Livros 2023 #20 - 1Q84: Livro 3 (2010)


Eu coloquei 1Q84 como um dos livros que mais gostei de ler na vida. E o facto da gente colocar um livro em tal pedestal talvez seja uma forma da gente tentar manter o quanto fomos tocados pela leitura, fazendo isso pra tentar não esquecer. Mas a memória nos trai, e eventualmente a gente vai esquecendo, embora a base do livro a gente tente manter viva na cabeça. Reler agora, dez anos depois, me fez entender o porquê desse livro ser tão marcante pra mim.

O terceiro volume da trilogia tem como base o perigo. Depois de todos os eventos que acontecem em seus antecessores, todo passo dos personagens é dado pisando em ovos. E essa estrutura, quase como um xadrez, é algo que deixa a gente tenso do começo ao fim do livro. E por mais paradoxal que pareça, essa tensão toda é muito bem balanceada com bastante tédio — mas até ele faz sentido, e torna os momentos de ação ainda mais intensos.

O título "1Q84" é uma brincadeira que talvez só quem é japonês consiga entender. Em japonês eles não falam anos como a gente, dizendo "mil novecentos e oitenta e quatro", eles falam "um, nove, oito, quatro". Em japonês 1Q84 se diz "Ichi-Kyū-Hachi-Yon", onde "kyu" pode ser tanto "nove", quanto a letra "Q". São homófonos. É claramente uma brincadeira para mostrar o quanto os dois mundos são interligados.

No livro final temos a adição de outro protagonista, que apenas havia feito uma pequena participação no anterior, o Ushikawa. Um misterioso investigador, com uma autoestima baixíssima, e um grande perdedor da vida ao lado dos protagonistas de sempre, Tengo e Aomame. Seus capítulos são dotados de um pessimismo marcante, um bocado arrastados, mas que quando entendi acabei sentindo muita pena do coitado. Me pareceu muito o dilema do herói e vilão, pois ambos passam por experiências traumatizantes, mas o vilão decide usar isso como desculpa para ser uma pessoa má, enquanto o herói usa isso para se superar e se tornar-se uma pessoa melhor.

O padrão de beleza japonês, e o quanto de preconceito as pessoas que estão fora desse padrão sofrem, sendo excluídas da sociedade (e ás vezes até de suas famílias) é uma coisa bem doida que acontece muito por lá. Quando eu fui no Japão me impressionei em como o padrão de beleza é um imperativo: a japonesa de olhos grandes, cabelo liso e fino, rosto triangular, pele bem alva, mamilos rosados, pernas tortas, e magras, muito magrelas. E se você não é assim, existem maneiras para se tentar encaixar no padrão, desde cosméticos, roupas com enchimento, até cirurgias plásticas. Mas se você decide não ser assim, a sociedade meio que te isola mesmo. Você não consegue os melhores empregos, é olhado torto na rua, e isolado em uma sociedade onde as pessoas já vivem dentro de suas bolhas. É um tema novo que é muito explorado nesse volume.

Uma coisa que eu gostei muito do Ushikawa é que, como ele é um investigador, a gente tem acesso a outras informações sobre os personagens que a gente não havia tido até então. Isso vai desde os nomes verdadeiros de vários, como coisas do passado que ele vai descobrindo enquanto levanta as informações que precisa. Por ser o terceiro volume, vai fechando o maior número possível de lacunas que ficaram, e nisso achei que o Murakami faz muito bem!

Aqui o tema principal abordado é a solidão. Tanto a solidão por não poder ter um companheiro na vida, como a solidão por ter sido abandonado pela família. Contendo também diversas passagens sobre luto, e o que herdamos daqueles que já partiram. Essa última parte em especial é outra parte muito forte na cultura japonesa — a importância da ancestralidade para as pessoas daquele país. E quando o gelo da solidão é eventualmente derretido, é sempre com aquela intensidade forte, o evento marcante.

A gente tem que entender que os sentimentos que as pessoas possuem é o bem mais precioso delas. Amar uma pessoa é um presente, uma dádiva que é um presente tão único pra gente, que a gente quer guardar esse sentimento apenas para nós. Afinal, o mundo vai julgar com racionalidade o que nosso sentimento, nem um pouco pragmático, diz que é correto. Por isso temos a tendência de esconder os sentimentos por quem amamos, só que ás vezes só quando deixamos um pouco disso fluir da gente, conseguindo pedir ajuda, conseguimos tornar real o que está apenas em nossos sonhos — ficar com a pessoa amada.

A conclusão da saga me faz lembrar do que realmente se trata 1Q84. Não é uma fantasia em um mundo paralelo, ou uma crítica aos costumes do Japão. É essencialmente uma história de amor! O desfecho é uma coisa tão marcante, que não pude deixar de ir às lágrimas. E acho que é isso que ficou, sabe? Talvez eu não lembrasse de todos os detalhes, mas as partes que são inesquecíveis perduram na mente, e são a base do pedestal em que coloquei essa série de livros. E essa emoção dificilmente a gente esquece, e fica na nossa cabeça, e a gente continua a indicar o livro mesmo sem lembrar totalmente de seu conteúdo. As memórias são escritas a lápis, já as emoções estão todas escritas à caneta.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

Eu gostei muito de como desenvolveram as histórias da Aomame e Tengo nesse livro. Eu tinha a impressão deles como se a primeira fosse a que tentasse ser encontrada, mas não podia sair do apartamento pra não ser capturada, enquanto Tengo não temia ser capturado, mas tentava com todo empenho tentar encontrar a Aomame. É um desencontro tão doido que apesar deles estarem tão próximos, esse encontro acaba nunca acontecendo por conta de uma coisa ou outra!

