Livros 2021 #19 - Os Miseráveis (1862)


A primeira vez que eu li essa incrível obra de Victor Hugo, eu devia ter uns dez ou onze anos. Eram aqueles livros bem resumidos de umas cem páginas no máximo, para crianças e adolescentes. Eu lembro que gostei muito. Foi só na faculdade, isso já em 2009, que fui ter contato de novo. Peguei na biblioteca da faculdade a edição da falecida Cosac Naify, onde eles lançaram o texto integral em dois volumes. As duas primeiras partes em um volume, e as três últimas no outro. Esse ano, depois que eu tive Covid, achei que não devia mais ficar adiando terminar a leitura, e ali no começo do ano comprei uma edição linda da Martin Claret: um monstro de mais de 1500 páginas.

Quando li pela primeira vez Os Miseráveis eu lembro que me deixou uma sensação profunda. Tem um link aqui para a postagem de 2009. Acho que foi o primeiro livro que eu chorei enquanto lia, e foi uma leitura muito tranquila, apesar do tamanho: se não me engano eram umas seiscentas páginas o primeiro volume, contendo os livros "Fantine" e "Cosette", e o segundo (que na época eu não li), contendo o desfecho da história, nos livros "Marius", "O idílio da Rua Plumet e a epopéia de Saint-Denis", e "Jean Valjean". A tradução não apenas foi excelente, como muito gostosa de se ler, eu lembro que levei pouco mais de uma semana pra devorar o primeiro volume.

Eu sabia que nenhum livro tinha me tocado daquele jeito até então. E até hoje, se alguém me perguntar qual é o meu livro favorito de todos os tempos, no meu primeiro lugar inabalável está "Os Miseráveis" de Victor Hugo.

Existem várias adaptações que cortaram essas 1500 páginas para umas trezentas ou menos. Provavelmente são edições que focam mesmo nos protagonistas, e tentam resumir ao máximo a dialética do Victor Hugo. Não julgo quem eventualmente preferiria essa edição: eu levei uns seis meses para ler o texto integral, numa leitura sem pressa e compromisso. Mas eu ainda levanto a bandeira em defesa do texto integral por um motivo nobre: Victor Hugo, acima de tudo, foi um grande intelectual da sua época. E no meio da história do Jean Valjean, Javert, Fantine, Bispo Myriel, Cosette, Marius, entre outros, o autor nos presenteia com diversas reflexões dele sobre a sociedade da época, que vão desde a situação de crianças da rua parisienses no século XIX, até pela narrativa da batalha de Waterloo com o emocionante triunfo de Arthur Wellesley em cima de Napoleão Bonaparte. 

E embora muita gente ache que esses capítulos são descartáveis, eu acho que são enriquecedores e imperdíveis.

Durante muito tempo me questionei o porquê da obra ter esse título. O uso da palavra "miserável" no plural vem a calhar muito. Todos os personagens contém algo que lhes torna miserável em algum sentido. Pode ser uma pessoa que abandona tudo e decide viver na pobreza extrema em prol dos outros, ou uma pessoa que busca expiação dos seus pecados. Uma mãe desesperada em sustentar sua filha, ou um cara que perde a humanidade para fazer leis serem cumpridas. Esses são apenas exemplos do quão imensa pode ser a ambiguidade do termo "miserável". A escolha da palavra foi algo tão acertada, que ninguém mais usará esse termo da maneira que Victor Hugo usou.

O autor também, além de saber contar uma história como ninguém, convida nós, leitores, a refletir com os personagens e com os acontecimentos. Isso é uma coisa que o Victor Hugo nos convida em diversos pontos: a refletirmos sobre o que levou os personagens a fazerem suas escolhas, ou deduzirmos o que está para se passar. Existem diversas reviravoltas na história onde ele fala coisas por exemplo: "É possível que nesse ponto da história o leitor tenha percebido que fulano é na verdade sicrano".

E ao mesmo tempo o livro é um grande apanhado histórico da época. Começando em 1815, com a guerra da Sétima Coalisão e queda de Napoleão, até a Rebelião de Junho, uma insurreição que eu não conhecia, onde os republicanos tentaram retirar do poder o monarca empossado, o rei Luis Felipe. Para esse último existe uma parte inteira dedicada quase que exclusivamente à ela, intitulada "O idílio da Rua Plumet e a Epopéia de Saint-Denis", onde personagens fictícios dividem a cena com acontecimentos reais.

Mas acima de tudo se trata de um romance com um fundo histórico. Nele temos Jean Valjean, o protagonista, um homem que é preso por cinco anos por ter roubado um pão, e mais quatorze por diversas tentativas de fuga da prisão. Após cumprir esses dezenove anos em cárcere, livre, ele parte para a cidade de Digne, mas por conta do seu "passaporte amarelo" — onde está escrito que ele é um ex-presidiário — ele não consegue se hospedar em nenhum lugar, e o único que lhe dá um teto para dormir é o bondoso bispo local.

