo onde nem existiam roupas de neoprene, buscando frutos do mar, polvos, etc. Por conta das mulheres serem as que sustentam as família, as haenyeo são exemplares vivos da emancipação feminina e símbolos do matriarcado há séculos: possuíam muito mais liberdades, direitos e respeito do que grande parte das mulheres do resto do mundo.

Hana, uma das protagonistas, é uma jovem haenyeo de dezesseis anos em 1943. Vivendo com sua mãe e irmã mais nova, um dia está pescando quando avista um soldado japonês se aproximando de sua jovem irmã na praia. Ela então nada com toda sua força para protegê-la, e consegue fazê-lo. Porém o soldado japonês a captura e a jovem coreana é separada da família, estuprada, e forçada a se prostituir como uma mulher de conforto para os soldados japoneses.

Uma "mulher de conforto" é um dos maiores crimes de guerra por parte dos japoneses. O exército japonês nos tempos da Segunda Guerra era de uma estrutura extremamente machista e violenta: haviam humilhações e um costume de ridicularizar todos. Isso tudo era para fazê-los se sentirem furiosos e descontarem as raivas em coreanos, chineses, e todos os países que queriam conquistar. Esses povos eram considerados "abaixo dos porcos" pelos soldados japoneses. 

Eles também levaram os estupros de guerra para outro nível, criando um sistema nojento de abusos sexuais em massa. Mulheres sempre são alvos de estupros em massa em guerras: os homens são mortos em batalha ou viram prisioneiros de guerra, mas as mulheres de um povo são sumariamente estupradas, muito como uma forma de mostrar quem são os vitoriosos, como se fosse uma "recompensa" bizarra e nojenta. Mas os japoneses construíam bordéis e escravizavam mulheres dos povos que conquistavam. Houve mulheres de conforto coreanas, chinesas, indonésias, vietnamitas, etc. Todas forçadas a se prostituir para os soldados, vivendo em bordéis, com pouca proteção a ISTs, e sendo estupradas por vinte, trinta ou quarenta pessoas por dia.

E é isso que Mary Lynn Bracht nos mostra. Mesmo se tratando de uma ficção, é óbvio que todas as coisas que ali se passam tiveram um fundo histórico. E nisso ela está de parabéns: sua pesquisa ampla foi riquíssima (com direito a uma bibliografia riquíssima no final!). Mesmo eu estudando sobre o acontecimento, aprendi muita coisa nova também.

A outra protagonista, Emi, é uma coreana, uma haenyeo de quase oitenta anos, que viaja para Seul para se juntar aos "protestos de quarta-feira", um ato que ocorre desde 1992 na frente da embaixada japonesa em Seul de maneira praticamente ininterrupta, toda quarta-feira ao meio dia, até os dias de hoje. Esses protestos são organizados ali exigindo uma reparação por parte do governo japonês a favor das mulheres de conforto escravizadas no período da Segunda Guerra Mundial.

Apesar dos temas chocantes, o livro tem uma escrita que prende muito nossa atenção. Não via a hora passar, sempre tinha vontade de ler mais um pouco. Gosto muito de livros com dois pontos de vistas que vão se afunilando: parecem literalmente dois livros, duas vidas ali retratadas, duas protagonistas fortes e inesquecíveis mostrando dois lados da mesma moeda.

Ao mesmo tempo o livro deixa algumas pontas soltas, mas acho que isso foi intencional por parte da autora. Me dá a impressão de que, apesar de ser uma ficção, é algo que a aproxima da realidade: nem sempre sabemos o intuito da vinda de uma pessoa em nossas vidas, ou o que acontece quando alguém se ausenta ou nos omite algo. E por ser uma história contada pelos pontos de vistas de duas protagonistas, os furos na história existem. 

Quando prestigiamos uma ficção nós queremos ver todas as lacunas preenchidas, e mesmo que aja alguma dúvida sobre algo, queremos explicações do autor e tal. Mas gosto desses mistérios quando são transportados para romances. Dá um ar de realidade, sabe?

"Herdeiras do mar" é um dos melhores livros que tive a chance de conhecer no clube. Mesmo com o tema muito pesado e aterrador, nos deixa alerta para que esses crimes de guerra não sejam apenas reparados por parte do governo japonês, mas também jamais esquecidos para que nunca mais se repitam. Li em pouco mais de uma semana, e adorei cada página dessa grande obra. Não cheguei a chorar, talvez por descrever muito os sentimentos (eu choro mais dentro da subjetividade, hahaha) mas não quer dizer que não me tocou — tocou no fundo do coração, ainda mais por mostrar a Coréia que eu tanto amo.

Acima de tudo é um livro anti-guerra. Todos os personagens lá são impactados pelo conflito, independente da época em que vivem, uns mais e outros menos. Que esse livro seja também uma lembrança a todos nós de que na guerra não existem vencedores ou perdedores: todos nós, como humanidade, perdemos. Sem exceção.

Nota: 10

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