Livros 2023 #4 - Um defeito de cor (2006)



Em um rolê com amigas do clube do livro, Dani & Ju falaram sobre um livro que estavam lendo fora do clube oficial. Era um livro interessante, escrito por uma brasileira que havia encontrado cartas antigas que estavam guardadas em uma igreja, prestes a serem descartadas. E isso virou inspiração para sua obra. Fiquei impressionado com o resumo das minhas amigas, e dias depois comprei o livro para me juntar a elas. E foi uma dessas serendipidades da vida.

O livro conta a história de Kehinde (a pronúncia é algo como "Quêindé"), então uma criança do reino de Daomé (atual Benim), nascida em 1810. Por conta de sua ingenuidade acaba sendo capturada por brancos, e forçada escrava, é enviada para o outro lado do Atlântico, para Salvador na Bahia.

Kehinde é uma personagem fictícia, baseada na Luisa Mahin, mãe do abolicionista Luís Gama. No entanto Ana Maria Gonçalves a cria de uma maneira muito genuína, como se costurasse retalhos de diversas vidas e vozes de angolanos, nigerianos, moçambicanos, e tantos outros que tiveram suas vidas mudadas — e em quase sua totalidade destruídas — pelo regime escravocrata. Durante suas mais de novecentas páginas temos uma vida completa, passando por todas as fases dela, se reinventando entre os sucessos e derrotas inerentes, as diversas paixões, maternidade, escravidão, mudanças, e maturidade.

Narrado todo em primeira pessoa, o livro soa quase como uma carta imensa. Como se uma mãe quisesse deixar para seu filho tudo o que viveu colocado em palavras. Ana Maria Gonçalves sabe descrever cenários como ninguém, onde mesmo quem não visitou nenhuma dessas localidades consegue facilmente captar a atmosfera do local, com todas as suas peculiaridades. São localidades que passam pelo continente africano e diversas cidades do Brasil Império, como Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, e São Paulo.

O livro contém muitos personagens também. Mas não causa confusão, pois a autora sempre resgata algo que relembre quem era aquele indivíduo — especialmente quando ele/ela reaparece depois de muitos capítulos sumido. Gosto também da diversidade de todos eles: temos brancos e negros brasileiros, afro muçulmanos, ingleses, conterrâneos benineses, e tantos outros. Cada um com sua história, suas aspirações, escolhas e importância na história como um todo.

Uma coisa que me aprecia em específico é o contexto histórico. Eu amo esses tipos de romances históricos, onde a ficção se mistura com a realidade. Kehinde passa por diversos acontecimentos da história brasileira: independência, revoltas, coroação de imperadores, imigrações européias, e tantas outras. Isso sem contar diversos personagens históricos que cruzam seu caminho, desde o próprio Luís Gama, como até um aprendiz do padre Bartolomeu de Gusmão, um dos precursores da aviação. 

Um acontecimento que é quase central é a Revolta dos Malês, um levante escravizados muçulmanos que aconteceu em Salvador no meio do século XIX. Contado pela perspectiva dos revoltosos, enquanto lemos sentimos toda a tensão e emoção do acontecimento. É um dos muitos momentos cruciais do livro, e um grande divisor da história, especialmente pelo o que acontece com a Kehinde. Isso me lembra muito "Os miseráveis", que também tem uma revolução ambientada em certa parte do livro — no caso deste, a Rebelião de Junho de 1832.

O livro é um banho de cultura africana! Nele aprendemos junto da Kehinde, enquanto essa vai buscando suas origens junto de seus conterrâneos. É recheado de informações sobre religiões de matriz africana, detalhando os papéis dos orixás, dos babalorixás/ialorixás, dos rituais, iniciação na religião, e muito mais. Ana Maria Gonçalves nos presenteia também com diversas outras descobertas da Kehinde, desde a capoeira, até coisas que eu nem tinha ideia, como influências africanas sobre o islã.

E como eu já citei brevemente acima, Kehinde é um outro nome para Luísa Mahin, uma personagem histórica que não temos muitas informações sobre, exceto sobre o relato de seu próprio filho, o abolicionista Luís Gama. Luís Gama existiu de facto, foi um grande herói brasileiro, um advogado que conquistou sua alforria depois de ser vendido escravo pelo próprio pai, e consegue estudar leis da Faculdade de Direito do Largo São Francisco aqui em São Paulo. Sua importância como abolicionista foi conquistar, por meio do uso das leis, a liberdade para diversos afro-brasileiros. Uma pessoa que o Brasil deveria conhecer, admirar, e cultuar muito mais. É de encher de orgulho saber que tal pessoa existiu em nosso país e se dedicou tanto em tornar esse país um lugar melhor em meio à escravidão.

Tenho poucas críticas, mas uma delas se refere a uma grande perda do ritmo da prosa perto do final do livro, especialmente no oitavo capítulo. O livro tem um ritmo muito bom, mas certas partes ficaram muito arrastadas, e foram um sacrifício seguir lendo até o final. Até é compreensível dado ao que acontece naquela etapa da história, mas ao menos o ritmo volta a engrenar e o livro fecha com chave de ouro nos últimos dois capítulos.

Kehinde é uma personagem completa. Durante toda sua vida passa por todo tipo de acontecimento, muitos que nos causam muita revolta, tristeza, mas muitos êxitos também. Adicione isso a um rico leque de coadjuvantes, todos com caráter e aspirações diversas, e sempre trazendo em suas biografias alguma informação acerca daquela determinada classe/etnia dentro do contexto que lhe é apresentada. Além de uma aula de história, é um conteúdo cheio de antropologia e sociologia!

"Um defeito de cor" já é uma das melhores surpresas desse ano pra mim! E agradeço imensamente a essas minhas amigas de ouro, a Dani e a Ju, por terem me convencido a embarcar nessa leitura fascinante! Muito obrigado mesmo!

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