Quebrando correntes.
Há algumas semanas estava em um grupo e começamos a discutir machismo. E uma amiga comentou que havia crescido numa família totalmente feminista, e que esses valores foram ensinados logo cedo, e são a base da formação dela como mulher. Além de vê-la como alguém de muita sorte, fiquei pensando no quão difícil deve ter sido o processo de desconstrução de toda a linhagem de sua família. E isso meio que me ajudou a entender minha condição também.
Acho que origem de todos esses discursos depreciando as mulheres, vindo de tantos homens, tem origem na dor e na dificuldade da mudança. E por ver o quão difícil é apontar o dedo para si mesmo e admitir o erro, e tentar quebrar a corrente de comportamento que é intrínseco na gente, essas pessoas acabam se apegando ainda mais em comportamentos ultrapassados.
Mudança não é nem um pouco confortável. E acredito que essas pessoas que se apeguem ao passado, com o argumento de que seus pais, avós, e antepassados, agiam desse jeito e que é assim que o mundo sempre funcionou. E esse jeito seria o correto. E ignorar a passagem do tempo, sem perceber que as coisas mudaram muito no último século, e que diversas coisas já não podem ser aceitas, é sempre mais cômodo. O fato de diversos discursos feministas não terem tanta força quanto deveriam creio se dar muito por conta disso.
Eu mesmo tive que desconstruir muita coisa. Havia muita coisa que sempre foi ensinada em casa, e quando vi o mundo lá fora do meu núcleo familiar, vi o quão atrasado eu estava. Fui ensinado que tarefas domésticas têm que ser feitas por mulheres. Que tudo o que é de "mulherzinha" é ruim, inferior, como se emocionar ou apreciar a beleza das coisas. Mulheres são uma presa, eu devo sempre querer transar com elas em toda oportunidade que surgir. E por homens serem superiores, somos nós quem mandamos.
Teria sido muito mais fácil apenas repetir esses valores, afinal eles estão na família há décadas. E, julgando pelo estado civil de tantos expoentes da extrema-direita por aí, não faltaria mulher. Todos estão casados. Parece que realmente para toda panela existe sua tampa também, mulheres que eventualmente vão de acordo com os valores do patriarcado. Como muitas mulheres brancas e conservadoras que conheço, eleitoras do Nolsobaro, tão escravas do sistema quanto todos nós.
Se copiar o padrão seria mais fácil, comecei a reparar no padrão das mulheres da minha família. E vi muita subordinação, aguentar muita coisa "pois tem que aguentar", a incapacidade de fazerem escolhas de suas próprias vidas, e ao ver isso tudo eu percebi que não era isso o que eu queria. Não quero uma esposa para ser minha "putinha" — aquela que só obedece, nunca questiona, e mesmo quando se rebela basta eu olhar feio que ela fica quieta. Eu quero uma mulher independente, que esteja comigo porque quer, que aponte o dedo pra mim quando eu estiver errado, que me ensine e, claro, tenha muita paciência.
Paciência seria essencial pois eu também estou em um processo de desconstrução. E, embora seja um termo bonito, ele está rodeado de muita dor e sofrimento. Porque temos que derrubar tudo o que nos faz ser nós mesmos, aceitar que foram erigidas de maneira errada, e ir repondo os antigos valores pelos novos. E se policiar muito para não fazer o que era errado de novo. E o concreto de toda essa construção acredito que seja a humildade.
Humildade porque somos a primeira geração que parou e viu que havia algo de errado. Que talvez não viveremos a tempo de ver o mundo como deveria ser, mas temos que ainda assim dar o primeiro passo. Aceitar que temos medo. Medo de inconscientemente repetir tudo aquilo o que nos foi ensinado, replicar a maneira atrasada de interagir com nosso meio, e que não mais faz sentido na contemporaneidade.
