Medo & esperança

Havia algo de diferente no ar. Com um coração que palpita mais forte, o medo se misturava com a esperança. O alprazolam, que a psiquiatra disse que deveria ser usado em exceções, se tornou quase a regra para conseguir dormir na semana do pleito. E mesmo quando tomava, o sono demorava a chegar. Tudo isso pois no domingo haveria a eleição mais importante da história recente do Brasil.

Usualmente eu demoro pouco mais de uma semana para finalizar uma pintura. No entanto essa semana não tinha nada que pudesse chamá-la de usual. Com a ansiedade dando descargas que faziam doer meu estômago, eu sentia aquela estranha alfinetada no âmago. A dor poderia ser simples exaustão, mas a expectativa de comparecer a urna no domingo era tal que não me deixava pensar em mais nada. Passava noites, entrando nas madrugadas em meio ao giz pastel, tentando ocupar a cabeça para não pensar no domingo que chegaria. O que levaria uma semana no desenho, eu já havia praticamente concluído em dois dias, onde tentava fazer a arte para não me deixar dominar por esse misto de medo e esperança que me consumia.

Dentro de seus antagonismos eu sentia uma fusão de ambos, um yin-yang, o bem e o mal, a luz e a sombra, onde cada um deles tentava derrubar o outro. Naqueles momentos em que eu via a grande máquina de mentiras, fazendo uso do ódio, alienando mais e mais pessoas que talvez seriam indefesas — tanto por questão de falta de estudos, como pela pura e simples revolta — eu imaginava que tudo poderia ser perdido.

Que a democracia, que tanto prezamos, foi constantemente ameaçada, atualmente intimidada, seria futuramente atemorizada. E escolher sinônimos nessa última frase é o artifício que encontrei para mostrar que no fundo seria tudo a mesma coisa.

Nasci homem, branco, hétero e cisgênero. Se a sociedade humana fosse uma cadeia alimentar, eu seria quem está no topo. Mas ao mesmo tempo não vejo motivos para eu ter tantos privilégios. Eu não sou especial. E ver as pessoas ao meu redor sofrendo, pessoas que são melhores que eu, que mesmo sendo tal não possuem as mesmas chances que as minhas, só me faz pensar nas grandes injustiças que existem nesse mundo.

O que o candidato derrotado gostava de afirmar era que “a minoria tem que se curvar perante a maioria”. Mas será que as pessoas do meu grupo são mesmo a maioria? Isso é apenas a impressão que tentam passar. As minorias que ele tanto se referia, os grupos que divergiam desse de privilegiados de qual faço parte, podem estar dispersos, talvez nem sempre unidos, mas quando colocados em xeque vemos que todos eles que são a maioria: negros, mulheres, LGBTQIA+, pardos, indígenas, entre tantos outros.

E manter o poder com o atual líder, é reforçar essa força do opressor. Que existe algo que os fazem ser especiais, quando isso não existe. Que faz parte da natureza, e cada um tem que se esforçar, mas a verdade é que alguns largam na frente por critérios que não fazem sentido. Que quando um grupo que é privilegiado só é isso pois existe alguém que está perdendo. E dentro dessa nossa triste capacidade de criar rótulos, castas, e supor que um seja maior ou melhor que o outro, é o que destrói o que existe de mais igual em nós mesmos: o ser humano.

A incerteza, alguma estranha e inexplicável guinada do adversário, como foi no primeiro turno, era o que mais me dava medo. As coisas só iriam se confirmar depois do pleito.

E junto desse medo, havia a esperança de que esse país voltasse a ter seu protagonismo que sempre teve. O mundo ama o Brasil, sempre fomos amistosos e simpáticos. Mas com esse indivíduo ocupando o assento da chefia da nação, viramos um pária. Perdemos nossos cérebros mais brilhantes para irem morar no exterior. Não fomos visitar nenhum país, e nenhum país queria visitar o nosso. O desemprego aumentou, uma pandemia matou setecentos mil, e, óbvio, voltamos a ter pessoas passando fome.

Como se tudo isso pudesse ser juntado em uma bolinha, sentia a necessidade de jogá-la para cima e eliminar tudo isso. A chance era torcer para que mais pessoas quisessem esse mudança, e todos fossem até as urnas e expressar sua intenção.

Não gosto de votar pela manhã. Mas ás vezes acho que talvez seria melhor. Porque o resto do dia eu me sentia perdido, como alguém que tivesse muita coisa a fazer mas não conseguisse se concentrar para fazer nada. Uma coisa gigante, que duraria apenas alguns segundos, mas definiria os próximos quatro anos. Uma sensação que faz o dia passar de uma maneira muito lenta, arrastada. Esse dia trinta de outubro parecia um quadriênio.

Depois do almoço fui até o local de votação. Só havia uma pessoa na minha frente, depois que apresentei os documentos e passei a biometria, me dirigi até a urna.

Eu não estava tranquilo. Mais uma vez o medo e a esperança estavam em meu coração. Mas não demorei muito. Treze, confirma. Treze, confirma.

Quando concluí, senti que a esperança havia sido depositada. Meus olhos se encheram de lágrimas, e foi difícil segurar a emoção. Peguei o comprovante da votação, com a voz embargada agradeci às mesárias pela assessoria. Fiquei embaraçado quando percebi que a voz saiu trêmula, e pedi desculpas pois estava emocionado.

E ao chegar em casa, tentando ainda lidar com a mesma expectativa e incertezas que dominavam meu coração, fui jogar videogame online com meus amigos e acompanhei a apuração dos votos através do celular.

Quando meu candidato virou, eu não acreditei. Não tive vontade de chorar, como foi na votação, mas como um grito que estava preso há anos na minha garganta, eu enchi os pulmões e berrei como nunca antes havia feito.

Aqui no Capão Redondo eu ouvia todos soltando fogos de artifício, pessoas gritando nas ruas, carros passando com buzinas. Acho que nem mesmo se o Brasil ganhar a copa será uma festa igual.

E a virada se confirmou na vitória. Meu voto era apenas um ali. No entanto o voto era em prol dos outros, como um pedido para que todos os privilégios que eu tenho, todos possam ter também. Pois não existe felicidade quando alguém chega nesse sentimento na base da opressão. O que deveria fazer as outras pessoas felizes é vê-las realizadas, num mundo justo, com oportunidades para todos, onde não tenham medo de sair nas ruas pelo que são, e não esse sentimento mesquinho onde alguns acham normal e que merecem serem mais que os outros por se julgarem especiais.  

Aprendi no budismo que felicidade é como a luz de uma vela: com a chama de uma única, podemos acender um milhão de outras.

Se tudo isso vai ou não acontecer, eu não sei. Mas pode ter certeza que eu estarei lá para cobrar.

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