Eu já não cabia ali.

Me machucava muito quando eu via meu irmão e sua esposa viajando pro interior com meus pais. Eu entendo que ele é o motivo de maior orgulho deles — aquele que trabalha, se casou, e está vivendo sua vida. Mas já naquele tempo eu via como eu já havia perdido o pouco do afeto que eu havia conquistado. Eu sempre sofri muito por ser incompatível com meus pais. Aquelas viagens eram apenas o começo. Sinto que o cheque-mate foi nesse final de semana passado.

Minha mãe havia inventado de almoçar fora. Teve uma época que fazíamos isso com uma certa frequência — isso até o dia que meu pai, que sempre aproveitava os almoços para me cobrar emprego, namorada, e rumo da minha vida, e isso me incomodava muito — mas havia anos que não fazíamos mais isso. Seja por falta de dinheiro, ou mesmo medo de acabarmos brigando como fizemos algumas vezes.

Quando ela me disse que meu irmão e sua esposa iriam juntos, por um momento achei que seria uma ótima ideia. Como eu disse antes, eu nunca era convidado. Os filhos eram sempre o meu irmão e sua esposa. Eu sempre fui apenas o cara que reside na casa e não conversa com ninguém.

É curioso como ás vezes uma simples ação pode desencadear na gente reflexões tão profundas. Talvez o que levaria muito mais tempo e queima de neurônios, comigo foi rápido e preciso. Aquilo me tocava uma ferida, a ferida de rejeição do meu pai.

Meu pai sempre teve uma autoestima muito destruidora de tudo o que está ao seu redor. É o tipo de pessoa que acredita que nunca errou, e que só errou quando achava que estava errado. Por isso suas convicções de vida atropelam qualquer outra pessoa. Se ele decide que algo deve existir ou ser feito de uma maneira, não há quem o faça mudar — seja criação dos filhos, ou acender uma churrasqueira.

Embora para as outras pessoas ele adore dizer que ama seus filhos e os admira, dentro de casa ele nunca se virou para tecer um único elogio. Muito pelo contrário, sempre que ele voltava do bar, só sabia nos rebaixar, ser agressivo, e nos humilhar. E quando estava sóbrio, ficava em um silêncio profundo — contando a hora de ir no bar para beber mais uma vez.

Como ele tinha essa autoestima destruidora contra os outros, ele sempre se achava como uma espécie de enviado de deus para trazer civilidade e conhecimento para a família da minha mãe, que era toda baseada em nordestinos retirantes. Meu pai era o gênio paulistinha, alguém acima de todos aqueles buscapés (como ele os chamava), e que todos eles deviam se ajoelhar aos seus pés e pedir para que ele compartilhasse sua sabedoria paulistana com aqueles pobres seres sem luz oriundos do nordeste desse país.

Porém quando eu nasci, eu não tinha cara de paulistinha. Eu tinha uma pele morena, cabelo grosso, e o nariz gordinho. Meu corpo era forte, e meu rosto oval. E além de tudo eu gostava das coisas do nordeste: comia milho, cuscuz, e rapadura. Dizem que meu pai não suportava isso, e sempre rebaixa qualquer costume dos estados da região nordeste.

Mesmo eu sendo seu filho, ele sempre me viu como um baiano. E isso não é algo depreciativo para mim, mas para ele é o cúmulo da humilhação. Afinal, mesmo ele se casando com uma baiana, ele queria que seus filhos saíssem refletindo a imagem da perfeição que ele tinha — a perfeição paulista, branca, magrela, com o nariz curvado de águia, e o cabelo liso e fino.

Foi aí que meu irmão veio. E por ele ser muito mais parecido com meu pai, isso lhe dava uma posição de destaque e privilégios que eu nunca pude sonhar para mim. Enquanto eu tinha que cumprir ordens, meu irmão não precisava fazer nada. Enquanto eu era rejeitado e humilhado, e ameaçado de ser expulso de casa em toda a minha infância, meu irmão não era encostado um único dedo. A única briga que tiveram foi, ironicamente, perto do casamento dele. Uma única briga, mas que parecia uma sinfonia para mim, vendo aqueles dois batendo boca.

E quando eu vi meu irmão e sua esposa entrando no carro, imediatamente me encolhi. Aquele carro era um reflexo da preferência e de como o amor era distribuído nessa família. O espaço mínimo que eu tinha havia sido conquistado pela minha cunhada, que era a nova filha dos meus pais. Eu me lembro que me senti muito apertado no banco de trás daquele maldito Corolla. Eu não conseguia ficar reto, e os espaços que as portas ocupavam deixava tudo ainda mais apertado.

Do outro lado meu irmão ficava com as pernas abertas, e sua esposa ocupando o assento do meio. Eu lutava para achar uma posição, tomado por câimbras e desconfortos. Mas eu percebi ali que não era apenas falta de espaço físico naquele carro: já há muito eu não cabia ali. Se aquela família nunca me aceitou, agora então eu não tinha nenhum valor.

Que eu sempre fui um erro, que minha existência nunca seria aceita pelos meus pais. Eu nunca devia ter sequer existido. Quem eram os filhos mesmo dos meus pais eram meu irmão e sua esposa — eram eles os que viajavam, que saíam, que os visitavam. Eu era apenas o encosto, o que errou na vida, o que nunca vai ser nada.

Naquele carro eu era o descartável. As coisas seriam muito simples sem eu ali. Meu pai poderia fumar e beber a vontade, não teriam que me sustentar ou pagarem meu plano de saúde para tacar na minha cara depois. Só existiria o meu irmão, o filho perfeito, obediente e temente a deus, a benção enquanto eu sempre fui a maldição.

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