Livros 2023 #7 - 1Q84: Livro 1 (2009)


Você já releu algum livro? Vou confessar que esse hábito eu havia perdido, mas esse ano resolvi revisitar obras que de alguma forma foram importantes para mim. Quando vi minha amiga Leticia, que é outra fã do Murakami, lendo a versão brasileira de 1Q84, pensei em relê-lo junto dela, e escrever aqui as minhas segundas impressões. Estou escrevendo evitando a resenha que escrevi sobre ele há quase onze anos. Vou ler depois que escrever toda a resenha, será que minha impressão foi parecida com a de hoje em dia?

O livro é o mesmo, mas o leitor já mudou muito daquele que leu no passado.

Minha cópia de 1Q84 comprei na finada Livraria Cultura da Avenida Paulista. Talvez enquanto eu escreva isso, ela esteja sendo ressuscitada pela vigésima-oitava vez, mas naquele tempo era uma livraria pungente, cheia de vida. Eu lembro que eu estava dando uma olhada na prateleira de livros em inglês e a arte da capa me impressionou muito. Apesar de ter chamado a atenção, e tentando não julgar um livro pela capa, eu ali mesmo em pé li algumas páginas e gostei muito. Mas naquele dia eu não comprei.

Acho que se passaram algumas semanas, e voltei lá querendo comprar o livro. Mas o idiota aqui não anotou o nome, e quando pediu ajuda de um funcionário, a única informação que eu dei foi: "É um livro em inglês, com um rosto de uma japonesa, e umas letras bem grandes revelando o rosto". O vendedor sacou de primeira qual era e, dessa vez, comprei na hora sem a mínima noção que seria um dos livros que eu mais iria gostar de ler na vida.

O livro é centrado na vida de dois protagonistas, Aomame & Tengo. Ambos acabam sendo transportados para um Japão distópico onde tudo (e todos) o que lhes era familiar do mundo comum continuam existindo, mas somente os dois percebem que estão em outra realidade. Enquanto Aomame tenta encontrar uma forma de voltar ao mundo real, Tengo tem que proteger uma estranha garota, repleta de mistério, que escreveu um livro tão fora da caixinha quanto a própria.

Como eu já conheço a história, fui fazendo uma leitura mais atenta aos detalhes do que foi pela primeira vez. E como um ótimo roteirista, Murakami deixou várias pistas que eu não lembro de ter percebido. Spoilers depois da resenha, os deixei destacados.

Eu não lembrava que sexo era coisa tão abordada no livro. Eu lembro de algumas cenas, pra mim eram duas ou três. E só no primeiro livro são muito mais numerosas — tanto as com ou sem consentimento. Murakami, como quase a totalidade dos homens, descreve aquele sexo muito concreto, cheio de detalhes dos corpos, muito sugestivo à imaginação masculina, mas essencialmente pobre. Digo pobre pois é totalmente diferente de como sexo é retratado por autoras femininas, onde eu sinto que elas descrevem muito mais as sensações, o que está interiorizado, do que descrever os corpos do casal. E, obviamente, o jeito que mulheres escrevem é infinitamente melhor, diga-se de passagem.

Uma crítica forte que eu vi foi acerca do machismo japonês. Acho que muitas pessoas têm a visão de que o Japão é um país muito bom, mas é um país como qualquer outro, repleto de problemas. A diferença é que japoneses sabem esconder muito bem. Mas é aí que autores como Murakami revelam ao mundo que em diversos setores da sociedade, o Japão é extremamente atrasado. E o livro mostra o machismo de uma forma tão escancarada, que acho que deve ter passado desapercebida por mim na sua primeira leitura (peço um desconto pela minha imaturidade da época).

Outro ponto muito curioso é sobre as polêmicas "novas religiões" do Japão. No Japão usam a expressão "novas religiões" para cultos que começaram ali em meados do século XIX e por todo o século XX, que não seguem necessariamente uma tradição estabelecida, e por terem uma linguagem e estrutura contemporâneas, chegaram até a serem proibidos durante a Segunda Guerra Mundial, e até hoje são supervisionadas pelo Ministério da Educação japonês.

Talvez o equivalente no Brasil sejam as denominações crentes que se espalharam no país, especialmente nas últimas décadas. Pois as "novas religiões" têm uma estrutura similar, como arrecadar dízimos dos fiéis, esquemas de pirâmide, corrupção, sonegação, e muitas coisas acobertadas.

Além de fazer uma dura crítica aos movimentos de Novas Religiões japonesas, Murakami vai além e puxa referências de seitas isoladas e perigosíssimas, como o culto do fim do mundo que arquitetaram o ataque terrorista com gás sarin em 1995, a seita do bule gigante, e a do Jim Jones na isolada Guiana.

E lá segue quase que a receita de sempre, o que começa com um culto, acaba ficando poderoso, seus líderes isolam seus crentes, e a seita imerge em mistério e teorias da conspiração.

Isso sem contar outros temas igualmente presentes na sociedade japonesa que são abordados no livro, como prostituição, pedofilia, feminicídio, estupro, entre outros. Definitivamente não são as pessoas kawaii que são mostradas em animes. Aquilo ali parece sim um país real, com pessoas reais, muito longe da idealização e maquiagem que passam para o resto do mundo.

