Existe vida fora daqui?

(o texto a seguir CONTÉM SPOILERS da série napolitana dos livros da Elena Ferrante: "A amiga genial", "A história do novo sobrenome", "A história de quem foge e quem fica", e "A história da menina perdida". Leia por sua conta em risco)

Uma das coisas que eu mais me via enquanto lia a tetralogia da Ferrante foi essa relação que a Lenu tem com o bairro. Mesmo sendo uma localidade fictícia — mas baseada em tantas periferias reais em Nápoles — os problemas ali eram bem reais. Por mais que ela tivesse conseguido estudar, e ter tido a chance de buscar algo na vida que fosse além daquela vida miserável, a Lenu se sentia presa. E mesmo quando conseguia sair de lá, havia algo que a trazia de volta.

Eu sempre quis sair daqui do Capão Redondo, onde eu moro. Não tanto pela violência, para a gente que mora aqui é relativamente tranquilo: sempre tem gente andando nas ruas, e os que escolheram o submundo muitas vezes são pessoas que nos conhecem, que estudaram na mesma escola, então conosco eles não mexem.

Também nunca tive necessariamente vergonha, mas também não sei dizer se tenho orgulho. Acho que as coisas que mais me incomodam são basicamente a falta de infraestrutura, e o facto da cidade ser muito longe daqui, dificultando muito a locomoção.

Eu lembro de uma vez enquanto conversava com os sogros do meu melhor amigo, esse amigo comentou que eu gostava de andar na Paulista, na Liberdade, naqueles bairros longe da nossa realidade. E a resposta desse sogro do meu amigo foi: "Mas como assim, por que você vai pra um lugar tão longe?".

E eu sentia que os mesmos dilemas que a Lenu passava nos livros, era algo idêntico em mim. Eu tive a oportunidade de estudar, de questionar o mundo, de refletir sobre meu entorno. É verdade que ainda sou muito imaturo, sou ainda muito jovem e minha visão de mundo é ainda muito limitada.

Porém, assim como a Lenu, esse é o lugar onde eu nasci. Não apenas onde estão os meus amigos, família e pessoas que amo, mas todas as ruas, casas e bairros que fizeram parte do meu crescimento.

Quando você vive num bairro suburbano e decide estudar, a gente é muito criticado. Eu era alvo de bullying constantemente na escola, nenhuma garota queria ficar comigo, e parecia que amigos só apareciam no dia da prova para que eu passasse cola. Por mais que quisesse ser popular, não havia como. A timidez era sempre um grande empecilho, e o preconceito das pessoas era enorme. Sempre pareceu uma inversão de valores, onde a pessoa que mais tinha amigos e popularidade era justamente o mais bagunceiro, o que nunca estudava. E que estudar era algo decisivo para que fosse impopular.

Acho que de certa forma muito disso passou hoje aos trinta e poucos.

Hoje eu percebi que não sou melhor que ninguém. E sinto que, mesmo tendo estudo, eu aprendo muito mais ouvindo as pessoas. Especialmente as mais humildes. Essas pessoas sempre têm muito a ensinar, pois como eu disse, me falta muito dessa experiência da vida. Talvez eu tenha mais a questão da teoria, por conta dos estudos.

Será que é errado querer buscar algo diferente? Existe uma força que tanto me faz querer sair daqui, como outra força diametralmente oposta que parece me puxar de volta. Será que o mundo lá fora recebe bem forasteiros? 

Quando a Lenu deixou o bairro de Nápoles e foi morar em Florença, depois das bodas com o Pietro, ela não conseguia se desvencilhar da vida que havia dado as costas. Não apenas por visitas esporádicas dos seus amigos da infância, mas também por ter sido sumariamente cortada das novidades do bairro. E mesmo sendo uma escritora de sucesso, tendo uma profissão que era totalmente diferente aos dos outros do subúrbio — que ia desde sapateiro, charcuteiro, e verdureiro, até membros da Camorra — ela percebeu o valor do lugar do qual ela tinha vindo apenas quando saiu de lá.

E em determinado ponto da história ela retorna, pois mesmo a periferia tendo toda a miséria, falta de oportunidades e infraestrutura, e dificuldades inerentes na sua existência, era um ponto fervilhante de cultura e inspiração populares. E isso faz a Lenu voltar para suas origens, pois era aquele dia-a-dia, e seus registros em forma de romances, que a tornaram uma escritora de sucesso. 

Como alguém que tem a chance de estudar, e pelo facto de ser culta — e falar a linguagem dos que eram de fora da periferia — revelava sua realidade ao mundo dos que viviam em suas casas abastadas na cidade, que por sua vez faziam parte de outro mundo, totalmente diferente de onde vivia.

Pessoas essas que não queriam viver, se mudar, ou sequer visitar o bairro. Mas não negavam que todas aquelas pessoas vivendo na linha da pobreza eram interessantes à sua maneira. Era como ir para um zoológico e observar bichos — que eles até poderiam ter uma admiração — mas que nunca se misturaram aos tais.

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