A espanhola.


Minha psicóloga sempre diz para eu sair mais de casa, afinal as coisas só acontecem na vida quando a gente encontra outras pessoas. E para alguém que luta contra depressão, isso é um bocado difícil. Eu já estava cansado por conta do calor e das atividades no templo budista, mas queria ir até a biblioteca do Moreira Sales para ler um pouco. Para isso teria que atravessar a Paulista de uma ponta a outra. Eu mal comecei minha caminhada quando percebi atrás de mim uma menina com o celular erguido tirando uma foto da paisagem.

— Moça, é perigoso usar o celular assim na rua, tá tendo muito roubo — eu disse. Mas eu não tinha noção do que aconteceria depois.

Digo isso porque a vida é de pregar essas peças. Essas coisas que acontecem sem a gente ter o controle de nada, como se mover uma engrenagem por conta de uma escolha fizesse — sem que nós pudéssemos ter a menor a noção — que uma máquina inteira entrasse em movimento, que a gente nem tinha noção que existia ali.

Eu poderia ter ficado quieto e, sei lá, ter deixado a menina ser roubada? Não é da minha conta. Mas infelizmente esse tipo de coisa não é da minha índole. Podem me chamar de trouxa, mas eu gosto de ajudar as pessoas, e sinceramente. Não gosto (e nem quero) ganhar nada com isso, eu sou uma pessoa muito abençoada, tudo isso que eu faço não é nem um porcento do tanto de ajuda que recebo.

Mas voltando para a menina: 

Quando eu dei esse conselho ela olhou para mim com um ar confuso, se aproximou de mim ainda com o celular em mãos e disse algo como:

Como? Perdón, no entendí lo que dijiste.

Quem havia entendido nesse momento era eu. A menina não era brasileira, provavelmente uma turista, falando em espanhol, que não tinha a mínima noção do perigo ali. Arranhando meu portunhol barato, tentei dizer a ela, dessa vez em espanhol, que sacar o celular assim na rua anda muito perigoso, pois muitos roubos estão acontecendo, mesmo na avenida Paulista.

Expliquei toda a situação, mas a conversa continuou seguindo. Ela, como uma falante nativa, fala muito rápido. Uma das primeiras coisas que eu peço quando encontro um hispanófono é pedir para hablar despacio, pois por conta das similaridades do português e espanhol, é possível que ambos se compreendam. Contanto que não colem uma palavra com a outra!

Comentei que eu estava indo para a biblioteca do outro lado da Paulista, e ela foi caminhando do meu lado e conversando. Descobri que ela é uma estudante de odontologia, e espanhola de Madrid (de início achei que fosse argentina). E que por conta do Brasil ser um dos países com a odontologia mais avançada do mundo (isso eu sabia!), ela vinha aqui fazer especializações pelo custo/benefício.

Quando a gente encontra pessoas onde a conversa flui assim, sem maiores percalços, é sempre tão bom, né? O sorriso vem e nos volta fácil, a gente vira o rosto e olha muito no olho da menina, e os esbarrões eventuais sempre me fazem o coração bater. Óbvio que era uma mulher lindíssima, com uma voz muito cantada e firme, típica de quem fala espanhol, e não tinha como olhar com carinho para cada detalhe ali.

Existe o mito que todo homem olha para o corpo das mulheres. Em certa parte eu olho também, mas tem uma coisa pelo qual eu sou apaixonado são narizes. E essa espanhola tinha um nariz lindo, pontudo, com uma ponta que parecia esculpida geometricamente, e isso deixava ela com um perfil lindíssimo. Sei que isso é muito estranho, mas uma coisa que me faz apaixonar por mulher é o formato do nariz!

Nesses momentos que eu dou o braço a torcer e dou razão para minha psicóloga. Esse tipo de acontecimento nunca teria ocorrido se eu ficasse em casa trancado. A espanhola me contava de como era a vida na Inglaterra, onde ela estuda, e em como ela sente falta dos dias quentes — seja da Espanha, ou do Brasil. Ela usava um óculos de sol pontudo, tipo desses de gatinho, e aquele sorriso que ela sempre dava para mim enquanto conversávamos não era apenas ela mostrando seu talento como futura odontologista. Era acolhedor, era sincero, era cheio de simpatia que para mim, que sempre senti tanta repulsa das mulheres no geral enquanto converso, lembrei o quão bom era essa sensação. Sentir que a outra pessoa está gostando de você sem que eu fizesse um esforço hercúleo para conseguir conquistar isso.

É muito bom na vida quando a gente encontra uma mulher que as coisas simplesmente fluem. E acontecem naturalmente.

A avenida Paulista tem dessas comigo. Como uma criança peralta que me prega uma peça, um susto, onde eu nunca sei o que pode acontecer. Isso é, se acontecer. No final do trajeto, quando eu já estava na ponta da Consolação, agradeci pela ótima companhia. Faço isso com sinceridade mesmo, eu sou uma pessoa muito insegura nos assuntos do sexo (eu evito ao máximo por conta disso), e não tem nada que me preencha mais do que isso o que aconteceu com a espanhola: uma troca sincera. Muito mais que dar uns beijos, e mil vezes mais do que transar.

