Livros 2022 #23 - A história da menina perdida (2014)



Quando a gente lê, assiste, ou acompanha a trajetória de alguém, seja fictício ou não, não tem como não sentirmos essa pessoa como parte de nós. Quase como um membro da família, pois fomos felizes, passamos raiva, sentimos dúvidas, nos frustamos, em compartilhamos de todos os momentos desse personagem ao longo de sua jornada. Ao terminar de ler o último volume da tetralogia da Elena Ferrante, tudo o que senti foi um sentimento de imensa felicidade, por ter compartilhado da jornada tão ímpar da Lila & Lenu.

Apesar de ainda ser um livro excelente, acho que esse foi o que eu menos gostei. Mas ao mesmo tempo é compreensível: as protagonistas estão na fase da velhice da vida. Não possuem mais o mesmo ímpeto de tomar ações como tinham quando eram mais jovens. Existem diversos trechos onde a gente fica: não precisava ter durado tanto. Chega a ser cansativo. 

Mas até nisso a Elena Ferrante é genial: a velhice pode ser tediosa, onde ficamos mais teimosos, nos tornamos seres que possuem muito mais certezas do que dúvidas, e é por conta disso que nos enfiamos em espirais onde repetimos os mesmos erros esperando resultados diferentes.

Se no livro anterior finalmente vemos a Lenu, a narradora da história, tomando seu lugar de protagonista, sendo muito bem desenvolvida, com toda a dicotomia da sua personalidade, ora boa, ora má, e deixando para trás a imagem de uma personagem entediante e se mostrando uma verdadeira joia humana, o último livro dessa saga é claramente dividido em duas partes: uma onde a Lenu desenvolve a estória com o Nino, e outra onde ela partilha o protagonismo com a Lila.

Porém, como eu disse, o livro acaba sendo cansativo pois todos acabam presos dentro de suas fraquezas, sem conseguir agir, ou demorando muito para fazê-lo. Sentimos pena, sentimos a frustração, nasce um ódio dentro da gente, mas não conseguimos parar de ler. Por isso que acho que os protagonistas, que brilharam tanto nos livros anteriores, ficam apagados dentro dessa obra.

Por outro lado, a passagem do tempo, um personagem central nessa última parte, cria um ritmo muito peculiar do livro, com acelerações e freios tão delicados e sutis, que é muito gostoso de se ler. Ao mesmo tempo, como as protagonistas estão presas em suas questões pessoais, cria-se terreno para que as verdadeiras estrelas desse livro brilhem: os coadjuvantes.

E, como pinceladas, aparecendo subitamente, eles vão deixando o livro mais e mais enriquecido. Deixando reflexões, processos de amadurecimento, nos causando todos os tipos de emoções, e deixando seus legados por meio de seus desfechos — sejam felizes, ou nem tanto.

O meu preferido continua o segundo, seguido pelo terceiro, depois o primeiro e por fim esse último. Mas como eu disse, depois de tanto viver essas estórias, as sentia quase como que parte da minha família. Sinto que me afeiçoei de uma maneira bastante especial com todo o universo que a Elena Ferrante criou nessa tetralogia, especialmente por toda a complexidade única que ela consegue dar às personagens. Um misto de emoções, um amor e ódio pela Lenu e Lila se alternando, me fez entender o quão complexo pode ser a vida. E agradeço profundamente à autora por ter trazido à luz essa obra tão inigualável.

E óbvio que o Nino Sarratore é um lixo, um vomitativo, um excremento de ser humano, um canalha, que não vale um tostão furado. Se eu já tinha essa opinião, esse último livro só veio a confirmar, haha.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei

Como eu disse acima, o livro é claramente dividido em duas partes: uma onde a Lenu e Nino se interagem majoritariamente, e um segundo onde é a Lenu e Lila. No meio disso temos algumas participações deles aqui e ali, os coadjuvantes temporariamente trilhando o caminho, e arrisco dizer que ali no meio da história com o Nino se desenvolve uma terceira, bem mais curta, da Lenu com sua mãe, Immacolata.

Curioso que ao longo da história se demora muito para revelar os nomes dos pais da Lenu, fica apenas como "pai" e "mãe", até que enfim os nomes são dados aos bois: Vittorio & Immacolata, respectivamente.

A parte com o Nino é a sequência do que aconteceu no final do terceiro livro: Lenu deixa tudo e foge com Nino para a França, e depois disso engata num relacionamento com ele. Como, presumo que ele seja um portador de TPL (Transtorno de personalidade limítrofe, ou apenas borderline), ele, tão sedutor, tão dentro do imaginário da Lenu, se mostra um grude, um cara sufocador e muito, muito, muito, muito mais mulherengo do que sequer poderíamos cogitar. Se o Nino Sarratore existisse na vida real, eu chutaria que ele engravidou metade da população italiana. O cara deve ter mais ISTs que esgoto de puteiro, na moral. AIDS é fichinha.

