O tempo que transforma tudo em ruínas.


O tempo faz muitas coisas ruírem. Das montanhas mais altas do mundo, até simples casas de alvenaria. Cedo ou tarde o tempo chega para todos. Mas nossas memórias continuam, pelo menos enquanto as revivermos de tempos em tempos. Enquanto pesquisava umas coisas no Google Maps, resolvi ver como está o último local que trabalhei. Afinal uma pandemia ainda está acontecendo, e nem sabemos mais quais comércios sobreviveram ou não. De primeira eu não me achei, mas era só uma questão de voltar no tempo no histórico de fotos no Street View de 2014 que revivi onde estava.

Era um bairro residencial, que hoje é de um padrão classe média alta de São Paulo. Ouvia histórias das pessoas dizendo do quanto a violência escalonou ali nas últimas décadas: pessoas que trabalharam comigo, que moravam lá há décadas me contavam que quando eram crianças, podiam ficar na rua até tarde, que era um local bem mais tranquilo e pacato.

Hoje virou um bairro que, apesar de ser todo bonitinho e organizado, é um deserto. Não sei se tanto pelas pessoas de lá saírem direto para trabalhar, ou se viviam trancadas em casa mesmo. Eu lembrei de uma amiga — que também mora num bairro do mesmo padrão — que ela me contava que praticamente não saía de casa, vivia com vários alarmes, câmeras, segurança, e mesmo quando saía era apenas de carro. A família dela devia ter uns quatro ou cinco carros, metade do terreno da casa era só garagem, para o carro do pai e da mãe, e os carros das filhas.

E enquanto eu — muitas vezes a única alma andando naquelas ruas — caminhava no bairro do local onde eu trabalhava, era sempre aquele imenso deserto. Depois um camarada do serviço me indicou que eu voltasse sempre em grupo, pois o facto de ser um bairro tão deserto, era indício também de que era cheio de criminosos à espreita. Gente que saía do meu bairro de periferia para assaltar a galera que não era rica que morava ali.

Achava aquilo bem diferente, pois aqui onde moro na periferia, as ruas vivem cheias de pessoas. Minha casa mesmo, mesmo sendo longe da avenida principal, deve passar mais de mil pessoas andando por dia, em todo horário tem gente caminhando, inclusive de madrugada.

Mas gostava de caminhar por lá. Tinha acesso a várias avenidas e pontos cheios de prédios da cidade. Eu almoçava num local distante que havia achado por acaso, e sempre a volta para casa eu podia variar o trajeto, pegando conduções diferentes, uma coisa que eu gostava muito. Lembro de uma rua movimentada de comércio onde eu sempre ia comprar doces, inclusive a autoescola onde tirei a minha carta de motorista que não renovei até hoje.

Me lembro de quando fui pegar o visto americano não muito longe dali. E de quando eu tive uma diarréia feia por ter comido sem lavar as mãos e tive que deixar o trabalho para ir correndo ao hospital. Me lembrei dos arrombados com quem trabalhei, um povinho que nunca me aceitou por ser novato, e que me fazia sentir que as horas pareciam intermináveis quando estava no batente, sem nenhuma pessoa amistosa.

Parece que a empresa, que não me parecia muito bem quando saí, conseguiu sobreviver até por um bom tempo depois. Mas hoje ao entrar no Street View eu não achei o local. Fiquei andando na rua, olhando para os lados, e não reconhecia onde estava. O endereço parecia certo, então resolvi retroceder, entrando no histórico das imagens registradas pelo carro da Google. E lá estava. Era o local mesmo.

Mas hoje só ficou ali o portão, fechado com tapumes e uma placa de demolição.

Não tenho boas lembranças dessa firma, mas as poucas boas memórias fico feliz em guardar na minha cabeça.

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