Andar contra a maré é muito complicado. Por um lado temos a consciência de que queremos um mundo mais justo, um mundo onde machismo seja coisa do passado, e não apenas que mulheres possam ter o mesmo salário, e poderem alçar cargos de liderança, mas também que possam andar sem medo nas ruas, vestindo o que quiserem, sem nada que as impeça de serem quem elas quiserem. Mas fui criado para o exato oposto, e ser a pessoa que é diferente, sendo alvo de críticas, falta de apoio ou aceitação da sua própria família é algo que machuca muito. Mesmo sabendo o que é o certo, não ter apoio para isso é muito triste.
Isso sem contar quando o que nos machuca vem de amigos. Nem vou comentar os amigos homens, pois felizmente é a minoria que é bem machista, por mais estranho que pareça. Mas ainda existem os de pinto pequeno que me criticam por não comer cada mulher que cruza meu caminho. O que dói mesmo é quando vem de amigas. Tenho duas que no público adoram dizer que seguem feminismo, mas na prática são as machistas mais escrotas que já vi. Ficam fazendo discurso pior que os de pinto pequeno, dizendo que eu sou bonzinho, e que mulher "gosta de levar uns tapas". Essas duas dizem também que mulher nenhuma gosta de cara que as respeite, que eu tenho que agarrá-las a força mesmo, e que é por essa falta de agressividade que eu sou solteiro. E para a cereja do bolo: ambas se casaram com os caras mais nojentos que já vi no planeta, machistas elevado à enésima potência, extremamente toscos.
É a minoria, ainda bem. E dessas duas aí eu já meio que me afastei. Não tenho idade pra ficar brigando e batendo boca, se eu percebo que a pessoa é tóxica, eu apenas me afasto.
A humildade entra como algo imprescindível porque essas coisas, como dividir tarefas domésticas, não brincar com os sentimentos, não assediar, e respeitá-las não é nada mais do que a minha obrigação. É o básico do básico, isso devia ser ensinado de berço. E não é porque eu me comporto assim que eu devo me achar, pensar que mereço ser elogiado, jamais. Acho que justamente ter um olhar humilde e sincero sobre isso, não me faz esperar algo em troca por não ser um machista.
Se antes eu era um cara que ficava encarando as mulheres como um pedaço de carne, devorando com os olhos seus corpos, hoje eu entendo o quanto isso as machuca e as incomoda. Se antes eu só pensava em ter a amizade delas para tentar ficar com elas, hoje eu entendo que não existe nada melhor do que ser um amigo de verdade — e apenas um amigo. Se antes eu ficava fazendo piadinhas escrotas e machistas, hoje eu tento apagá-las da minha cabeça para nem cogitar falar em voz alta.
Eu desde que me entendo por gente sempre respeitei as mulheres. Acho que tudo começou quando eu pensei em me colocar no lugar delas, e perceber que certos comportamentos a machucavam, e que eu não queria fazer ninguém triste. Mas não é por causa disso que não teve muita coisa que eu tive que mudar. E que ainda tenho que melhorar muito, e aprender ainda mais.
Nunca tive jeito para paquera. No jogo da sedução eu sempre perdi. Se eu fiquei com algumas meninas foram muito mais por iniciativa delas, pois quando eu tomava iniciativa, por conta da minha inabilidade total, eu sempre levava fora. Se ainda existe mulher que acha que o homem deve ser escroto para ficar com ela, sinto muito, mas de mim não vai conseguir nada.
Mas como eu disse no começo, é um esforço que vale a pena. Vai ser inevitável se machucar, se sentir pra baixo, e reaprender muita coisa. Volto a pensar nessa amiga que teve uma criação feminista por parte dos pais: quantos dos antepassados dela não passaram por isso que estou passando agora? Só estavam construindo uma base sólida para as que nasceram hoje pudessem aproveitar e passá-la adiante. Eu não pretendo ter filhos, mas não quer dizer que vou passar isso adiante: ainda posso ter sobrinhos, primos, e gente da minha geração para servir de exemplo.
E assim, quem sabe, os que ainda estão por vir possam, pelo menos em seus núcleos familiares, terem essa criação que eu não tive.
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