Livros 2021 #17 - É sempre a hora da nossa morte amém (2021)

A morte é essa coisa que fascina e amedronta a nossa espécie. Afinal a relação da nossa espécie de hominídeos com a morte é única: nenhum outro bicho no mundo faz funeral, fica de luto, ou chora por alguém querido. Enquanto tentamos achar em que momento o australopiteco lá atrás começou a chorar quando alguém querido morreu, continuamos analisando nossa relação com ela sem achar respostas por mais e mais séculos. E a morte é um dos temas do livro que vou falar hoje: "É sempre a hora da nossa morte amém", da talentosa Mariana Salomão Carrara.

A premissa é bem única: não apenas um livro que trata muito sobre o tema morte, como pelos olhos de uma senhora amnésica. Achada no canto de uma estrada chamando por uma tal de Camila, conhecemos a dona Aurora, a protagonista. Levada a um asilo, o livro mostra diversas sessões com uma assistente social chamada Rosa, que tenta achar o fio que une todas as memórias perdidas dela para encontrar sua família. A morte entra nessas memórias, onde ela tenta relembrar as circunstâncias da morte da sua filha Camila. 

Mas como eu disse antes, ela sofre de amnésia. E esse é o fator caos que dá o tempero para a grande ópera que é esse livro!

Logo no começo a gente descobre que a Camila morreu em um acidente de avião. Ou de tétano após se ferir com um prego enferrujado. Ou engasgada com uma bala. Ou com uma crise de apendicite, ou um acidente de ônibus durante uma excursão. Ou com o pescoço quebrado após dar uma pirueta e caído na cama. Isso entre outras mortes.

Embora toda essa sequência de mortes vagamente me lembrasse o Kenny do South Park (You bastards!!), existe também um delicado humor e ironia de quando entramos nos pensamos da nossa perdida Aurora! Apesar de tratar de um tema tão difícil, a escrita é suave, com pitadas de humor, como se a ouvíssemos contar estórias do passado.

Todas essas estórias sobre como a filha dela morreu nos mostram a caótica teia de memórias dentro da cabeça da Aurora. E colocar isso no começo do livro prende nossa atenção desde o começo, nos fazendo querer saber mais e mais. Na nossa cabeça de leitor a gente já começa a criar mil teorias tentando entender qual delas é a verdadeira, ou se existe algo mais profundo por detrás de todas essas estórias que a Aurora conta. A cada capítulo parece que o botão "reset" é apertado e voltamos à estaca zero, onde a mesma filha Camila é apresentada, mas morrendo de uma forma diferente.

Eu já conhecia outra obra da Mariana Salomão Carrara, chamada "Se deus me chamar não vou". E uma das características que eu mais adoro na escrita dela é a capacidade de nos colocar na mente das protagonistas. E não é apenas por usar a linguagem em primeira pessoa: é também escrever tudo com um ar que tudo ali tem origem em devaneios. Talvez a gente não consiga perceber isso a todo o tempo, mas nossos neurônios devem fazer associações muito doidas que nos fazem acessar nossas próprias memórias de uma maneira muito não-linear e que pareça confusa de contar — mas que a autora consegue colocar de uma forma tão natural e coesa que a gente sente a mente da personagem dentro de nossas próprias mentes. 

Lembrar de um assunto faz com que um detalhe nos leve a outro assunto, e assim, sucessivamente, do jeitinho que nossa mente funciona: onde começamos pensando na goteira no meio da sala e terminamos pensando nos Gigantopithecus vietnamitas que viveram há 100 mil anos atrás.

Um artifício que só conseguimos abstrair pela obra ser um livro, e toda a construção das imagens, signos e símbolo se dar dentro de nossas mentes. Só lendo mesmo pra entender e sentir isso!

Pelo menos ali nos primeiros dois terços do livro, as mortes da filha Camila são intercaladas por memórias da amiga Camila. Uma amiga cujas vivências com a Aurora a marcaram de tal maneira, que ela volta e meia nega, em seus surtos amnésicos, a existência da filha Camila, dizendo que teve apenas a uma ou a outra. Adicione isso aos outros coadjuvantes menores, como o Antonio, o ex-marido que trabalhava no IML em plena ditadura militar, e que abandonou a Aurora quando esta engravidou; ou ainda a mãe anônima omissa da Aurora; o marido da amiga Camila, que ela o chama de "Upa Lalá"; o amante Natalício; e óbvio, os dois mascotes caninos: o Perdoai e o Ofendido.

Esses personagens todos são desenhados com um padrão bem delineado no imaginário "aurorês" (hahaha, tô até adjetivando ela). E a genialidade da autora Mariana Salomão Carrara se mostra aqui: eles meio que são o que há de sólido nas memórias dela, e nos ajudam a navegar pelos temas e diversas épocas da vida da Aurora: algo como a cor do cabelo da Clementine, em "Brilho Eterno de uma mente sem lembranças".

Mas acima de tudo o que eu mais gostava era que o livro nunca era entediante. A cada novo capítulo não é apenas uma nova forma que a Camila morre que nos é revelado, mas também trechos da vida, da criação, ou memórias aleatórias, que vão desde o nosso amado e brasileiro Fusca, como o envio da sonda Voyager aos confins do espaço. Mesmo quando eu estava começando a ficar cansado desse "vida & morte" da Camila, apareciam capítulos falando de outras memórias interessantes, detalhes da vida no asilo, das consultas com o médico, e até do carnaval em que ela perdeu a virgindade com um cara que deu uma brochada.

Porém o que mais enriquece o livro no meio de todas as estórias contadas com essa linha do tempo emaranhada são as reflexões que nos são apresentadas. Pensamos sobre solidão, tristeza, amor, abandono.

Uma dessas reflexões que achei mais bonitas é logo ali perto do começo do livro, na página 64: como funciona o amor entre uma mãe e um filho, onde o filho nasce e vive sabendo que um dia vai inevitavelmente se despedir da sua mãe, afinal essa é a "ordem natural das coisas". Mas uma mãe não, ela vive na expectativa de que vão passar o resto de suas vidas sendo mãe daquele filho, que não existe o fim dessa relação, sempre será responsável por essa vida. E no meio disso tudo existem as amizades, esses laços temporários que vêm e vão, onde antigos dão lugar aos novos, e a gente nunca sabe quem estará lá quando dermos nosso último suspiro em nosso momento derradeiro.

Deu pra ter um exemplo do quão profundo é essa obra? E do quanto ela nos faz refletir a cada página que avançamos? Cada uma das 280 páginas são recheadas disso, em um livro com uma trajetória mágica, com um desfecho talvez bem menos glamouroso e muito mais realista e frio do que todo o seu resto — mas afinal o que isso importa? Nossas lembranças são uma grande fabulação, montamos nossas memórias como pequenos pontos de luz que levamos conosco, mas nunca com tudo iluminado por igual como um grande holofote.

Na minha opinião a Mariana Salomão Carrara é uma dessas autoras que daqui a uns vinte ou trinta anos estará no mesmo patamar que hoje temos Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Cecília Meireles, entre outras matriarcas da nossa literatura. Me sinto feliz e grato por poder viver na mesma época que ela, de poder ler suas obras enquanto ela está aqui, em plena atividade e minha contemporânea (temos quase a mesma idade!) tão bem escritas e inesquecíveis, e ainda mais por, mesmo que totalmente tomado pela minha timidez e gaguejando como um fã que encontra uma estrela do rock, ter tido a chance de trocar uma palavrinha com essa genial escritora cuja obra ganhou meu coração e significa tanto para mim:

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