A fagulha que mudou o coração.


Era apenas uma cidade do interior comum. Daquelas que faz tanto calor que é difícil até de se respirar. Sem quase nenhuma mata original, fazendas cortam o horizonte com seus canaviais. Antes de Marco Aurélio nascer a grande maioria eram de laranjais. No vilarejo eles todos brincavam, e esse garoto, desde criança, já se mostrava com uma agressividade adormecida, raramente vinda à tona, onde a doçura de seus atos inocentes eram a regra. Isso até o dia em que essa calma foi lançada ao caos, com uma dinamite explodindo no imóvel embaixo de sua casa.

Existem dois comportamentos possíveis quando um filho é negligenciado pelos pais: a passividade, ou a revolta. Nem sempre eles acontecem seguindo a regra, ou ordem. Pode-se começar com um, e o outro aparecer, ou viver com apenas um deles pelo resto da vida. Mas eu, como um mero expectador de seu crescimento, via a difícil relação que o pobre Marco Aurélio tinha com sua mãe.

Talvez fosse pelo facto dos dois terem personalidades muito parecidas. Era visível que a mãe de Marco Aurélio o tratava pior que o irmão mais novo. Gritando muitas vezes com ele, sendo ignorante, ela foi cada vez mais distanciando o menino do seio dela própria. Como um reflexo que não aceitamos ao ver no espelho, os dois eram igualmente similares e antagonistas. Duas crianças brigando, mas uma com quarenta e a outra com menos de dez. E era possível ver a revolta nascendo ali.

Havia no menino uma necessidade de ser forte. Mas o meio que ele encontrou para alcançar isso foi através da força. Parecia descontar por meio da agressividade contra o mundo o que a mãe não lhe ofereceu. Uma necessidade de se auto afirmar, mas que era igualmente frágil quando o mundo respondia à força que ele usava, especialmente quando não conquistava as coisas.

Como a garota que ele gostava, mas que ele precisava mostrar muito mais maturidade e doçura do que necessariamente força. E isso o parecia frustrar. Parecia que a resposta não era essa, mas era a única resposta que o mesmo conhecia.

Por meio de teimosia e birra infantis, a criança que fazia isso para chamar a atenção da mãe, para receber colo da mesma. Mas quando ele se via jogado de lado por não ser como o irmão, tudo aquilo estava sendo depositado dentro de seu coração na forma de uma agressividade adormecida. Se a mãe lhe era ignorante, brigando constantemente com o mesmo, agredindo de todas as maneiras, não havia outra forma de mundo que ele conhecesse que não fosse essa. Um mundo baseado na lei do que tem mais força.

Foi então que no meio da noite eles ouviram gritos e barulhos que não os deixavam dormir. Na cidade pacata, onde até mesmo os grilos dormem à noite, aquilo tudo era muito inusitado. Carros acelerando, homens caminhando em pesadas passadas, e ameaças ditas pelos que estavam na calçada. "Ninguém sai de casa, senão vamos atirar", pois tudo seria rápido.

E então um som de explosão tampou seu ouvido e fez seu coração disparar. Com a onda de choque toda sua casa estremeceu. Marco Aurélio tinha uma expressão de profundo medo em seus olhos esbugalhados. E se eles subissem no seu sobrado? Armados de fuzis, assaltavam o estabelecimento logo abaixo dele. Sua família era refém desses assaltantes, mesmo que indiretamente. Os segundos pareciam horas, e o medo era constante. Um temor pela vida de toda uma família ser morta ali era o que dominava seus corações.

Esse acontecimento serviu de catalizador para o que estava adormecido. O jovem Marco Aurélio nunca mais foi o mesmo. Talvez fosse alguma forma de estresse pós-traumático, mas a conta do tratamento que recebia de sua mãe chegaria, e se uniria em uma mistura caótica de sentimentos dentro de seu coração. Abandonou os estudos, vivia recluso em sua casa. Dominado pela depressão e o medo de sair na rua, não saía mais da frente do computador. Perdeu contato com amigos, e com a família. A mãe, preocupada, vira que talvez foi tarde demais. A conta chegou, e todos os anos de gritaria e ignorância com o menino cobrariam seu preço em algum momento no futuro.

Para eles era apenas frescura. Mas o menino estava mergulhado em uma depressão profunda.

Aquele menino, que o tempo o fazia começar a se tornar um homem, se via nos discursos de um então deputado que exaltava a violência. Que com uma arma a população conseguiria se defender, já que as forças de segurança não faziam a sua parte. E o pior: ele imaginava que, se ele tivesse uma arma no momento em que o assalto ocorreu, ele poderia descer e fazer como nos filmes — alvejar todos os eles ali, criando um cenário de banho de sangue e vísceras, onde ele descontaria em toda sua agressividade aqueles anos de humilhação, onde sua família dizia que ele era um fresco, que sua mãe o agredia com xingamentos, que ele tentava ganhar respeito e admiração do mundo, e ele enfim ganharia o destaque que sempre achou que lhe era merecido. Ter uma arma significava ter a força que ele não tinha. A força que ele perdeu por conta de sua fragilidade e parco desenvolvimento emotivo.

