Livros 2022 #5 - Casta: As origens de nosso mal-estar (2020)
Desde que vi o pessoal do Foro de Teresina indicando esse livro, vi que tinha que comprar e adicionar à minha biblioteca. Eu imaginava que era um livro bom, mas o quanto ele abriu minha mente foi muito mais do que eu poderia sequer imaginar. Graças à magnífica Isabel Wilkerson, fazendo ressurgir novos significados a coisas que há muito tempo assombram a humanidade: a questão racial.
A proposta dela é que façamos a leitura de que existe um sistema de castas que domina o mundo — e em específico os Estados Unidos, onde seres humanos classificam alguns com uma determinada cor de pele, feições, tipos de cabelo, e origem, como superiores ou inferiores. Algo similar ao que vemos na Índia das quatro castas principais (Brahmins, Kshatriyas, Vaishyas e Shudras) e por último os dalits, que são os mais baixos. O mesmo acontece nos Estados Unidos, onde, por ordem de superioridade, o padrão se repete: brancos, asiáticos, latinos e negros.
Ela mostra diversos pontos em comum entre os dois países. E mostra como o castismo é muito mais cruel que o racismo, pois é onde o primeiro é a estrutura em que a sociedade se baseia. Ela reforça os papéis estabelecidos se baseando na aparência física das pessoas. E por meio disso nega a um grupo respeito, posição, honra, atenção, privilégios, recursos, benefício de dúvida e bondade humana para os classificados como membros da casta inferior.
E ela destaca que o racismo tem como ordem inferiorizar alguém com base na construção social de raça. Já castismo é muito mais cruel, pois coloca pessoas em uma posição hierárquica definida, as limitando ou as elevando, com base na categoria que lhe é percebida.
São definições muito sutis, mas ela dá vários exemplos de como o sistema de castas é mil vezes mais cruel que o racismo. Muito por conta de como a palavra "racismo" virou um sinônimo de "falha de caráter", e não mais tanto o sistema que é baseado em preconceito étnico. Talvez seja aquele problema de pessoas da casta dominante (brancos, no geral) quando são alvo de injúrias raciais (quando alguém o xinga de palmito, branquelo, leite azedo, etc), dizem que são vítimas de racismo, quando não o são.
E como a própria palavra virou algo quase proibido, e esse novo sentido lhe foi atribuído, a resistência em discutir sobre impede as pessoas de entender o real significado. Que racismo é um sistema inteiro feito para prejudicar pessoas de uma determinada etnia: seja por não terem os mesmos salários, ou serem sempre presos injustamente, de viverem sempre na pobreza, de não serem considerados belos, etc. Afinal, quando pessoas são apontadas como racistas, elas sempre dirão os clássicos: "eu não sou racista", "eu não olho a cor da pessoa", ou "meu melhor amigo é negro".
A autora nos ensina que mesmo que a ideia de raça seja uma mera construção social, afinal todos os seres humanos são biologicamente muito próximos (99,9% iguais), a origem do termo provavelmente veio do espanhol raza, que era usado para se referir à casta ou qualidade de cavalos autênticos. Existem algumas teorias, como a da mega erupção do vulcão Toba, que extinguiu todas as espécies de hominídeos, criando um afunilamento da nossa espécie — todos os sete bilhões de seres humanos do planeta descendem de um grupo de dois a dez mil sobreviventes dessa erupção há 75 mil anos atrás.
Mas mesmo nós tendo uma variabilidade genética tão pequena, a ponto de um vírus respiratório ameaçar nossa espécie inteira, criamos castas para definir por razões arbitrárias quem é o melhor e o pior. E pegamos pessoas com uma característica física e as colocamos em um local onde não conseguem subir na vida, são ameaçadas, têm direitos negados, são alvo de preconceito e diversas crueldades na nossa sociedade.
Isabel Wilkerson dividiu o livro em diversas partes. Depois de uma ótima introdução onde ela apresenta como o mundo está hoje, ela na segunda parte começa a falar de muitos conceitos. Eu mesmo grifei várias partes aí, pois são definições perfeitas e sintéticas. Essa segunda parte é uma que vale a pena retomar, pois é o grande cerne de definições e explicações do livro.
