O duplipensar de 1984 na prática.
Esse texto contém spoilers (revelações sobre o roteiro) do livro "1984" de George Orwell. Leia por sua conta.
No mundo distópico que George Orwell criou em seu livro "1984", além das muitas coisas ali apresentadas que fazem parte desse mundo sem nenhuma liberdade, uma me chamou a atenção: o duplipensar (no original, doublethink). Eu não sei se o Rolnosabo e seu filho Tonho da Lua se inspiraram na obra de Orwell, pois nesses últimos quatro anos eu vi o duplipensar sendo usado em incontáveis situações. Mas como acho que a vileza é algo que, de maneira intrínseca, tem sempre os mesmos objetivos, onde elas independem dos caminhos contanto que às leve até ela, vou me apegar nesse ponto.
Todos prontos para guerra
Sem aceitar o resultado das eleições, o excrementíssimo por meio da rede de ódio, convocava os patriotários na frente dos quartéis pedindo um golpe de estado. Isso é uma coisa que já era prevista em Orwell, pois o duplipensar faz com que essas pessoas que ficam fazendo cocô em saco de papel, tomando chuva nas costas, e ganhando coca-cola e marmita de empresários golpistas continuem movidas por sentimentos como medo, ódio, adulação, e triunfo orgástico.
Medo do tal fantasma do comunismo que quer transformar o Brasil em uma Pobrezuela. Ódio, colocando qualquer um que não tenha seu pensamento, em comunista (mesmo não sendo). Uma adulação, onde não permitem que jamais falem mal de seu mito, o protegendo quase como se fosse um membro de sua família. E um sentimento de triunfo orgástico quando, por meio das redes sociais, causam algum fuzuê.
Isso faz com que todos os seguidores sintam estar em um estado de guerra interminável. Pois é exatamente durante um estado de guerra em que a inteligência pode ser destruída, pois só vai existir o ódio, medo, adulação a um líder, e sentimento de triunfo sempre sendo perseguido.
Mudando o passado
A obra de Orwell mostra que o Partido é tão forte, que é capaz de fazer as pessoas acreditarem que 2+2=5. E mesmo isso contradizendo o que é óbvio, quando pessoas são enraigadas ao seu líder nos conceitos que expliquei no capítulo anterior, eles, por simples obediência e lealdade, são levados a acreditar nisso. Como se o líder deles tivesse informações que ninguém mais tem — que não passam de falácias. Porém para dar sustentabilidade, se faz necessário modificar o passado. Por meio de mentiras, que são tomadas como verdade pelo gado, eles são capazes de acreditar em qualquer coisa.
Um exemplo prático disso foi quando ele levantou acusações sobre a segurança e confiabilidade das urnas eletrônicas. Não há nenhuma prova ou evidência para tal, mas, por meio de mentiras, vinha com frases como "nenhum sistema é completamente seguro" (mentira, pois as urnas não possuem conexão com a internet), que "o voto não é auditável" (mentira, pois o TSE faz vários testes de segurança com hackers e nunca nenhuma brecha foi encontrada), e que "seria necessário que a urna imprimisse o voto" (mentira, pois são impressas zerésimas e o resultado de cada zona eleitoral na porta, para consulta dos eleitores).
A alteração do passado visa mostrar que o Solnorabo é infalível. Que ele não erra, que não o deixam governar e fazer o que se é preciso, ou que não possui disfunção erétil.
Sobre a ditadura militar, eles alteravam muitas coisas. Dizia que no Brasil nunca houve uma ditadura. Uma grande mentira, pois a história mostra que houve um regime de excessão entre 1964 a 1985 foram suprimidas liberdades individuais, eleições, partidos, isso sem contar os episódios de repressão. Até mesmo coisas cruéis como negar o assassinato de Vladmir Herzog nos porões do DOPS, dizendo que ele havia cometido suicídio.
Talvez isso soe estranho para a gente que está fora do gado, mas a gente tem que entender que para a parcela da população de patriotários, a turma do excrementíssimo tem o controle sobre as mentes de todos. E eles acreditaram no passado que eles decidirem que é o verdadeiro.
Manter duas crenças opostas na mente
Duplipensar, na própria definição de Orwell, é: "o poder de manter duas crenças contraditórias na própria mente ao mesmo tempo, e aceitar ambas". Para isso, o chefe do executivo fazia uso de mentiras desmedidas, e por meio de sua falta de caráter, falar de um jeito que acredita piamente no que diz, a vendendo como uma verdade.
Isso me lembra muito a entrevista no Jornal Nacional, onde ele afirmava nunca ter injuriado e dizer que William Bonner cometia "fake news" ao afirmar isso, quando temos diversas provas dele os xingando de "canalha" até "filho da puta". Mas o que mais impressionava era a habilidade dele mentir, mantendo uma voz segura, olhando nos olhos, quase como uma pessoa que quisesse mostrar a verdade. Parece que muitos de seus eleitores, por viverem nesse mundo alimentado por informações vindas somente dele, nem mesmo tinham visto os vídeos onde ele imitava alguém com falta de ar por conta da Covid-19.
