A sede com hora marcada.


A sensação de quando a boca seca é como um pedido do corpo para se ingerir algo. Em dias de calor como esses, é bem comum, pois a gente se desidrata muito facilmente. Mas fico pensando se é isso o que ele sente todo dia, antes das refeições. Será que a boca seca, e ele tem que ir no bar? Não consegue fazer uma única refeição sem antes tomar um copão de cachaça?

Chega um momento em que a pessoa parece virar um escravo da rotina. A ponto de que um dia que não é realizado da mesma forma que deveria ser — com todos os acontecimentos em seus devidos lugares — vira um motivo para ficar irritadiço e com uma tromba enorme no rosto. É um script, mas não resultará em uma peça de teatro ou filme de cinema. É a cena que prende a pessoa de tal forma que não é como um ator que sai do personagem e volta para sua vida normal. Pois o normal é viver dentro daquele roteiro.

Que pesadelo deve ser estar preso sempre na mesma cena. Sua história não evolui, não muda.

Ao ouvir o aviso da esposa de que a comida está pronta, ele para tudo e se levanta. Pegando a chave com pressa, o maço de cigarros e o isqueiro, ele se dirige até a porta. Seu andar parece cambaleante, ele anda com a cabeça baixa e não volta o olhar para lugar nenhum. Nunca olha para trás. Coloca a chave no portão e o abre, batendo-o, fazendo sempre o mesmo barulho que se consegue ouvir pela casa inteira. O homem foi encher o tanque.

Chegando lá, se senta na cadeirinha. Logo um copo de plástico aparece com a bebida bem gelada, quase transparente. Deve ser uma caipirinha remexida da semana inteira na garrafa de pet de coca. Nada disso sem antes fumar um cigarro. Falando alto sobre futebol, sobre o seu curintia — que nunca trouxe nada na vida dele, mas ele não aceita que critiquem, protegendo o time de futebol mais do que sua própria família — como se o resultado do jogo do sábado fosse um atestado de que o fizesse ser melhor que os palmeirenses e sãopaulinos ali. A fugaz felicidade de um torcedor de futebol, que dura até a próxima maré de azar do time, que nunca tarda a chegar.

Quando volta para casa, parece outra pessoa. Já chega em casa gritando, brincando com os animais. Ouvir sua voz me aperta, me diminui, me trava. Os gritos dele, mesmo não sendo direcionados para mim, me causam uma injeção de estresse direto em minhas veias instantaneamente. Ficar atento e com medo, pois como eu vivia na infância, sempre depois do grito vinham as agressões.

Se Deus existisse, o deixaria mudo. Mas como ele não existe, ele continua a falar. E a gritar.

Na minha infância, todos os dias eram os mesmos. Chegar em casa, ele nem mesmo tirava a roupa social, e pegava a chave, batendo o portão. Depois de quase uma hora, religiosamente ele voltava antes das oito, completamente colérico, falando o quanto eu era imprestável, que só o trazia vergonha, que se ele pudesse voltar no passado nunca teria tido filhos. Pois nós tiramos a possibilidade dele ser feliz. Era o que eu ouvia e mais me machucava. Se o problema era eu ter nascido, então por que eu deveria viver? Acho que foi quando ouvi isso do meu pai que comecei a considerar suicídio.

A rotina de ter que beber algo antes de fazer a refeição é como estar com um capataz te chicoteando atrás de você. O chicote é o que faz ficar atento, é o ardor da cachaça que desce pela garganta, é óbvio que aquilo o faz mal. Ingerir a bebida o incomoda, sua cara sempre se retorce do mesmo jeito, os olhos se enchem de lágrimas, como se fosse uma dor. A dor que transforma garotos em cabras machos. Como o chicote, só que rasgando por dentro, até cair no estômago.

Mas assim como o chicote servia para fazer o escravo trabalhar mais, deixá-lo atento através da dor, vejo que a bebida cumpre o mesmo papel. Nas raras vezes em que ele não bebeu, ele ficava apático. Como alguém que precisava da chicoteada, pois se não a levasse, ficava naquele estado letárgico enquanto faz a refeição. Pois é apenas depois que o álcool entra que ele come bufando, não para de dar garfadas, uma atrás da outra, mal terminou de mastigar o que está na boca e já tem outra preparada ali do lado, só esperando ser levantada até a boca.

Depois de quatro décadas bebendo, o corpo não se imagina mais sem. Foi só assim que aprendeu a funcionar, e só assim que vai seguir. Pode esconder, pode fazer a esposa acreditar que não está, pode dizer da boca pra fora que parou. Mas nunca vai conseguir. É algo necessário para se viver, tanto quanto o oxigênio que entra os pulmões.

Uma vez ouvi falar que é muito triste ter um filho drogado. Eu não tenho filhos, e nem pretendo tê-los. Mas acredito ser igualmente triste ter um pai dependente. Onde a frase sempre repetida era a mesma, presa na rotina de se ver obrigado a todo dia repetir o mesmo ritual:

— Vou ali tomar uma ali e já volto.

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