Na terceira parte é uma mistura de outras definições seguidas de exemplos bem práticos que nos ajudam a memorizar: os oito pilares da casta.
O primeiro que ela cita é sobre a vontade divina, onde ela traça a coincidência de como os brâmanes se colocam como superiores — de acordo com as leis divinas — assim como o cristianismo utilizou-se da mesma maneira a maldição de Cam. O segundo pilar é a hereditariedade, onde não importa o que você faça, você sempre vai carregar o fardo da casta que você nasceu, e nunca conseguirá sair dela. Como o próprio LeBron James disse: "Se você é um afro-americano ou uma afro-americana, é sempre isso o que você será".
O terceiro pilar é o da endogamia (onde apenas pessoas da mesma casta poderiam se casar). Basicamente chegou a existirem leis que proibiam casais interraciais. E alguns estados, como o Alabama, mantiveram essas leis até o ano de 2000. Uma forma de manter o poder e as pessoas em seu lugar dentro das castas, pois impedia a miscigenação. O quarto pilar é o da pureza versus conspurcação (o ato de se "sujar", criar dúvidas sobre limpeza, de não estar maculado, etc). Isso diz respeito a apartar pessoas de castas diferentes, os isolando em bairros, banheiros para negros ou brancos, e até impedindo de frequentarem os mesmos lugares. E ao mesmo tempo a pureza, com a cultura da "única gota de sangue" americana, onde os brancos seriam os "puros", que deixariam de ser puros se tivessem algum ancestral africano, independente da cor de sua pele. Como se o facto da pessoa carregar genes africanos a colocasse imediatamente como "negra" e não como "miscigenada".
O quinto pilar é a hierarquia ocupacional: onde negros, nas castas inferiores, teriam que se contentar apenas com trabalhos na base da pirâmide econômica. Trabalhos braçais, de baixa exigência intelectual, não importando o quanto ascendam nos estudos. O sexto pilar é o da desumanização, onde indivíduos da casta superior usam a prerrogativa de que negros não são humanos, são como "criaturas", e por isso podem ser submetidos a todo tipo de humilhação e violência. Destaque para a estória do linchamento do afro-americano Rubin Stacy, em 1935, e a reação do público branco na icônica foto.
O sétimo pilar é o do terror como imposição, e o controle através da crueldade. Nele a sociedade usa do terror para controlar e manter as castas em seu lugar. O que antes era feito com açoitamento na época da escravidão, hoje é feito através de agressivas batidas policiais, tudo para manter "o negro em seu lugar". E o oitavo pilar fala sobre a superioridade intrínseca versus inferioridade intrínseca, onde basicamente afirma que um branco sempre será superior, sempre terá direito aos melhores assentos, destino e oportunidades, enquanto os da casta inferior sempre são inferiores por si mesmos, de maneira intrínseca.
O livro tem vários trechos e estórias incríveis, mas vou citar apenas três, para não deixar essa resenha ainda maior.
A primeira que vou citar foi de um concurso na época da Segunda Guerra Mundial, onde perguntaram a alunos de uma escola pública de Columbus, no estado de Ohio: "O que fazer com Hitler depois da Guerra?". E a resposta vencedora foi de uma aluna afro-americana que respondeu o seguinte: "Colocar-lhe (em Hitler) uma pele negra e fazer com que passe o resto da vida nos Estados Unidos".
Outra estória interessante que me impressionou, foi da professora Jane Elliot, na vila rural de Riceville, em Iowa, onde seus alunos — basicamente crianças brancas descendentes de imigrantes europeus — realizaram um experimento chamado "Olhos castanhos versus olhos azuis". Isso foi na época do assassinato de Martin Luther King Jr e o turbilhão de coisas que se sucederam. A ideia da professora era mostrar como era a sensação de ser julgado por um aspecto arbitrário da sua aparência. Como eram todos brancos, o aspecto escolhido foi a cor dos olhos.
