Livros 2021 #12 - Com armas sonolentas (2018)

 

Todo mês no clube do livro fazemos uma votação pra escolha do livro do mês. Esse foi um dos meses em que o que eu votei não ganhou. Mas parando pra pensar, eu amei tanto essa leitura, que ainda bem que não venci: senão eu não teria conhecido essa obra prima da chilena com alma mais brasileira desse país, a autora Carola Saavedra.

O livro Com Armas Sonolentas é uma trama bastante simples de explicar, mas muito complexa para se entender. Basicamente são a vida de três mulheres: Anna, uma atriz brasileira lutando para ter sucesso e alavancar a carreira, Maike, uma garota alemã com um interesse peculiar sobre o Brasil, e uma terceira personagem, que conhecemos apenas como "A avó", uma anônima brasileira humilde do interior que vem tentar a vida como empregada doméstica para uma família abastada carioca.

Adicione a isso o facto do livro se dividir em duas partes: a "parte de fora" e a "parte de dentro", e em todas as três existem capítulos dedicados às três protagonistas. No primeiro existe uma narração mais direta e lógica, uma estrutura linear e bem básica. No segundo, no entanto, é quase como se mergulhássemos na alma das três personagens, cada uma com sua peculiaridade e jeito único de ver a vida, e ao mesmo tempo também um jeito bem diferente da autora escrever em cada uma, o que é um negócio de louco de tão bom!

Existe uma ligação entre elas, mas não darei spoiler aqui, hahaha!

Gosto muito de como a Saavedra escreve. Não tem como negar que a linguagem do cinema trouxe influências enormes sobre diversos escritores, e grandes best-sellers muitas vezes estão lá pois seguem esse receita, de um livro cinematográfico, com uma estrutura bem linear com começo, meio e fim. O que a Saavedra faz é usar o que a literatura tem de melhor, e que o cinema dificilmente consegue fazer: nos fazer entrar na cabeça das personagens, misturar o primeiro plano com o terceiro, a narração com pensamento e fala, e por ela ser uma escritora talentosíssima, ela consegue colocar em nossa mente a cena com todas as complexidades sem nos deixar perdidos. Coisas que apenas a literatura consegue fazer desse jeito.

O tema da maternidade é o ponto principal da obra. E existem diversos tipos de mães que o livro mostra que nos faz concluir o quão complexo é essa relação. Existem momentos que sentimos pena da mãe que tenta a todo custo reconquistar o amor da filha, em que a mãe abandona todo o amor próprio para tentar lhe dar o melhor. Existe a mãe que não estava pronta para dar a luz, e vê aquele ser que pariu como nada menos que um amontoado de células que vai virar um ser com consciência no futuro. E existe a "sem-mãe", que tenta ressignificar o papel de sua progenitora e todas as coisas inerentes que herdamos de nossos antepassados por gerações a fio.

Correndo junto com a maternidade tem isso que citei no final do último parágrafo: tudo o que herdamos ou passamos para a próxima geração. E como talvez estejamos presos a eventualmente cometer os mesmos erros e acertos de nossos pais, criando ciclos infinitos onde geração após geração viverão os mesmos traumas, valores, e tradições, que foram deixados pelas gerações anteriores. Em certa parte o livro me deixou a questão clássica que nossos terapeutas tentam nos fazer achar a resposta: "Como manter as coisas boas e consertar as coisas ruins, sem sermos totalmente iguais ou completamente diferentes?".

Como diz o general Shepherd no começo do Modern Warfare 2: "The more things change, the more they stay the same".

Carola Saavedra traz muita filosofia, antropologia e misticismo no livro. Para algumas pessoas pode parecer que é difícil que tudo isso faça sentido ao mesmo tempo, mas pessoalmente achei que ficou tudo muito bem amarrado! Afinal isso é também parte do nosso espírito latino: ao mesmo tempo que estudamos filosofia platônica ou Rousseau, também experimentamos ayahuasca e pulamos ondas no ritual para Iemanjá na praia. Até onde a sociedade moderna nos faz nos distanciarmos de nossas heranças indígenas, africanas, ou pagãs européias? Somos seres complexos até dentro de nossa espiritualidade, e o livro trata isso tudo com muito respeito. 

Existem até passagens em nheengatu (uma espécie de língua-franca Tupi) e partes em que são claramente inspiradas em tratados de filosofia complicadíssimos, como a mente bicameral. Isso só pra citar dois exemplos no universo complexo que essas 262 páginas trazem!

O que separa o louco do gênio é cruzar a linha do sucesso. Ambos tentam inovar, fazer coisas diferentes, arriscar. Mas quem consegue sucesso é aclamado como gênio, e se você não consegue é chamado de louco por não ser sido ortodoxo. E acho que a Carola Saavedra apostou muito, e apostou alto, e na minha opinião já é um gênio por ter escrito algo tão bom e tão complexo! Esse livro realmente me pegou lá na minha alma.

Arrisco dizer que "Com armas sonolentas" é um desses livros na pegada pós-moderna: extremamente desconstruído, onde não existe um sentido implícito, e ao mesmo tempo existem muitos sentidos. Um livro que de primeira você vai perceber uma coisa, e na segunda vez talvez veja o livro de uma forma totalmente diferente, e numa terceira pode ser que viaje ainda mais e perceba coisas que não percebeu em nenhuma das anteriores! E todas as interpretações estão corretas, pois o livro tem que ir de encontro com a sua vivência, com seus valores, sua visão de mundo.

E eu, como um amante do pós-modernismo, tenho que admitir que esse livro foi um dos melhores que tive a chance de conhecer nesse ano. Muito obrigado, e parabéns pela ótima Obra, Carola Saavedra!

Depois que você ler o livro, nunca mais verá uma capivara do mesmo jeito, hahaha!

Nota: 10

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