A porta que apenas nós devemos cruzar.


Esse mês foi estranhamente pesado. Eu normalmente sempre tenho péssimas expectativas desse período de dezembro até meados de março por conta do calor. Sei que é uma época em que eu sempre durmo muito pouco, passo muito mal, e o calor me deixa com muito mal humor. Mas teve algo a mais que me incomodou muito, como uma atmosfera com um ar ruim. Não sei.

No último dia 18 a dona Elza Ishikawa faleceu. Ela era a mãe-de-linhagem na comunidade budista que frequento, e hoje o Facebook me recordou de uma foto que tiramos justamente há onze anos atrás. Eu que na época era recém chegado, tentava aproveitar ao máximo do extenso conhecimento dela. Como uma verdadeira mestra budista era uma unanimidade — talvez para conselhos sobre a minha vida pessoal não fosse tanto, mas é justamente a imperfeição das pessoas que as fazem serem perfeitas.

Discordávamos em algumas coisas, mas sempre estávamos juntos, mesmo separados. Foi a dona Elza uma das pioneiras na Shinnyo-en Brasil, trabalhou anos na secretaria do templo brasileiro, e se dedicou de corpo e alma ao Ensinamento de maneira exemplar. Já fazia um tempo que estava lutando contra um câncer, acho que deve ter sido isso que terminou por levá-la desse mundo.

Agora que ela faleceu, penso que somos meros elos de correntes. Por ela ter sido uma das primeiras praticantes do Brasil, fico imaginando quando o budismo crescer no Brasil, talvez revisitarão a história e encontrarão o nome da dona Elza lá. Obviamente sou um elo mais fraco, mas isso não me tira da mente o facto de que eu convivi com ela aqui, durante quase dez anos, tirando todas as dúvidas, aprendendo muito, e tendo a companhia dela nas felicidades ou nas tristezas de trilhar o caminho religioso. Me entristece em imaginar que quem nasceu a partir de agora não terá essa chance, e fico pensando se eu conseguiria carregar esse legado dela adiante. Pessoalmente acho que não.

Já faz um tempo que me afastei da Shinnyo-en. Meu problema não é com a doutrina, ou a religião — ainda faço minhas orações todos os dias, apesar de falhar bastante nas práticas de Bodisatva. Mas hoje tenho um pouco mais de clareza de que isso também era necessário no meu caminho, mesmo que para diversos outros que trilham o caminho, que possuem essa visão bem estreita das coisas, achem que eu me abster seja errado.

Foi nessa ausência que eu consegui ver o mundo além da religião. Que assim como minha amiga me alertava, eu estava reduzindo o meu universo apenas aquilo. Meus amigos estavam apenas lá, meu círculo social eram as pessoas do templo, e até namorada eu estava tentando arranjar lá. O facto é que tinham coisas ali que nunca iriam engrenar na vida se eu ficasse apenas ali e não saísse. 

É verdade que as coisas não melhoraram, mas vejo por exemplo minha depressão: frequentar o templo me trazia aquela satisfação e felicidade momentânea, mas sempre ao voltar para casa a tristeza e frustração me recebiam na porta. A volta para a rotina de sofrimento, com uma pitada de felicidade no fim de semana de cerimônia. Diziam ser necessário fé e prática. Mas foi apenas quando me afastei que eu vi que meu caso não poderia ser resolvido apenas com fé. Era necessário apoio psicológico e psiquiátrico. E dificilmente eu iria atrás disso se eu estivesse com a assiduidade que eu tinha outrora.

Dona Elza nunca concordou com essas escolhas, sempre criticou minha decisão de me afastar, mas hoje, depois que ela faleceu, entendo melhor sobre. O caminho budista é sobre levar as pessoas até a porta. Mas é decisão da pessoa levada ali de abri-la, e também só o mesmo indivíduo que abriu que encontrará seu próprio caminho depois de cruzá-la — mesmo que pessoas bem intencionadas ao redor tentem fazer sugestões ou dar conselhos.

Na minha vida o que eu mais tenho são pessoas tentando manipulá-la, e eu sou uma pessoa muito influenciável. Só que nem sempre os conselhos ou sugestões das outras pessoas dão certo. Talvez me falte ser um pouco mais egoísta e teimoso, lutar pelo que eu acredito, não ficar dependendo da opinião ou orientação dos outros.

Nunca o conselho dela era "se afaste da Shinnyo-en". Mas foi só quando dei uma afastada percebi que o meu caminho era uma questão de eu mesmo descobrir. Que haveriam tentativas e erros. Que tempo e esforço seriam perdidos. Mas que acima de tudo o importante nunca é a chegada, e sim o aprendizado enquanto trilhamos. Como eu disse acima, nunca que eu iria procurar um psiquiatra se eu estivesse frequentando o templo como era antes. Mas tive que cair em um fundo do poço para, enfim, buscar ajuda para a minha condição. E até nisso eu sinto que os budas me guiaram. É uma verdade que eu sei que praticante nenhum entenderia, mas fica entre eu e nossos mestres espirituais.

Muito obrigado por tudo, dona Elza. Mande um abraço para os nossos budas por mim! Logo estarei aí com a senhora, a vida passa voando mesmo.

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