Ela começou dizendo que as crianças de olhos castanhos eram a partir daquele momento inferiores, atrasadas e menos inteligentes. Tinham recreio menor, não podiam nem mesmo beber água do bebedouro direto. E antes mesmo que ela percebesse, uma hierarquia de castas havia brotado ali. As crianças de olhos castanhos começaram a ser ridicularizadas, a terem baixa auto-estima, e terem pior desempenho do que as que tinham olhos azuis. E isso mostra o quanto o racismo é cruel, pois coloca um grupo com o direito de dominar, enquanto o próprio sistema faz todos crerem que os do outro grupo são sempre seres inferiores.
E a terceira estória que quero compartilhar aqui é o "Nas primeiras linhas de frente da casta", que conta a história incrível do antropólogo negro Allison Davis e sua esposa Elizabeth conduzindo um estudo sobre castas no Mississippi segregacionista em 1933. Eles se juntaram a outro casal de antropólogos, Burleigh e Mary Gardner, e viveram na cidade de Natchez estudando e sentindo na pele todas as benesses e preconceitos que seriam alvos por conta da cor de suas peles, e já naquela época escreveriam teses incríveis sobre a teoria das castas americanas — e infelizmente por conta de serem antropólogos negros, mesmo escrevendo uma obra que poderia ser a base para entender o racismo estadunidense, não foram tão reconhecidos como outros antropólogos brancos que fizeram estudos similares, mas sem tanto refinamento como os de Davis.
E a jornada de Isabel Wilkerson continua no livro, mostrando os pequenos avanços na gestão Obama, e os retrocessos na gestão Trump. Mas ainda fica a certeza de que ainda falta muito para que tanto os Estados Unidos, como o mundo, cada um dentro de sua particularidade, supere a questão da casta. Ela, assim como o racismo, está tão impregnado na nossa existência, que todos nós acabamos sendo racistas mesmo quando dizemos não ser. Muita coisa tem que ser mudada, e todos nós temos muito a aprender.
Como Einstein mesmo disse, quando desembarcou nos EUA fugindo da Alemanha nazista: "O mal mais grave é o tratamento dado ao preto. Qualquer pessoa que se vê confrontada com esse estado de coisas em uma idade mais madura sente não apenas a injustiça, mas o desprezo do princípio dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, segundo o qual 'todos os homens nascem iguais'". Einstein repudiava com todas as forças preconceito de raça, pois ele, como judeu, sabia exatamente como era isso.
Em um mundo desigual, especialmente se esse mundo é regido por castas, temos que entender que todas as pessoas, desde as da casta inferior quanto a superior, vão colher bons frutos quando os que estão em desvantagem têm suas necessidades atendidas. Todos crescem quando os pobres e os que estão na base da pirâmide econômica e social progridem. Isabel Wilkerson dá o exemplo das proteções legais que mulheres possuem no trabalho — o benefício de um, melhora a todos.
Mas o problema maior é que em uma sociedade desigual quem está no topo não quer sair de lá. Mesmo que tentemos explicar o conceito acima (de que quando os de baixo ascendem, todos melhoram), é a cor da pele que os fizeram se achar superiores, e é a cor da pele que é o último subterfúgio para mostrarem que são superiores desde seu nascimento.
Enquanto lia o livro pensava muito na questão do meu privilégio em ser branco no Brasil. Como me disse uma vez meu amigo Thiago Alves: só no Brasil eu sou considerado branco, pois nos Estados Unidos eu sou considerado latino. Mas levando em conta que sou classificado como "branco" no Brasil, nossa obrigação não é chegar em pessoas do grupo que sofre perseguição e dizer que "não fui racista", ou ditar o que é ofensivo, doloroso ou degradante.
Nós, brancos, temos um infeliz privilégio nessa sociedade racista, e isso é um facto. Mas isso também nos traz uma responsabilidade imensa no que diz respeito de termos a obrigação moral de agir quando vemos outra pessoa sendo tratada de maneira injusta. O mínimo que podemos fazer para melhorar o mundo é não ficarmos calados, levarmos conhecimento bom, como esse livro da Wilkerson, e não piorar o sofrimento de pessoas de uma etnia que vem, injustamente, há séculos sendo alvo de todo tipo de racismo por um aspecto arbitrário: a cor de suas peles.
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