E o que cansa nessa parte não é apenas o comportamento questionável do Nino. Mas o facto dele ficar em um eterno ciclo de voltar e terminar com a Lenu, de sumir e aparecer do nada, e a mesma ficar toda hora dando segundas chances para ele — onde a de facto "segunda chance" ficou lá atrás depois da décima oitava chance.

Por um lado eu entendo que havia um sentimento da Lenu ali. E quando estamos com alguém que nos é especial, independente de nosso gênero, a gente acaba perdoando e a vida segue. Mas o Nino simplesmente não para de aprontar, de causar dores de cabeça, e a Lenu está ali com duas filhas, mãe solo, e consegue a proeza de engravidar de uma terceira filha: fruto da relação com o próprio Nino.

O processo dela se separar do Nino é bem vagaroso. Ela mesma vai começando a se encher, começa a observar, e por meio disso levanta hipóteses, tenta compreender o incompreensível. Mas quando ela começa a cogitar dar um chega para lá em Nino, a coisa dá uma escalada do nada quando ela flagra o próprio comendo a empregada no banheiro de sua casa escondido. Eu soltei fogos de felicidade quando li esse trecho.

A outra metade é com Lila e Lenu. Se na outra a Lenu estava insuportável perdoando o Nino sessenta e onze vezes, nesse a Lenu parece que sente que é a hora de desvendar o que há na cabecinha caótica da Lila. E é óbvio que quanto mais ela acha que sabe, menos ela acha algo de concreto. Muito porque a Lila tem três fases bem distintas:

A primeira fase é quando ela é a chefe do bairro. A pessoa que deu certo, que subjugou os Solara, virou rica com a Basic Sight que fundou com o Enzo, e vira a chefe da porra toda. A segunda é quando a Lila muda completamente, se tornando uma pessoa muito reclusa, sem falar mais tanto de si mesma, escondendo coisas inclusive da Lenu, depois de sobreviver a um terremoto que abalou Nápoles. E curiosamente ele aconteceu na vida real! Ela fica com um medo e paranóia de tudo, extremamente traumatizada depois do abalo sísmico. E a terceira fase da Lila é depois do desaparecimento da sua pequena Tina. Ela fica azeda, agressiva, funesta, e igualmente insuportável.

É muito louco ver que, no andamento de todos os livros, a Lila tem ali uma ascensão na preferência que decola, e termina quase num ostracismo, uma personagem chata. O exato oposto é a Lenu, que começa parada e sem personalidade, e termina enfim retomando o protagonismo de sua própria história.

As crianças também são personagens centrais do livro. Dede, Elsa e Gennaro, que já haviam sido apresentados antes, ganham muita importância. E as novatas, Imma da Lenu e a Tina da Lila, conseguem seu espaço ao sol também.

Tina, a filha da Lila, desaparece subitamente durante um passeio com Nino e as outras crianças — e daí vem a "menina perdida" do título. E, embora nunca revele o que realmente deve ter acontecido, tudo não passa se teorias. E, perder a filha desse jeito cruel, sem saber seu paradeiro, se morreu ou se foi sequestrada, é algo que termina de enterrar o frágil psicológico de Lila. Até o final do livro ela fica tentando achar pistas, tentar entender o que aconteceu, procurando a filha que perdeu para sempre. E termina sem uma conclusão nisso, permanecendo o mistério sobre Tina.

E, por fim, vou comentar sobre a participação da mãe da Lenu, a Immacolata Greco. São capítulos excelentes, diga-se de passagem. Ao visitar sua mãe, Lenu fica preocupada com o estado de saúde dela, e resolve fazer exames. A filha descobre que a mãe está com um câncer agressivo, e conforme sua condição vai evoluindo, a relação das duas começa se aprofundar de uma maneira muito bonita. Perguntas são respondidas, como o motivo dela mancar — possivelmente sequelas de poliomielite —, e o real sentimento que tinha por Lenu — que era muito orgulho, não era ódio como a filha sempre imaginou.

Elena Ferrante sempre deixa lições de casa ao lermos os livros dela. E eu, como fã de carteirinha, sei que ainda vou escrever muito sobre tudo o que senti — e ao mesmo tempo tenho certeza que não demorará muito para reler tudo, pois é muito bom mesmo!

Esse é apenas o começo, haha!

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