Livros 2022 #16 - Tudo é rio (2014)
A história mais simples sempre é a que mais encanta. O roteiro de Tudo é rio (2014) da Carla Madeira é super simples: tem uma esposa, um marido e uma prostituta. Adicionamos uma camada de profundidade, onde a esposa engravida e o marido, enciumado por ter que dividir a esposa com aquela criança, espanca a esposa, um marido que ao expiar suas ações, começa a se envolver com prostitutas, menos justamente a prostituta protagonista que ele nega deitar-se com ela, e ela vê seu orgulho sendo atacado por não conseguir tê-lo como cliente. Lhes apresento Dalva, Venâncio, e Lucy, respectivamente.
De todas as coisas incrivelmente bem escritas nesse livro, gosto muito de como a Carla Madeira desenvolve as personagens. Dalva, a esposa correta, quase uma encarnação da virgem Maria, com muita pureza, altivez em seu caráter, e uma justiça inabalável. Venâncio, o marido que vem de uma infância difícil com o próprio pai, que se torna um adulto agressivo e ciumento, mas que ao mesmo tempo consegue empreender uma mudança quando o amor o leva ao relacionamento com Dalva. E Lucy, a poderosa e independente prostituta, caçando e dormindo com o homem que quisesse, que gosta muito de exercer seu poder, vaidosa, de personalidade forte, mas que se vê impotente quando sua sensualidade não faz nenhum efeito sobre Venâncio.
Uma obra que trata de tanta coisa ao mesmo tempo, desde violência contra a mulher, prostituição, infanticídio. Mas ao mesmo tempo traz também passagens com muita ternura, amadurecimento, e fé. Carla Madeira tece cada capítulo de forma que nós sintamos emoções diferentes em cada linha, tornando tudo intenso. Muitos pontos. Colocando personagens com suas complexas dualidades em um roteiro relativamente simples. Ótimos coadjuvantes participando e deixando alguma coisa para os protagonistas, e muitas reflexões para nós, leitores, sobre relacionamentos, amor, perdão, e recomeço. Um livro completo, apesar de tão curto em páginas.
E como eu disse, o livro, com toda a complexidade dos personagens, me fez refletir muito sobre minha vida. Venâncio, por exemplo, com seu pai falastrão, ausente, e ignorante. "Sofria a insuportável saudade de ter um pai que nunca teve". Como isso entrou na minha alma! Isso só me faz ter certeza de que preciso ainda gastar muito em terapia para pensar em construir um relacionamento com uma mulher. O pai de Venâncio que era muito forte, se vê envelhecendo, adoecendo, e a passagem do tempo o deteriora. E com toda sua incapacidade, em seus olhos tinham o perdão que queria pedir ao filho por tudo o que fez, mas que não conseguia mais colocar em palavras. Como a própria autora descreve: "Presos no desamor, viviam acorrentados como quem ama".
E quando o amor bate na casa de Venâncio, quando ele conhece a Dalva, é como se uma vida nova repleta de esperança se apresentasse na frente dele. Especialmente por ter sido um amor que desde o começo era recíproco — alguém na vida já teve algo com alguém assim tão certeiro e rápido? Nesse momento me fez refletir também sobre o que me fazia também desejar quer um relacionamento. Será que em mim é como em Venâncio, tentar tapar um buraco de uma carência antiga? Esse trecho me fez pensar muito: "Ter Dalva só para ele dava vontade de ser o melhor homem do mundo".
Lucy, a prostituta, outra também carregando traumas da infância. Perdeu os pais logo cedo, teve que ser adotada pelos tios, que a tratavam quase como a Cosette de "Os Miseráveis". Mas que ao contrário desta que foi salva e protegida pelo Jean Valjean, Lucy se liberta ao conhecer o poder do sexo. E ao contrário da imagem de tristeza e dó que talvez a crença popular desenhe sobre garotas de programa, Lucy é poderosa. "E se você tiver um homem, tem tudo o que ele tem. Se tiver muitos, pode ser rica".
Isso me faz também refletir se colocar prostitutas como profissionais rebaixadas, cheias de preconceito por parte da sociedade não seja também parte do machismo tão impregnado no nosso meio. O prazer das mulheres incomoda o patriarcado. Conseguir fazer muito dinheiro por meio do prazer, uma necessidade tão intrínseca em todos os homens. Afinal as mulheres também são lhe negadas o prazer, e fazer dinheiro com isso então, é o que mais nossa sociedade machista tenta classificar como imoral. As prostitutas sempre foram mulheres poderosas, que ao invés de serem escolhidas, eram elas quem escolhiam. E acho que hoje estamos revendo esse poder, onde todas as mulheres podem usar essa gana para buscarem vidas melhores, melhores parceiros sexuais, melhores trabalhos, muito graças a esse combate ao machismo que de certa forma o meretrício vem fazendo há milênios.
Para uma coisa conseguir quebrar tabus na nossa sociedade, e seus indivíduos saírem da margem, começa pelo orgulho e reconhecimento de pertencer aquele grupo. E quando essa reconstrução acontece, todo o comportamento que era visto com maus olhos, vira um elemento adotado no nosso meio social.
E por fim a Dalva, que mesmo tendo uma vida relativamente tranquila, e uma criação cheia de amor (talvez exceto pelo pai protetor em demasia) acaba sofrendo muito mais na fase adulta. Vítima de violência doméstica, acho que uma das coisas mais geniais que a Carla Madeira faz é, depois de mostrar a cena logo no começo onde ela é espancada pelo Venâncio ao ver o filho recém-nascido dividindo o bico do peito que tanto trouxe prazer a ele próprio, no capítulo seguinte é apenas uma palavra no centro da página em branco: Dor.
Como isso, de maneira tão simples, fala tanto por si só, não? Ao ler a palavra "Dor" é como se a cena toda se passasse na nossa mente. A dor de confiar em um homem, o mesmo homem que ela lhe entregou todo seu coração, usar de sua força, de maneira covarde, ao espancá-la. E no meio de toda a dor, vem a decepção e o medo. E ver o futuro que havia acabado de nascer sendo morto ali, jogado pela janela, em um ataque de fúria. Uma dor gigantesca e inenarrável. Uma única palavra, mas que parece preencher toda uma folha e despertar tanta coisa em nós, leitores.
Mas como eu disse antes, o livro tem muitas coisas lindas. A própria Dalva, por exemplo, ver toda a sua reconstrução, ela se recuperando da dor, e todas as pessoas que vem ajudá-la. Sua mãe, por exemplo, vindo de um lugar distante e ensinando para sua filha sobre a verdadeira fé: "Deus não é um lugar de certeza, é só um pouco de esperança".
Ou quando Lucy, que acaba ficando grávida mais perto do final do livro, se vê desesperada com medo do filho ter que viver no meio de mulheres tristes e cobertores cheios de porra. Tem um desespero ali, mas logo mais adiante ao se deitar com uma pessoa, se vê ali protegida por um ninho de amor, envolvida nos braços de alguém. Uma coisa que talvez ela só havia provado com um ou outro homem na história.
Ou ainda no desfecho final de Venâncio e Dalva, onde ali eu desabei de chorar mesmo, inspirado por todo o amadurecimento — que veio também com muita dor, dúvidas, e desconstrução — e eu profundamente emocionado pensando que ainda posso ter esperança, mesmo no meio de todos os meus medos e traumas.
Acho que esse livro vai figurar nas melhores leituras desse ano, viu?
Nota: 10
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