Outro ponto do duplipensar é "esquecer qualquer fato que se tornou inconveniente". Nisso eu consigo me lembrar bem em como antes da eleição ele se portava como alguém "anti-establishment", uma pessoa diferente que não se misturava com os políticos que apenas usavam seus cargos para mamar nas tetas do governo — mesmo o próprio sendo um político de carreira, expulso do exército, sem nenhum talento para nenhuma profissão. Mas ao se aliar com o centrão dizia ele mesmo que "sempre foi do centrão", fazendo seus seguidores esquecerem o que ele havia dito lá atrás, pois não era conveniente falar mal de quem lhe era necessário naquele momento.
Seguir o gado
E, por fim, o duplipensar se aproveita da nossa necessidade de sermos aceitos em grupos. Que viver sozinho é doloroso, e para tanto temos que fazer o que for necessário para sermos aceitos pelo próximo.
Considerando que o ódio, medo, adulação a um líder, e sentimento de triunfo fazem com que o gado seja muito unido nas crenças que lhe são induzidas, é exatamente esse efeito de manada, e a constante repetição, que fazem com que por meio das postagens incessantes nas redes sociais acabe angariando mais e mais seguidores. Esse público fiel vai se multiplicando, e no Brasil em específico por ser um país onde mais se usam redes sociais, e onde até aplicativos como o Whatsapp são de acesso ilimitado para seus usuários, isso se torna mais forte.
Logo no final do livro, depois que Winston é detido pela polícia do pensar, e é torturado no Ministério do Amor, ali no quarto capítulo da terceira parte, ele é colocado em um quarto sozinho, onde começa a ser bem alimentado, estar limpo, sem espancamentos ou tortura, começam a fazê-lo esquecer das crueldades que havia passado. Parece uma coisa muito irreal, mas como o próprio O'Brien afirma, é depois de despedaçar as mentes das pessoas (por meio de tortura, interrogatórios, privação de higiene e comida) é que essas mesmas mentes podem ser construídas nas formas em que o Partido desejar.
E ao vivermos em um país com pessoas passando fome, com muitas pessoas desempregadas, com a economia em frangalhos, temos um líder que diz que não há pessoas com fome, que pessoas moram nas ruas porque assim o querem, que a economia está indo muito bem, isso sem contar outras diversas mentiras moldadas no duplipensar. Assim ele transforma as mentes das pessoas mais vulneráveis, para depois reconstruí-las ao seu bel prazer.
O esquecimento se dá com todos os crimes eleitorais que realizou, como apenas no último ano de mandato implantar auxílios sociais, diminuição do preço da gasolina, ameaçar as pessoas de pobreza e comprar seus votos caso ele não ganhasse a eleição, auxílio a caminhoneiros e taxistas, e outros diversos usos da máquina pública para fazer com a população o que fizeram com o Winston: depois de muito sofrimento, oferecer um alento temporário para reatar a obediência e alienação, se aproveitando da memória curta do povo.
Uma parte que vou usar aqui para completar esse texto sobre duplipensar se dá quando Winston, depois de recuperado de todas as crueldades que sofreu, ainda preso no ministério, começa a questionar a realidade. Que ele sozinho não tinha força nenhuma para enfrentar o partido. Que ele estava sendo observado e manipulado desde sempre. Ele começa a receber diversas informações, gravações, fotografias, e ele via que não podia mais lutar contra o partido. Que era uma luta inútil.
E nesse contexto ele entender que o partido está certo. Que não tinha como todo mundo estar errado. Que não havia um padrão externo para comparar as opiniões, pois a liberdade não existia. Tudo o que queriam era que ele pensasse do jeito que eles ordenavam que ele pensasse.
Então ele pega um lápis e escreve: 2+2=5.
E que naquele momento as duas realidades eram aceitas. Se fosse no Brasil, aceitaria que o Solnorabo era um cristão exemplar em prol da família, mas também era defensor da tortura, e já estava na terceira esposa.
Na sua mente conviveria junto que ele é uma pessoa que não é corrupta, mas roubou durante anos nos seus gabinetes dinheiro público por meio de rachadinhas com funcionários fantasmas, comprando dezenas de imóveis em dinheiro vivo. Isso sem contar o orçamento secreto.
Também era contra vacinação, disse que não iria comprá-las, que era melhor usar remédio de malária, mas que foi bondoso em comprar vacinas para a população, e no final assinou o mesmo contrato com todas as cláusulas que o mundo inteiro assinou.
Diz que nunca incentivou violência, mas ao liberar as armas armou as facções criminosas, que iria fuzilar os rivais políticos, e que sempre tratava de maneira muito rude qualquer um que o questionasse.
E assim, com essas e outras mentiras, o duplipensar apenas fazia as pessoas se render, voluntariamente, pois suas mentes foram reconstruídas como aconteceu com a de Winston.