O tio que pegava no meu pé.

Tio Ricardo faleceu. Fiquei sabendo dia treze. Que doideira! Quando eu era criança, gostava muito dele. Esse jeitão quieto dele, tranquilo, me fazia me sentir menos sozinho numa família onde todo mundo fala muito — seja em número de palavras, como em altos decibéis. Esse caráter solitário dele talvez se refletiu na maneira em que ele partiu: sozinho, em sua casa. Ouvi que só o encontraram dois dias depois, quando o irmão pediu para um chaveiro entrar na casa.

Minha mãe disse que foi um ataque cardíaco fulminante. Parece que o encontraram no sofá, com a mão no peito, já sem vida. Foi em novembro, mas só ficamos sabendo agora, em fevereiro.

Ele foi casado a vida inteira com minha tia Cláudia, minha tia preferida. Depois de adulto me aproximei mais dos dois, a gente costumava passar dias juntos com as cachorras, ou viajar para a casa do meu avô no interior. Mas o que no começo era uma ótima companhia, com o tempo começou a desgastar a relação.

Eu tenho muito problema em entender que as pessoas possuem inveja. Talvez seja um pouco consequência do autismo. Mas das últimas vezes que convivemos juntos, o tio ficava sempre me colocando pra baixo, me ridicularizando gratuitamente. E eu via aquelas críticas todas e tomava como coisas que eu realmente deveria mudar. No entanto, por mais que eu me esforçava, nunca nada estava bom.

Era implicação atrás de implicação.

Acho que ser adulto consiste muito em tentar provar sua superioridade para os mais jovens. É o que o mundo ensina, o que é ridicularizado tem que aguardar sua hora para poder colocar outro pra baixo. A gente não consegue comemorar algo que a outra pessoa superou ou melhorou. O que é bom, ou no que crescemos, passa batido. Não é nem citado. Mas tanto os nossos defeitos, ou até coisas que nem são tão latentes em nós, viram motivos para as outras pessoas se sentirem maiores e nos diminuir.

Só que que no final das contas me afastei dele. Ele virou um super bolsonarista depois, então nem tinha motivos pra continuar com tanto contato. Mais um dos muitos manipulados com discurso de ódio no whatsapp.

Mas fiquei pensando em como a sua morte foi solitária. Eu pensei que ele já estivesse em um novo relacionamento, ou pelo menos com algum amigo que se preocupasse. Mas não. É verdade que ele tinha seus problemas de saúde, mas me impressionou o facto de morrer completamente sozinho.

A vida sempre dá muitas voltas. O tempo, o local, e a circunstância em que vamos morrer é sempre um grande mistério. Mas o que você faria se pudesse saber? Se surpreenderia? Será que no momento da sua morte você vai estar com seu namorado, namorada, marido, ou esposa atual? Será que você estará cercado de filhos e netos num hospital, ou vai ter um treco sozinho enquanto está a quilômetros de sua casa? Será que você estará com pessoas ao seu redor que você nem imaginava que estariam naquele momento contigo? Ou serão todos rostos familiares?

Essa coisa toda além de ter me chocado, me fez refletir sobre muita coisa. Espero que ele não tenha sofrido em sua passagem. Vá em paz, tio. Espero que encontre algum tipo de paz e conforto depois de partir dessa nossa miserável existência humana.

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