Livros 2023 #16 - Grande Sertão: Veredas (1956)


Todo dia que tirava pra ler um pouco desse livro, eu tinha certeza que era sempre uma aventura. Embora muitas pessoas fazem outras comparações, para mim aquilo era uma verdadeira odisséia — com Riobaldo no lugar de Odisseu. A cada novo lugar daquele sertão de Minas haviam novos personagens, acontecimentos, e muito material para reflexão. Esse livro sem dúvida foi o melhor que eu li esse ano.

Não posso deixar de agradecer à minha amiga Mariana Bragança por ter agitado a leitura dessa obra. Acho que se não fosse graças ao seu empurrãozinho, eu nunca que pararia na minha vida para ler esse texto magnífico. No grupo de leitura que ela criou, vi várias pessoas colocando referências, dicas, e materiais para termos algum tipo de suporte antes de começar a leitura de Grande Sertão: Veredas. Pessoalmente até hoje nem vi que tipo de material seria esse, acredito que deva ser observações sobre a linguagem, fluxo da leitura, ou o meio em que a história se passa.

No entanto, eu decidi não usar esse material. Mergulhei no livro de cara, afinal se o livro é tão celebrado, se dizem que é tão bem escrito, deve ser bom. E um livro bom é autossuficiente, não se precisa de um guia, independente que se passem décadas depois que foi publicado. E sem saber de nada, fui lendo. Colocava uma meta de pelo menos 5% do livro por semana, e usar o Kindle foi decisivo, por ter disponível ali dicionários, wikipédia, e outras fontes de pesquisa. Várias páginas que eu não entendia, eu voltava e lia, duas, três, quantas vezes fossem necessárias. A linguagem é uma mistura de expressões arcaicas do português, junto de expressões locais, e neologismos que a gente tenta meio que inferir o significado ali no contexto.

A leitura é difícil? Um bocado. Mas depois de um tempo você se acostuma. Principalmente nos trechos de mais ação, a linguagem deixa de ser tão rebuscada e flui melhor. Mas não é nada impossível. O esquema é ir admirando aquela paisagem, como se nós, leitores, fôssemos um anônimo no meio daquela jagunçada. As primeiras trinta páginas dizem que é o grande desafio, pois dizem que todo mundo desiste sempre antes. São descrições intermináveis de como é a paisagem do sertão, a presença do diabo, e alguns causos pequenos. Aquele que escreve o livro encontra Riobaldo, que decide contar sua história em três dias. Quando você chegar no parágrafo que começa com "Diadorim e eu, nós dois", parabéns! É aqui que começa o livro!

O livro conta a história de Riobaldo, um jagunço — uma espécie de capanga subordinado de algum indivíduo proeminente (um fazendeiro, um político, ou um criminoso) — e sua vida andando com seu bando no sertão do norte de Minas Gerais, acredito que ali por volta do final do século XIX. Ao seu lado está seu inseparável amigo Diadorim, o deuteragonista da trama. 

Sem nenhuma divisão de capítulos, eu senti como se a obra me pegasse na mão e fosse embora. Não há pausas, e quando menos percebemos uma nova estória começou, novos personagens, um novo local, e um novo problema é lançado. Sugiro fortemente que você marque muito o livro. Marcando as passagens, vai te ajudar a não se perder. Eu me perdia várias vezes, e no Kindle ainda piorava, pois eu tenho o costume de ficar mudando o tamanho da letra, aí eu não sabia mais onde eu tinha parado, relia sem querer duas ou três vezes até me reencontrar, enfim. Muitas atrapalhadas.

Só pra ter uma noção: de acordo com o Kindle, eu fiz 524 destaques, e 136 anotações (caramba, não tinha noção).

Apesar dos percalços, a história é muito bem estruturada. Não é totalmente linear, ela começa no futuro, depois começam os flashbacks, que até seguem uma certa linearidade, exceto quando entra na infância de Riobaldo, para então voltar da onde parou e seguir em frente. A gente vai se envolvendo com os personagens — muitos ás vezes aparecendo apenas em poucas páginas, outros perdurando mais — e como o livro é grande, não tem como não se envolver, conforme seu coração vai acolhendo aquilo tudo mostrado ali.

Existe uma simplicidade em toda a escrita, coisa de gente humilde da roça mesmo, mas sem nunca ser medíocre. Tudo bem que por ser o Riobaldo quem conta, com toda a bagagem de vida dele, existe uma maturidade e muita sabedoria ao longo das páginas. Mas não podemos deixar de lado que o livro foi escrito por ninguém menos que João Guimarães Rosa, um dos maiores autores brasileiros, membro da Academia Brasileira de Letras, e indicado ao Nobel de Literatura, e um dos maiores intelectuais que nasceram nesse país. Saber pegar toda essa cultura, colocando em um personagem de origem simples, não é para qualquer um.