As palavras daquele polêmico deputado ressoavam em sua alma. Era exatamente aquilo que ia de encontro com o que o jovem Marco Aurélio achava correto. Que bandido bom era bandido morto. Que não havia outra alternativa pro país que não fosse fazer daquele deputado um presidente. Quanto mais ele pesquisava, mais ele via que para satisfazer seus anseios, era o político correto. Não importava o resto. 

Ou talvez até importava. 

Aquele deputado colocava as mulheres no lugar delas. Têm que ficar em casa e servir o marido, ponto final. Não tinham que dar nenhuma mamata a quem não fosse branco como ele. E menos ainda para quem não fosse hétero. Esse deputado estava lá para proteger a família, e garantir a liberdade desse país. Mesmo que o mesmo não tivesse nenhum plano de governo, o que importava era o que ele dizia para todos os lados: "Tem que mudar isso aí".

Era mudança que o jovem Marco Aurélio queria. E já que o governo não iria lhe oferecer segurança, ele se via no direito dele mesmo fazer sua própria.

A alienação começou como a de tantos outros milhões nesse país. O primeiro passo era descredibilizar a mídia tradicional, e os jornalistas. Eles eram supostamente manipulados pela esquerda, não davam uma única notícia boa de um governo que, do ponto de vista dele, era impecável. A bandeira do país estava aparecendo em todo lugar. E informados apenas pelo aplicativo de mensagens gratuito que qualquer pessoa que tivesse um mero chip de celular poderia usar de maneira ilimitada, sua visão de mundo era cada vez mais distorcida. Uma nação paralela emergia à sua frente. O Brasil que eles moldavam e diziam que era o correto. Pois apenas aquelas pessoas queriam o seu bem. Em uma comunidade onde todos se encontravam, o ódio era sempre disseminado, e eles se sentiam compreendidos e aceitos. A revolta encontrava ressonância.

Não era necessário estudo. Não se precisava questionar ou refletir. As respostas estavam todas ali, e sem nenhuma margem para dúvida. Aquele deputado havia se mostrado bem melhor do que poderia se imaginar:

Dizia ser a favor da família (mas teve três esposas, e filhos com todas elas), não era corrupto (mas comprou mais de cinquenta imóveis em dinheiro vivo por meio de funcionários fantasmas ao longo de décadas), cristão devoto (mas falava heresias, pregava o ódio e intolerância, e mentia copiosamente), patriota (mas na verdade era um nacionalista, pregando que um grupo de pessoas representando a nação devia ter o poder sobre o Estado), e democrata (mas aparelhou instituições, ameaçou dar golpes, e se tornou um tirano).

Não demorou muito para que a bandeira estivesse em sua casa também, hasteada.

Mas o que mais me fazia curioso era tentar entender o que o tornou assim. Eu via as postagens que ele compartilhava, sempre de maneira discreta, mas diziam muito do caráter. Os perfis que ele seguia eram de um humor sem sentido, com piadas de cunho sexual, conteúdo machista, e óbvio, bastante exaltação do governo e de êxitos que nunca existiram. 

Em uma delas era postada uma manchete sobre a deflação, e embaixo uma foto de uma padaria com o vendedor falando: "Senhor, lamento avisar mas o pão está mais barato". Em outro meme, perguntavam o sexo da pessoa, e depois o "provérbio" que deveria usar para se referir a ele. E numa outra, claramente racista, mostrava um homem negro na frente de uma lousa resolvendo 5 + 3 resultando em 53.

Eu ficava abismado com essa necessidade de autoafirmação. Como eu disse acima, Marco Aurélio não era um garoto forte, mas um garoto com força. E essa força era apenas na base da agressividade, opressão, racismo, machismo e preconceito. Quando a vida o confrontava, ele se mostrava tudo, menos forte.

Todas essas formas de oprimir os outros só mostrava o quão fraco ele se tornou. Pois se fosse realmente forte, mostraria um coração bom e íntegro, mesmo em meio às dificuldades que ele passava.

Para crescer acreditamos que devemos oferecer às crianças vitaminas, exercícios, e convívio social. Mas Marco Aurélio desde o começo eu via nele um menino que precisava de muito mais carinho do que os outros. Lembrava de seus olhos de admiração comigo, me seguindo para todos os lados, mas eu não estava ali sempre. Minha presença era temporária.

E em todos esses anos de minha ausência, não sei mais se o reconheço. É verdade que não me sentia mais bem em seu meio. Ao mesmo tempo precisei de recolher para tratar minha depressão. Mas talvez o destino teria sido diferente? E quanto amor esse garoto precisava? Tenho certeza que se ele tivesse recebido, mesmo de alguém como eu que não estava lá sempre, talvez hoje as coisas seriam diferentes.

Mas ele cresceu, e se tornou um adulto tão instável quanto eu. A falta de estudos e esclarecimento o fez seguir as palavras de um messias que promovia a melhoria, mas terminou por quebrar e dividir esse país.

Na minha infância eu não tinha alguém que poderia me salvar. Mas eu poderia tê-lo salvo de alguma maneira, sendo para ele o que eu nunca tive. Sinto que falhei miseravelmente, e onde o amor se fez ausente, o ódio se fez presente.

Comentários

Postagens mais visitadas