Jean Valjean tenta roubar os castiçais de prata do bispo, mas ao ser pego pelos agentes da polícia o Bispo de Digne diz que foram um presente para ele, e essa atitude bondosa depois de ter sofrido tanto faz com que Valjean busque redenção do seu passado. E então vários personagens começam a cruzar sua vida, das mais diversas maneiras possíveis, e ele se vê no dever de fazer o bem aos outros assim como foi feito com ele.

A obra "Os miseráveis" continua um livro essencial. Mesmo quase 160 anos depois da sua publicação, continuamos vivendo em tempos onde existe uma asfixia social intensa. Olhamos à nossa volta e nos deparamos com ignorância e miséria nunca antes visto. E essa obra não apenas continua atual, como é um documento precioso para entendermos nosso presente, olhando e conhecendo o passado.

Muito obrigado por ter existido, e feito algo que só você poderia ter feito, Victor Hugo. Um livro que carregarei para sempre na vida, e que com certeza relerei por muitas e muitas vezes. 

SPOILERS ABAIXO
Se não quiser revelações sobre o roteiro, o post termina aqui.

Como eu disse acima, é curioso como esse livro me emociona profundamente. E não é apenas uma ou duas vezes, mas em diversas partes decisivas eu estava em prantos, derrubando lágrimas e mais lágrimas em cima das páginas desse livro.

Na primeira vez que li eu lembro que nunca tinha sentido algo assim. Foi precisamente na parte onde após o Jean Valjean ser pego com os castiçais de prata do Bispo Myriel, onde após a polícia dizer que havia pego quem o havia roubado, o Bispo mentir, dizendo que ele não havia sido roubado, que ele havia dado aqueles castiçais de presente ao Jean Valjean, o livrando da iminente prisão.

Quando eu vi esse ato de bondade eu lembro que me tocou tanto o coração que eu não conseguia parar de chorar. E dessa vez que reli, chorei exatamente na mesma parte mais uma vez. E foi apenas a primeira de muitas lágrimas que derrubei. Essa parte moldou meu caráter. Se eu antes era uma pessoa que acreditava que quem faz o bem só toma naquele lugar, naquele momento que li fiquei com a impressão de que se fazer o bem continua algo essencial na nossa vida, e não devo deixar de tentar praticar em todas as situações.

Lembro que mais pra frente, a Fantine é a causa de duas grandes emoções para mim. Ela, que engravida do Tholomyès, que a abandona logo após, acha que seria um bom negócio deixar sua filha com os Thénardiers. Eu sabia o que acontecia, e quando reli deu um aperto no coração.

As lágrimas caem mesmo quando ela, vendo que sem poder honrar as dívidas dos Thénardiers, vai cada vez mais decaindo, vendendo os cabelos, os dentes, e terminando por se prostituir. E voltei a derrubar outras quando o pai Madeline (que é na verdade o Jean Valjean) decide cuidar dela, apesar das calúnias que levantaram sobre ele.

Não consegui conter a emoção mais adiante, quando a Cosette — a menina que era explorada dia e noite pelos Thénardiers —, sem direito a brinquedos, boa comida, e sempre forçada a arrumar a casa, é encontrada por Jean Valjean e ele lhe dá a Catherine, a melhor e mais cara das bonecas. Eu vibro de felicidade toda vez que vejo, e a emoção que Victor Hugo passa dentro de Cosette é algo que mexe com a gente no fundo da nossa alma!

Embora o livro do Marius o tenha tornado meu personagem preferido, acho que rolou ali mais uma empatia no lugar de lágrimas! Ele é super idealizador e romântico como eu, tem muita honra também, e muito estudioso. Marius Pontmercy se tornou meu personagem favorito de longe, e a história toda dele eu via muita coincidência com minha própria trajetória.

No final do livro do Marius estoura a tal Rebelião de Junho. Embora se passe em apenas alguns dias, e narre como ninguém como foi que ela começou e o governo revidou massacrando a insurreição, chorei muito quando via todos os revolucionários morrendo, um após o outro.

Na parte final, onde mostra que Jean Valjean salva de todas as maneiras a vida de Marius, mesmo sabendo que ele está apaixonado pela sua filha Cosette (e ela também morre de amores pelo Marius) é de derreter o coração. Todo o esforço de passar pelos esgotos e no final o encontro com o Javert, foi de matar. Mas me emocionou muito quando o avô do Marius, o senhor Gillenormand, depois de ter negado ajudar seu neto a se casar com a Cosette, fica sem chão ao ver seu neto todo ferido e de portas para a morte depois de ter participado da Rebelião. O velho fica enfim bonzinho, e isso é uma parte muito fofa!

Acho que o final do livro vai se arrastando muito. A gente vê o Jean Valjean meio que se definhando depois do casamento da Cosette e Marius, e por mais que eles tentem ajudá-lo, não conseguem. Jean Valjean conta no final toda a sua vida, seus erros, mas fala uma coisa linda: que assim como ele protegeu e cuidou de Cosette, lhe dando uma vida, ela também foi uma filha fofinha e lhe deu um sentido para sua vida também.

Uma obra prima! Um livro que jamais quero esquecer enquanto viver.

Comentários

Postagens mais visitadas