Da mesma forma que Murakami escancara os podres do Japão real, ele cria um mundo de fantasia que se funde com o mesmo de uma maneira que nos prende. Conforme vamos descobrindo mais coisas sobre essa realidade paralela, mais coisas inexplicáveis vão acontecendo, pois como eu disse antes, para todos ali daquele mundo tudo corre em sua normalidade, incluindo os que conheciam Tengo e Aomame antes.

E por ser o primeiro de uma trilogia, muitas lacunas são deixadas, e todas elas vão sendo preenchidas no decorrer do segundo e terceiro livro. 

Outro facto que eu adorei foi poder ler junto com a Letícia, que enquanto ela tinha a versão em português (muito bem traduzida e adaptada pela Lica Hashimoto) eu lia a versão inglês. Além de falar sobre o livro, trocávamos figurinhas sobre como tal parte era retratada, ou que termo usaram para traduzir em português. Ambas as traduções foram feitas diretamente do original japonês, e a versão brasileira é ainda mais especial pois é traduzida de um jeito que fala de maneira muito acessível para nós, brasileiros, deixando uma leitura fluída e de fácil entendimento mesmo para quem não manja nada da cultura nipônica.

1Q84 continua um dos meus livros favoritos da minha vida. Juntar realidade e fantasia eu sempre achei algo mágico, e ver personagens humanos, todos com falhas e virtudes, tentando lidar com as consequências de suas escolhas, já seria um atrativo o suficiente — mas se olharem pro céu e virem duas luas, deixa a experiência ainda mais inesquecível.

:: SPOILERS ABAIXO ::
Depois não diga que eu não avisei

Eu não lembrava de ter percebido tanto que a Aomame suspeitava desde o começo que havia algo de errado naquele mundo! O detalhe das armas dos policiais foi uma surpresa pra mim, eu realmente havia esquecido. Mas quando eu a vi pesquisando os jornais, e eles dizendo sobre estações na Lua feitas em conjunto com Estados Unidos e União Soviética, me deixou ainda mais impressionado! Isso é interessante pra caramba!

Quando li a história da Tamaki, achei aquilo uma pauta tão atual, como os relacionamentos de dependência emocional que mulheres acabam sendo submetidas. É realmente muito triste que sua vida tenha terminado com um suicídio, um tema tão abordado no Japão, mas nem sempre citado quando são os adultos que fazem tal escolha.

Quanto ao Tengo todos os repetidos flashbacks com a mãe me deixavam muito mal. Como essas memórias perdidas na nossa cabeça que a gente não sabe exatamente o fim ou começo, mas que são vívidas e engatilhadas nos piores momentos. É muito doido como ele separa bem as coisas, e não as deixam se cruzarem. A tutela da Fuka-eri, o seu chefe Komatsu, e sua namorada casada que nunca tem o nome revelado — todos em seu devido espaço mas no decorrer dos próximos livros isso pode mudar, hohoho.

Como li em inglês, a personagem conhecida como "The dowager" ficou traduzida como "A proprietária". E toda a relação dela com a Aomame, e a justiça que a Proprietária busca, é rico em exemplos do quão machista, patriarcal, e violento contra mulheres o Japão é. Se mesmo aqui no Brasil ainda vemos vários casos de estupros e abusos de todos os tipos sendo acobertados, lá essa regra é quase uma unanimidade. Ver uma senhora que cuida de mulheres e meninas que sofreram todo tipo de abuso, e uma mulher como Aomame como seu braço-direito para fazer justiça com as próprias mãos que o país nunca fará pelos meios legais, explica muito como funciona o país. Chocante, mas necessário para refletirmos nossa sociedade.

E aparecendo ali, discretamente, mas sempre presente, temos o mundo de duas luas que Murakami criou. Tudo ali é recheado de significados, desde a Sinfonietta de Janáček, passando pela Crisálida de Ar escrito pela Fuka-eri, a Sakigakê e sua crítica às Novas Religiões no Japão, e o terrível Povo Pequenino. E isso porque nem entrou o Ushikawa, que vai abalar toda a saga a partir do segundo livro.

Reveremos e releremos!

— Impressões que tive ao reler minha resenha original de 2012

A primeira coisa que me impressiona é ver eu narrando a aventura de tentar achar o livro que eu não havia anotado o nome, hahaha! Muitos detalhes ali eu não lembrava, ainda bem que escrevi. Rapaz, já naquela época eu tava ligado em como o livro escancara o machismo japonês, impressionante! Eu não era tão burro quanto pensava (que meu "eu" de 2012 não me ouça falando isso). Mas lendo assim eu vejo como o primeiro livro, apesar de ser bem divertido sua leitura, me deixou uma impressão mediana. Normal, o livro abre muitas lacunas que vão sendo preenchidas e explicadas ao longo dos outros dois. Livros inteligentes assim sempre me deixaram uma boa impressão, seja em 2012, seja em 2023. Pelo visto na época a série Millenium do Stieg Larsson estava me chamando muito mais a atenção do que o Murakami, hehehe. Sabe de nada, Alainzinho do passado!

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