Mas, enfim, a gente sabe como o mundo funciona, e como tudo gira em torno de sexo, como o único objetivo possível e aceitável. E tudo bem para quem o mundo funciona assim, o anormal aqui sou eu.

Com nossas redes sociais trocadas para mantermos o contato, fui até a biblioteca para ler. Mas quem disse que eu conseguia me concentrar? Nesses momentos eu me sinto como um moleque apaixonado, sabe? Trinta e tantos anos nas costas e eu ainda fico pensando na menina, tentando guardar tudo aquilo que vi, a felicidade, a doçura da voz, as trocas de olhares, o cheiro. Acho que fiquei, sei lá, uma meia hora. Fui até o banheiro tentar encher minha garrafa d'água, mas estava em manutenção. Decidi sair, e ir no Starbucks para continuar a leitura.

Eis que eu saio do Instituto Moreira Sales e sinto um cheiro. Um perfume muito marcante, desses cheiros que são difíceis de encontrar nas fragrâncias aqui. Um floral bem suave, vintage, e ao buscar nas gavetas da minha memória olfativa, era o mesmo perfume da espanhola! Uma baita coincidência se, ali naquela igreja estranha que parece um templo grego na Paulista, vejo alguém ali com uma cara meio aflita conversando com o segurança:

Era ninguém menos que a espanhola!

Eu não a tinha visto sem os óculos do sol, e como já passava das quatro da tarde, ela estava sem. E ali meu coração palpitou forte, pois ela tem o par de olhos mais lindos que eu vi na Terra. De um azulado bonito e equilibrado, bastante delicado, emoldurados por globos redondos e emotivos, e muito bem adornado com uma sombra de maquiagem.

Eu a chamei pelo nome e perguntei se estava tudo bem, e ela veio correndo pra mim pedindo ajuda. Ela havia comprado um chip brasileiro pré-pago pro celular e precisava recarregá-lo para chamar um Uber para o aeroporto. Sim, eu a conheci no dia em que ela voltaria para a Europa! Fomos no Carrefour ali do lado e recarregamos o telefone dela para enfim chamar o Uber.

Uma coisa que me dava um quentinho no coração — e isso que vou falar aqui não quero que interpretem como algum tipo de machismo, ou algo do gênero. Vivemos em um mundo onde as mulheres estão cada vez mais independentes, mas muita dessa independência só será garantida quando elas tiverem segurança, em todos os âmbitos da sociedade, e temos que lutar por isso todo dia — era o quanto ela se referia a mim como alguém que a transmitia segurança. Algumas vezes ela brincava até que eu era um "guarda-costas" dela. E em outro momento, quando ela teve que chamar o Uber, por exemplo, ela pensava na segurança de nós dois e só abria o celular em algum local fechado.

Eu não sei se era charminho. Pode até ser. Mas eu sentia que era minha obrigação mostrar que ali comigo estava segura. Isso é algo que nós homens temos que encarar com total responsabilidade, não se aproveitar disso, e jamais trair a mulher nesse sentido.

Brinquei com ela dizendo que "não tinha problema usar o celular aqui, eu te protejo". E ela retribuiu com a forma mais bonita que uma mulher pode fazer: a forma que ela parecia agradecer ao cara de quase dois metros ali do lado dela era com um lindo sorriso. =)

Ela seguiu seu caminho, trocamos algumas mensagens. No momento que escrevo isso o avião dela deve estar cruzando o Atlântico. Ela agradeceu várias vezes por toda a ajuda, mas eu sei que foi apenas parte dessas coincidências doidas da vida. Até mesmo o segundo fortuito encontro, eu tomei um susto quando a encontrei ali. Fiquei tão feliz de ter encontrado com ela de novo, que não consigo colocar em palavras! Ás vezes o que a gente deseja com todo o coração acontece!

Ao mesmo tempo sei como o mundo funciona. Possivelmente eu nunca mais encontrarei essa menina, então queria deixar registrado esse sentimento aqui, em forma de palavras. Assim como tantas que despertaram algo semelhante em mim, acabaram só se tornando uma frase ou duas no livro da minha vida. E não há problema nenhum nisso! A vida seguiu! Todas esses vezes que coisas do gênero aconteceram com mulheres na minha vida eu guardo numa caixinha na gaveta do meu coração. Venho aqui e escrevo, pois acho que vale a pena não apenas eternizar, mas também tirar um pouco disso de dentro de mim por meio das palavras e deixar aqui. Uma coisa tão pessoal para que alguém que cair aqui eventualmente leia. E viva esse dia que valeu muito a pena ter vivido.

No entanto não vou negar que eu adoraria se eu pudesse encontrá-la novamente, ela é uma menina muito simpática, e acho que foi uma troca bem bacana que aconteceu ali. Uma das mensagens que eu mandei pra ela foi algo do tipo: "Da próxima vez que vier ao Brasil, vamos sair para almoçar ou tomar um café!".

E sabe o que ela respondeu? Ela disse: "Haha! Vale!"*

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* - 'Vale!' é tipo uma interjeição espanhola de confirmação. Como se fosse um "tá bom então!" para nós, brasileiros.

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