Isso me faz pensar como isso funciona com relacionamentos também. Tem gente que tem sorte de encontrar a pessoa certa logo de cara, tem outras que ficam a vida inteira buscando. Mas independente do tempo em que o encontro acontece, ele acontece apenas no momento certo. E esse encontro só poderia acontecer se o Ushikawa não existisse mais, pois ele era o grande impedimento para que os dois se vissem.

Parece meio forçado toda essa capacidade investigativa do Ushikawa, mas como ele mesmo cita, ele faz uso da tal "Navalha de Ockham" onde a explicação menos complexa é, em geral, a correta. E usando a lógica, ele vai avançando, começa levantando todo tipo de informação que consegue na escola e entre as Testemunhas de Jeová que Aomame frequentou, para depois ir atrás de Tengo, pensando que ele seria o elo que o levaria até Aomame. E justamente quando ele enfim consegue matar a charada, entra Tamaru, naquela cena brutal onde ele tortura e mata Ushikawa sem pestanejar. Era o momento decisivo!

Enquanto Aomame está no seu apartamento, olhando insistentemente ao playground, achando que verá novamente Tengo em cima do escorrega olhando para as luas, enquanto em seu ventre está o filho que foi fecundado nela quando o Tengo ejaculou dentro da dohta da Fuka-eri, Tengo está sempre indo visitar seu pai em coma, com as enfermeiras doidinhas por ele, mas o próprio sem vontade de fazer nada com elas.

Curioso que quem foi sua mãe continuou um mistério para ele, enquanto no livro havia sido revelado. A memória que ele sempre teve, da sua mãe tirando sua própria roupa, e tendo os seios sugados por um homem desconhecido, na verdade foi por conta da sua mãe ter fugido do senhor Kawana, com seu jovem filho, e entrado num novo relacionamento. Acabou sendo morta estrangulada, por uma pessoa misteriosa, e com a guarda entregue de volta ao pai. Ushikawa chegou a descobrir, mas Tengo mesmo nunca ficou sabendo.

A Fuka-eri não tem quase nenhuma importância na história. Ela apenas fica na casa de Tengo, com receio dos coletores da taxa da NHK. Eles, aliás, tem uma participação bem doida nesse livro. Curioso que o único que sabe lidar com eles é justamente Tengo — afinal, era o que pai dele fazia. Aomame, Fuka-eri, e Ushikawa não podiam se dar ao luxo de abrir a porta e mandar o coletor tomar no cu por conta da necessidade de ambos ficarem escondidos. A cena que Fuka-eri olha para Ushikawa é uma coisa mágica. Foi o único momento em que aquele homem deve ter sido olhado nos olhos.

Ushikawa aliás é um personagem bastante detestado por muita gente que leu. Por um lado é super compreensivo — é um saco alguém que só fica reclamando da vida. Mas depois entendi que ele é útil não apenas para dar o contraste com a determinação de Tengo e Aomame, como também pra entender o quanto a sociedade japonesa pode ser preconceituosa com seus próprios cidadãos. O homem devia ser tão feio que ninguém nem mesmo olhava pra ele. Mesmo sendo advogado, só conseguia pegar serviços de pessoas no submundo japonês. E mesmo sua família, o havia abandonado. Um homem solitário, que havia provado tudo o de pior que a vida havia lhe dado. E talvez por conta de ser esse rabugento, acaba sendo o elemento que atrapalha Tengo e Aomame de terem um final feliz.

E Tamaru no final senti quase como se fosse uma espécie de "deus ex machina". Ele é imbatível, nada pode pará-lo. Mas também foi meio culpa da Aomame: o sentimento que ela tem pelo Tengo é algo tão forte e especial, que ela não queria compartilhar com ninguém. Apenas quando ela fala da importância, e da eminência de sua captura pelo Ushikawa é que o Tamaru vai lá e, em apenas um capítulo, define o livro todo, matando Ushikawa.

O encontro final da Aomame e o Tengo é uma coisa tão linda! Eu já estava em prantos quando ela pegou na mão dele! Vinte anos depois lá estavam os dois, continuando da onde pararam. Uma das coisas mais bonitas que achei foi vê-los como aquele ditado que diz: "dois corpos, um só coração". Apesar de todos os anos separados, havia algo que os unia. E essa ligação fica tão forte, que eles nem precisam falar algo para que o outro perceba: é como se os corações já estivessem sintonizados, e suas almas se tornando uma só. A fuga de todos, e o táxi inesperado foi a prova de que com o amor pode tudo. Vê-los enfim tendo a primeira noite de amor de muitas de suas vidas foi inesquecível.

Um casal junto, com a lua como testemunha da realização desse grande amor!

— Impressões que tive ao reler minha resenha de 2013:

Pós-modernismo? Não sei se dá pra encaixar, pois não tem tanto uso do non-sense. É um livro de fantasia, oras. Não se lê Harry Potter sem aceitar que eles estão lançando magias de varinhas. Fantasia a gente lê e só aceita, haha. A impressão que tive dos momentos de tédio e tensão foi idêntico ao dessa vez. Curioso que eu achei que a Fuka-eri fosse uma personagem macabra, mas lendo dessa vez eu a adjetivaria como "alguém aparentemente desprovido de alma". Parece combinado mas falar que "no fundo o livro é de romance" foi algo que fiz sem querer nessa resenha também, haha! Talvez a Aomame seja uma bi, mas "mais hétero do que lésbica" dentro do espectro da sexualidade. A descrição de como Aomame ficou grávida, e a fuga dos casal no meio da rodovia é o tipo de coisa que eu hoje, mais maduro, definitivamente não escreveria desse jeito, hahaha!

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