Grande Sertão: Veredas é aclamado não apenas no Brasil, mas no mundo. O próprio João Guimarães Rosa, um poliglota, supervisionou várias das adaptações para outras línguas, como por exemplo o alemão — onde o livro conquistou um público ávido. Também pudera, o próprio autor carrega influência de gigantes, que vão desde Edgar Alan Poe, Goethe, até contemporâneos dele, como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.

Quando eu terminei o livro, eu não conseguia parar de chorar. Mesmo agora, relendo, eu ainda me arrepio e meus olhos marejam em diversos trechos. Parece que esse livro maravilhoso é parte de mim, uma coisa da alma mesmo. É uma vida tão completa, tantos buritis, tantas veredas... E ao mesmo tempo nonada! Eu sentia como se Riobaldo fosse um amigo de longa data, afinal apesar de eu estar lendo seu depoimento, senti que eu estava vivendo aquilo tudo. Eu abracei o Kindle e senti que esse livro foi um daqueles que sinto que mudou muita coisa em mim, sabe? É muito difícil falar sem dar spoilers, mas se alguém precisar de algum incentivo, vou dizer aqui: não é por um acaso que o livro é uma unanimidade. 

Difícil ver alguém que leu tudo e não gostou. Agora ver quem adorou e foi marcado por ele, ah, tem realmente várias pessoas! E só depois que a gente lê a gente entende o porquê.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

Já que, como eu disse acima, resolvi ler sem ver nenhum material prévio, tudo, absolutamente tudo, foi uma surpresa. A começar por Diadorim. O amor dentre Diadorim e Riobaldo é uma coisa que ao mesmo tempo é muito à frente do seu tempo, como também demonstra que esse tipo de relacionamento homoafetivo sempre existiu, e é natural e inerente ao ser humano. E não vou negar que várias partes é de uma profundidade amorosa que raramente vi algo parecido em outro lugar!

Logo de cara também saquei em como ele projetava a idealização amorosa com Nhorinhá, e então supus que Riobaldo fosse bissexual. O encontro do Riobaldo com Reinaldo (Diadorim) depois de perderem o contato quando eram crianças é uma coisa tão bonita! Parecem aqueles acasos da vida.

O julgamento de Zé Bebelo é uma das partes que mais me prenderam. Todos os senhores jagunços ali, discutindo sobre a sentença, os crimes dele, e no final o deixando fugir. A defesa de Riobaldo de seu mentor foi incrível, permitindo que ele fugisse para Goiás. E logo depois o assassinato de Joca Ramiro por Hermógenes, são partes cheias de ação, culminando no retorno quase que triunfal de Zé Bebelo como líder do bando.

A partir daí a gente vê um grande amadurecimento do Riobaldo. Ele vai ganhando cada vez mais prestígio e admiração de seus companheiros, que inspirados por ele começam a enxergá-lo como um possível líder. Quando Zé Bebelo passa o chapéu para Riobaldo, achei muito bonita a parte — onde o Tatarana vira o Urutu-branco. 

Nada disso sem antes ter aquela cena na Veredas Mortas. Eu não sabia que João Guimarães Rosa havia se inspirado tanto em Fausto do Goethe, como o Doutor Fausto do Thomas Mann. A cena em que ele faz o pacto (mas meio que não faz também) com o diabo para ter coragem de enfrentar Hermógenes e vingar Joca Ramiro — o pai de Diadorim, que lhe era de tão valor — é sombria, misteriosa, deixando no ar várias dúvidas, como se ele realmente fez o tal pacto com o tinhoso. Depois fiquei sabendo que ficou em aberto mesmo, e pra mim ele acabou não fazendo não!

Depois do embate com Hermógenes, depois que sua esposa é capturada, é revelado o maior plot twist da história: que Diadorim era mulher. Cara, eu lembro que eu fiquei com o queixo no chão. Como eu disse, eu não tinha visto nada de nada. E eu fui até comentar com a minha mãe — que já tinha visto a série da Globo, feita nos anos oitenta. 

Lá, além do Tony Ramos como Riobaldo, quem faz Diadorim é Bruna Lombardi, que apesar de todas as semelhanças físicas com Diadorim, era óbvio que ali se tratava de uma atriz mulher, mesmo fazendo papel de um homem trans. Talvez se fosse feito hoje, seria legal pegar um ator que fosse mesmo um homem trans, pois caberia ainda mais no papel. Minha mãe disse que quando ela assistiu nunca teve dúvidas que Diadorim fosse mulher, já que era feito pela Bruna Lombardi, que apesar de todo o figurino e maquiagem, era óbvio que era uma mulher ali.

Ô Globoplay, vê se disponibiliza pra assistir Grande Sertão Veredas na sua plataforma! Quero muito assistir agora que terminei o livro, faz favor!

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