O queimar da lenha.


O inverno aqui em São Paulo é sempre muito seco. Isso causa muita irritação, garganta seca, nariz entupido. Mas ainda assim eu amo o frio, então me sinto muito bem. Sei do meu privilégio de ter um teto, e sou muito grato, ao mesmo tempo que desejo sinceramente que mais pessoas pudessem ter esse mesmo privilégio. Mas nesse inverno existe algo a mais. Enquanto escrevo, sinto um cheiro forte de queimado. De começo me incomodava, junto com o ar seco, difícil de respirar. Mas quando parei pra refletir, vi o quão triste é sentir esse cheiro.

Difícil de imaginar uma realidade como essa em que vivemos. Éramos um país que servia de tanto exemplo pro mundo inteiro, uma das únicas democracias entre os BRICS, até gozávamos de enfim nos tornarmos um país rico. Haviam pobres indo para as universidades, muitas pessoas se formando e se especializando. Pessoas tendo a oportunidade de viajar para fora, conhecer o mundo e ao mesmo tempo tentar assim entender — por uma outra perspectiva — como funciona nosso país. 

Mas acima de tudo a gente não imaginava que era possível voltar para trás. Talvez pela nossa imaturidade, a gente achava que o progresso era sempre calcada em passos adiante. Nunca passos para trás. O que havia sido conquistado, nunca seria perdido.

Até que veio a eleição de 2018. E em um grande delírio e histeria, o grupo que sempre oprimiu o país tomou o poder. Como se os cheios de privilégios não dessem o braço a torcer, como se o mundo fosse piorar muito em dividir um pouco tudo o que conquistaram. Quando os grupos oprimidos crescem e melhoram suas condições, a sociedade inteira ganha. É burrice achar que alguém vai perder algo. É dividindo que se multiplica, o mundo se torna um lugar melhor para todos quando não há injustiça.

E assim os grupos supremacistas e elitistas foram ganhando cada vez mais. Talvez nunca tenham ganhado tanto — dinheiro que não circula, apenas atribui o status de poder, aumentando ainda mais as desigualdades entre as pessoas desse país.

E quem já era pobre, se tornou ainda mais pobre. Voltamos a ter fome. Devemos estar com pra lá de um milhão de habitantes a menos, mortos pela Covid. Se diminuiu mais de um milhão na Rússia, aqui os números devem estar ainda piores. Jovens sem emprego, sem esperança.

No meio de todas essa calamidades, eu volto a refletir sobre esse cheiro de queimado que sinto todas as noites. Não são pessoas fazendo fogueira para espantarem o frio. São pessoas da periferia da maior cidade do país que não têm dinheiro para comprar um botijão de gás e estão usando madeira para improvisar um fogão para fazerem comida.

Esse cheiro não é algo excepcional. Praticamente todas as noites eu sinto. No começo, como falei, me incomodava. Mas hoje eu vejo que o que está no ar é apenas o reflexo dos nossos tempos. O cheiro é um símbolo de toda a miséria para a qual caminhamos desde a última eleição. O fundo do poço que pessoas escolheram pra se jogar baseadas em notícias falsas, conspirações, e histeria. O passo para trás que eu tanto achava que era impossível de acontecer. A inocência que perdi por achar que tudo o que conquistamos não tinha como ser perdido.

Quando eu sinto o cheiro de queimado, percebo que todos nós perdemos. Um governo, como o de Jair Rolbosano, que não consegue fazer o mínimo de justiça social, só aumenta ainda mais o grande abismo da desigualdade no nosso país.

Talvez um dia o país possa ter uma direita. Mas isso só vamos conseguir depois de conquistar o mínimo de justiça social. Precisamos que o Estado faça a justiça em nome dos injustiçados. Tirar dinheiro do véio da Havan, do Saverin, do Lemann e de tantos outros. Esse dinheiro tem que ser investido em escolas, em infraestrutura, em bibliotecas, hospitais, transporte público, ferrovias, e em tudo mais.

Hoje o atual presidente fica preocupado com a miséria do povo que não votará nele, mas um governo é feito em um processo. Tem que haver planejamento, saber ouvir e dialogar, e não ficar querendo ameaçar todo mundo que fale o contrário. Nunca ouve o sonho de fazer desse país um local melhor. O que ele queria fazer mesmo era derrotar o petê, liberar as armas, e ter foro privilegiado para não sofrer processos depois de uma vida falando mentiras, insultos e calúnias.

Por isso mesmo essa vontade em se reeleger. Ele sabe que vai ser preso depois que terminar o mandato. Muita coisa errada foi feita, muitos crimes foram cometidos, muitas vezes que a Constituição foi desrespeitada. Um presidente é um cidadão como outro qualquer, e deve lealdade não ao povo, e sim à Constituição, como todos nós.

Enquanto sinto o cheiro de madeira queimada, meu coração aperta. Nem mesmo para comprar um botijão de gás as pessoas têm condições. Em que momento erramos? Parece que pegamos o pouquinho que caminhamos em quinhentos anos de existência e voltamos à estaca zero. Rolbosano nunca teve a intenção de dar uma vida melhor para as pessoas. É apenas ficar no poder pelo próprio poder.

Um país que se diz democracia, mas que eu tenho que embaralhar as letras do nome do presidente para que os robôs não encontrem o texto. Elegemos o próprio mal encarnado. Uma pessoa que se diz cristão, mas que na verdade é a própria encarnação do anticristo.

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