Livros 2022 #3 - A amiga genial (2011)


Elena Ferrante sempre tem essa capacidade de lançar as palavras como se fossem teleguiadas direto ao meu coração. Começando os trabalhos lendo da tetralogia napolitana, iniciei do princípio, chamado "A amiga genial". Eu já tinha visto as duas temporadas da adaptação feita pela HBO/Rai, a série "My Brilliant Friend". Mas ao ler o livro, expandiu todo o universo daquele subúrbio napolitano de uma época distante.

O livro conta a amizade de Raffaella Cerullo e a narradora, Elena Greco, que atendem pelas alcunhas de Lila e Lenu, respectivamente. Elas vivem em um subúrbio pobre em Nápoles no pós-Segunda Guerra, na Itália. E nessa vizinhança super pobre e marginalizada, famílias brigam, amizades são construídas, pessoas nascem e morrem, e tudo quanto é coisa da vida acontece — mas todos narrados da forma única e marcante que só a Elena Ferrante consegue.

A Ferrante é ótima quando o assunto é fazer um dramalhão. Mas ela te vende esse dramalhão de uma maneira que você consegue traçar uma linha de acontecimentos que fazem sentido na nossa cabeça. Ao mesmo tempo não é apenas triste, pois a protagonista dela é normalmente uma pessoa inteligentíssima, com grandes insights que eu duvido que eu, pessoalmente, conseguiria ter na mesma situação que ela. E o jeito que narra os acontecimentos — algumas vezes não sendo muito lineares — faz aquilo que eu como autor adoraria fazer: brincar com a noção de tempo no livro.

A tradução é muito boa e acho que tem apenas uma nota do tradutor no livro inteiro. Considerando que o livro, embora tendo sido escrito em italiano, tem muitas referências ao "dialeto" napolitano: uma coisa super presente em outras obras da Ferrante, como o que eu já ali, A vida mentirosa dos adultos (que eu ainda não escrevi sobre, desculpaê). Mas como eu disse, a editora Globo (usando o selo Biblioteca Azul) tratou com muito carinho e respeito, então só tenho a agradecer pela linda tradução e adaptação.

Lila e Lenu têm uma relação bem ambígua: elas se amam de maneira tão profunda, mesmo sendo pessoas extremamente diferentes em diversos pontos. Lila é a menina magrela e sempre suja, já Lenu é a menina asseada e certinha. O que as une mesmo é a pobreza. Lila tem uma capacidade imensa de aprender coisas de maneira fácil e muita esperteza, já Lenu aprende as coisas com a ajuda dos outros e possui uma maior inteligência. São conceitos difíceis de explicar aqui, mas isso tudo é bem claro conforme vamos lendo no livro.

E no meio disso tudo tem as tretas do local onde vivem. Mortes misteriosas, pessoas que perdem a sanidade mental, ameaças, sequestros e desaparecimentos. Amores impossíveis, vontade de crescer na vida, de desafiar o sistema social. Ao mesmo tempo muita coisa boa, muitas passagens fofinhas e felizes (afinal, ninguém é de ferro), e coadjuvantes apaixonantes menos o Nino Sarratore.

Gosto muito também dos dilemas e ritos de passagem da vida, como escolher onde estudar, com quem vai casar, o medo de ficar manca como a mãe que a Lenu tem, e a vontade de subir na vida a qualquer custo que a Lila possui. Até coisas bem triviais como a primeira menstruação a Ferrante consegue transmitir de um jeito único — que ajuda até eu saber como funciona, por motivos (biológicos) bem óbvios.

Elena Ferrante mira, e acerta sempre em cheio. Sou fã incondicional.

Como eu também gosto muito da adaptação televisiva, a série "My Brilliant Friend", da parceria entre a HBO e a RAI, abaixo vou compartilhar alguns spoilers comparando cenas do livro com a série. Para quem não quer revelações sobre o roteiro, a resenha termina aqui. Muito obrigado!

- - - - SPOILERS ABAIXO - - - -
Depois não diga que eu não avisei!

O livro sempre é melhor? Em 90% dos casos sim. E agora que li para comparar, não sei dizer que foi a melhor coisa do mundo ter rolado uma adaptação para a tevê do livro. O motivo é bem simples: não importa o quão bom seja o elenco (e, acredite, é uma moçada MUITO excepcional de boa), diversas partes da série a gente só vai pegar o quão profundo foi a passagem, quando lermos o livro.

Cada livro deu aproximadamente uma temporada de My Brilliant Friend. A terceira temporada está prestes a sair, no final desse mês. Aqui quero destacar algumas partes que senti diferenças — sejam literais, ou subjetivas — do que era retratado no livro.

Logo depois que Lila e Lenu vão até o porão atrás de suas bonecas, tem uma parte presente no livro que é totalmente suprimida da série, e que fazia muito sentido para o desenrolar dos acontecimentos: a declaração que Nino Sarratore faz para Lenu quando são crianças. Isso acontece na página 51, e na série não é mostrada.

Acho que essa parte do livro é essencial para entender o maior dos rolos sentimentais da Elena, que é justamente sua paixão pelo Nino. Mostrar que isso nasceu na infância, quando ele chegou nela e disse que quando crescessem, iriam se casar.

Tem uma outra parte, mais pro meio do livro, onde um detalhe passa desapercebido na série, mas é muito aprofundado no livro. No episódio 4, depois que o pai da Lenu a leva para conhecer seu trabalho como contínuo na prefeitura, Lenu conta para Lila como foi conhecer o centro de Nápoles. E na série, depois que Lenu conta, Lila meio que a ignora e fala que quer ir na festa da Gigliola.

Mas no livro a Lenu tem um insight incrível onde ela saca que aquilo não era uma mera distração (como é mostrada na série), mas sim que a mente da Lila funciona de uma maneira única: com um fluxo de pensamento que se nutria de coisas concretas. Talvez a mente da Lila não era tão boa em abstrações, em imaginar os cheiros, as cores, e as diferentes sensações que Lenu contava sobre como era o centro da cidade, mas sim nas coisas que na mente da Lila já tinha referências: o mundinho do subúrbio onde vivem.

Eu entendo que sim, essas partes assim aprofundadas são muito difíceis de se conseguir transportar para uma série televisiva. Se tivesse uma voz de uma narradora de fundo citando o livro, seria muito chato. Livros conseguem fazer coisas que nem cinema, nem rádio, nem televisão são capazes de fazer, e esse é uma dessas partes exemplares na página 133 do livro.

E perto do final, outra passagem que é igualmente aprofundada no livro, e colocada de maneira deveras superficial. Ela se dá no final do livro (página 330) e nos minutos finais do último episódio da primeira temporada. Nele, Lenu, após o Nino dizer que não publicou o artigo dela, ela se levanta e vê toda a algazarra que estava sendo aquela festa com todo mundo loucão.


E então a narradora na série relembra as palavras da professora Oliviero, onde ela dizia o que era a "plebe". E a Lenu percebe que era exatamente o que a professora a havia alertado: a "plebe" eram eles mesmos. Só que no livro essa parte é descrita com muito mais ênfase, explicações, e toda a imensa gama de sentimentos que a Lenu sente, que na série no máximo o que ocorreu foram os olhos marejados.

Foram três spoilers comparativos, mas que acho que ilustram o ponto em que quero chegar: livros são insubstituíveis. Pode ser que mentalmente as cenas se desenrolem com alguns detalhes diferentes na cabeça de cada um, mas livros, mesmo sendo séculos mais antigos do que o cinema, fazem coisas que até hoje a telinha pena para chegar aos pés.

Não deixem de ler livros jamais! 

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