Livros 2023 #12 - Solitária (2022)
Literatura marginal é o tipo de literatura escrita por pessoas que vivem à margem da sociedade. Retratar suas histórias de vida e divulgá-las ao mundo nem sempre renderá grande reconhecimento dos principais prêmios. Muitos dirão que é uma literatura rasa, com escrita sem personalidade e genérica, desmerecendo o verdadeiro público-alvo que mais tirará proveito daquela obra: pessoas pobres de periferia. Por atingir esse público negligenciado historicamente que livros como "Solitária" da Eliana Alves Cruz é tão importante.
Confesso que até alguns anos atrás eu tinha muito preconceito com literatura marginal. Eu tinha as mesmas críticas citadas acima, mas depois de me esforçar para conhecer melhor, através do meu grande amigo Thiago Alves, todo esse preconceito caiu. Isso tudo vinha não apenas pelo facto de eu ser, e morar, numa quebrada, mas também por eu ver aquelas histórias como "apenas o nosso dia-a-dia sem graça".
Mas uma vez lendo a introdução de "Capão Pecado" do Ferréz, lá cita como esse tipo de obras são importantes. Que livros assim são, por exemplo, lidos em penitenciárias. E serve não apenas como porta de entrada para cultura, mas também para se dar noção de pertencimento na sociedade. Que nós, a população periférica pobre, formada em sua maioria por negros e nordestinos, temos histórias que valem a pena ser registradas pro mundo conhecer.
Imagina só uma menina que mora em uma comunidade carente pegando "Solitária" na biblioteca? Ela veria que sua história pessoal, ou de alguém próximo, especialmente se tratando de um final feliz (como é no livro), seria possível de acontecer com ela. Que ela pode quebrar a corrente da miséria, que pode ascender socialmente, e que o mundo está disponível para ela, mesmo sendo de periferia carente, e com todas as dificuldades que isso lhe acarreta.
E cada coração desses tocado por uma obra como essa já vale mais que todos os prêmios literários reservados para a elite branca desse país.
A obra conta a história de Eunice e Mabel. A primeira é empregada em um condomínio de luxo, vivendo no quartinho minúsculo reservado à empregada com sua filha, Mabel, que vai crescendo durante o decorrer da história. O livro é dividido em três partes: "Eunice", "Mabel", onde ambas narram os mesmos acontecimentos, mas pelos pontos de vista delas; e uma terceira parte, "Solitárias", onde o narrador muda para os próprios cômodos, contando o que viram, o que acham de tudo o que aconteceu. Os capítulos do livro são todos com nomes de cômodos da casa, e todos eles, e tudo o que todos significam, tem relação com o capítulo de que eles dão título.
O livro tem coadjuvantes de todos os tipos, desde a dona Lúcia e seu Tiago, os endinheirados chefes da família, com seus filhos Camila e Bruninho. Mas também tem outros da mesma classe que Mabel e Eunice, como o porteiro Jurandir e seus filhos Cacau e João. A relação de todos com Eunice e Mabel vai sendo aprofundada no decorrer do livro.
É uma obra muito atual. E bebe de referências bem marcantes, que vão desde o filme "Que horas ela volta?", passando até pelo Caso Miguel, da criança filha da empregada que foi largada no elevador pela patroa e sofreu um acidente caindo do prédio. E uma detalhe que eu gostei muito é que o livro continua a corrente, sugerindo, no meio da história, outras obras de importantes autoras negras, como a Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo.
Eliana Alves Cruz tem potencial pra entrar nesse rol das melhores escritoras afrobrasileiras desde já! Para mim já está à altura da Carolina e Conceição! Resta mesmo vir o reconhecimento do mainstream, e elevar a literatura marginal ao lugar que ela sempre mereceu.
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