Livros 2022 #24 - O acontecimento (2000)

No ano de 1963 a jovem francesa Annie Duchesne acabou engravidando acidentalmente. Numa época em que o aborto ainda era ilegal no país (legalizado apenas em 1975) esse livro narra, o que embora hoje seja algo distante da atualidade, a então complicadíssima busca pelo procedimento. Um livro que me causou um desespero imenso, mas algo que deve ser discutido no Brasil — pois é motivo de vergonha imaginar que o que ela passou há quase sessenta anos seja uma realidade no Brasil de 2022: a falta de direito ao aborto às mulheres.

Esse livro é muito útil para mostrar para a pessoa que acha que aborto é algo que não deve ser legalizado.

Fico pensando em como o facto da sociedade brasileira não querer discutir o procedimento (e a busca pelo mesmo), especialmente por culpa da religião, acaba impedindo ainda mais que uma mudança na legalização aconteça. Mesmo quando ouvimos falar de aborto, é justamente na visão mais chocante dela, com todos aqueles perigos à saúde da mulher, os traumas resultantes, e as mortes que acontecem, isso acaba deixando as pessoas sempre com a visão de que é algo horrível.

Mas como o livro mostra: quando ele é feito de maneira ilegal, é de facto algo horroroso. Por isso a necessidade de que ele seja chocante.

Annie acaba engravidando por acidente, justo na época em que ela estava no começo da faculdade. Vinda de uma família onde ela fora a primeira que conseguiu entrar na universidade, um filho vir ao mundo naquela circunstância acabaria com qualquer esperança de ter um futuro diferente da pobreza de seus pais. Desesperada por sua menstruação não descer, ela busca avidamente por uma forma de tirar "aquilo" de sua barriga, como ela se refere ao embrião em seu útero.

Como ela mesma comenta na época, não haviam informações de como era o processo de aborto. E o facto dela ter passado por tal coisa, e ter escrito esse livro, mostra como a necessidade da legalização do aborto é algo extremamente necessário para nosso país. Imaginar que as mulheres acabam se submetendo a procedimentos perigosíssimos, que botam suas vidas em risco, ou acabarem sendo mães em um momento inoportuno de suas vidas, onde deixam de buscar seus sonhos e realizações, não é difícil de entender que a legalização do aborto não é apenas uma questão social contra o machismo da sociedade, mas também de saúde pública.

Pessoalmente enquanto lia o livro, me sentia muito mal. Eu morro de medo de engravidar alguma mulher, o que me faz evitar qualquer tipo de relação sexual, por exemplo. E mesmo nas raras vezes quando acontece, usando camisinha em absolutamente todas as vezes, ainda fico dias pensando na possibilidade de ter acontecido uma fecundação.

Acontece que isso traz uma qualidade de vida péssima para mim, pois não acabo me relacionando com ninguém, e uma vida solitária sem uma parceira é uma existência vazia, onde falta algo, falta carinho, falta amor, e outras questões que auxiliam nossa saúde mental.

Não consigo imaginar a quantidade de desespero que eu sentiria se engravidasse alguém. Enquanto lia, ficava igualmente desesperado com o que Annie Ernaux passava. Embora para aqueles que pregam a tal "moral" adorem afirmar que relações homossexuais sejam erradas, eu fico muito aflito pois o meu prazer — heterossexual, no caso — acaba inevitavelmente passando pela possibilidade de reprodução. E exatamente por isso acabo me negando a possibilidade desse prazer por conta desse medo absurdo e irreal.

Um livro pequeno, mas chocante e cru. Algo que aconteceu em 1963, mas lançado apenas trinta e sete anos depois. Mas que, como disse, continua tão atual pois ainda existem muitos países onde o aborto continua um tabu na sociedade, e uma ilegalidade, tirando o direito das mulheres sobre seu destino e próprio corpo. Uma obra que faz um convite a um debate essencial em nossa sociedade, focado na perspectiva da mulher.

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