Livros 2022 #27 - A Pediatra (2021)

 

A proposta pode soar clichê: uma pediatra que detesta crianças. Mas o que Andrea del Fuego faz é muito mais que isso. Ela traça uma personalidade tão complexa, repleta de dualidades, que terminamos amando odiar a doutora Cecília. Junte a isso um mergulho na rotina médica, com todas as expressões e coisas técnicas da profissão. Um questionamento sobre violência obstetrícia, a maneira em que crianças são cuidadas em creches, um caso extraconjugal e... Uma criança no centro disso tudo.

A resenha a seguir contém spoilers (revelações sobre o roteiro).

Andréa del Fuego entrega um livro completo. Se você gosta de personagens profundos, você com certeza amará a Cecília. Ou talvez odiá-la. Como o livro é todo narrado em primeira pessoa, temos acesso a tudo o que lhe é de mais privado — seus pensamentos — e descobrimos uma médica extremamente rabugenta, que sempre está julgando ou criticando, pensando sempre nas piores situações. Ao mesmo tempo é ambígua, pois não são muitas vezes em que ela age de maneira má, o que dá um nó na nossa cabeça ao tentar bater o martelo se ela é uma pessoa boa ou má.

Ao mesmo tempo tem o fascinante mundo dos médicos revelado de uma maneira bem natural. Termos que eles usam entre eles, como "mãe pâncreas" — as mães de crianças com diabetes — e como funciona a rotina de um consultório pediátrico, onde ela também faz um extra como neonatalista. Me assustou muito em como no caso da Cecília existe muito uso de remédios, especialmente para combater estresse e dormir.

E como se não bastasse todo o tipo de violência que mulheres estão a mercê apenas por serem mulheres, o livro nos faz questionar coisas como violência obstetrícia. Não por Cecília ser uma guerreira em prol da saúde dos outros, mas por ela ser exatamente esse tipo de médica que está lá apenas para exercer sua profissão, sem muita empatia muitas vezes, apenas interessada em medicar logo e chamar o próximo.

O livro também conta com partes que parecem investigativas, onde a Cecília, sempre desconfiada da índole dos outros, se infiltra tanto no meio de clínicas de parto natural — tanto por desconfiança, como também por vê-los como uma ameaça à sua profissão — como até mesmo em creches, onde ela diz que é comum que as cuidadoras dopem bebês com ibuprofeno para que durmam.

Temos que entender que antes de qualquer coisa Cecília é uma menina mimada. Morando em Pinheiros, bairro de classe alta de São Paulo, apenas desfruta a vida privilegiada onde ela nasceu. Sua empregada doméstica, Deise, é a típica mulher periférica e pobre, morando na casa da patroa, vinda de uma comunidade carente e que acaba grávida por um descuido. A relação das duas é de um amor e ódio intenso, onde na grande maioria das vezes não tem como não nos solidarizarmos com a coitada da Deise — talvez a única que é realmente alvo não apenas de julgamentos mentais, como injúrias por parte da Cecília.

Uma obra onde ela começa se divorciando e se envolvendo com um homem casado. Esse homem, o Celso, entre intensas trepadas, um dia lhe apresenta seu filho, o Bruninho. Quando Cecília vê, é logo dominada por um estranho instinto maternal que ela nunca teve na vida. Se apega ao menino de tal forma que faz de tudo para estar próximo dele, saindo de um amor e virando uma estranha obsessão em querer ter o menino de toda forma possível.

Acho muito leviano definir a Cecília como uma pessoa má. Como eu disse acima, o livro é todo narrado em primeira pessoa, temos acesso aos pensamentos dela, e todos os julgamentos mentais que ela faz. Mas temos que entender que nossos pensamentos devem ser privados. É escolha nossa revelá-los ou não — e ao mesmo tempo temos que nos tornar responsáveis quando o acontece.

E dentro de nossas mentes podemos achar algo feio, não gostar de algo, ou mesmo julgar algo certo ou errado. O que as pessoas têm que nos avaliar somos nós com base em nossas ações, não em nossos pensamentos. Para isso temos freios morais e sociais, e com Cecília não é diferente.

Por isso acho leviano julgá-la baseado nos pensamentos dela. Mesmo nas ações que ela toma durante o livro, acho que posso enumerar nos dedos de uma mão as que foram realmente questionáveis e más. Numa época onde temos a internet, onde ao entrar no Facebook nos deparamos com uma caixa dizendo "O que você está pensando?", temos que ter em mente que essa privacidade é essencial para convivermos em sociedade. E até nisso essa magnífica obra nos faz refletir.

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