Livros 2024 #1 - Paula (1994)


Peguei uma promoção no Kindle Unlimited na Black Friday e logo de início o algoritmo me indicou Isabel Allende. Bem preciso eu diria! Eu tenho tanto experiências boas quanto ruins com a Isabel, mas definitivamente esse livro — uma mistura de autobiografia, com crônicas da convalescência da filha no hospital por porfiria — entrou pra lista dos que eu gostei dela, e de quebra me fez fazer as pazes com a autora chilena.

Todos os capítulos são uma mistura dos depoimentos da Isabel acompanhando sua filha Paula internada e flashbacks da vida da primeira, contando como foi criada, desde seus antepassados, passando pela sua infância, adolescência, fase adulta, e maturidade. Tinha dúvidas sobre o parentesco dela com Salvador Allende (presidente que sofreu golpe do Pinochet) e descobri no livro que o pai dela que era primo do ex-presidente chileno.

O livro é recheado de muita tristeza. Paula estava bem, quando de súbito caiu de febre e muito vômito, e foi internada. Lá seu estado agravou, e ao visitá-la no hospital, em prantos, ambas têm uma última conversa: depois de Isabel ser perguntada pela filha o motivo dela estar chorando, e ela responder que o fazia pois a amava, as últimas palavras de Paula Frías foi: "Eu também te amo, mamãe".  

O diagnóstico foi uma grave doença no fígado, chamada porfiria. Estava em um estágio tão grave que a própria entrou em coma logo depois. E ainda em coma, ela acabou tendo um mau súbito, ficando entre a vida e a morte, com o coração sem bater e tudo mais. Mas ele voltou a bater — porém os danos cerebrais que isso causou foram irreparáveis. E então ela ficou vegetando, até sua morte, em dezembro de 1992.

Sentimos a mesma impotência da Isabel em querer a melhora de sua filha, sem nada a fazer, a não ser observar seu estado se agravar. E, por conta de toda essa tristeza dela, foi que Carmen Barcels, sua agente literária, a aconselha a botar tudo aquilo no papel. E escrever algo como se fosse uma carta para a Paula, para que essa pudesse ler quando acordasse. Essa carta acabou se tornando esse maravilhoso livro.

Existem várias passagens na vida da Isabel que me chamaram muito a atenção. Teve uma parte onde ela descobre sobre sexo, através de um pescador, num tempo onde ela não sabia de absolutamente nada, nem mesmo os órgãos sexuais masculinos. Foi pra ela uma mistura de tesão com a ideia de estar fazendo algo que seria mal visto pelos pais, onde ela conta sua primeira experiência com outro homem, ainda na adolescência. Muito doida essa parte.

Outra parte que achei super fofinha foi de uma vez que Isabel relembra quando Paula aos sete anos escreveu uma redação sobre sua família para a escola. Nessa redação ela diz que o único parente interessante seria o tio Ramón. Esse "tio" na verdade era o padrasto da Isabel (que só chegou a conhecer seu pai biológico quando ele morreu), mas que a Isabel o considera como pai de criação. Esse tio Ramón além de ser um grande diplomata, era uma pessoa de muito bom humor. E contava para sua neta Paula que ele era um príncipe e descendente direto de Jesus Cristo, dono de palácio e tudo mais. E tudo isso Paula colocou nessa redação, chamando a atenção da professora, que chamou sua mãe Isabel e indicou um psicólogo para a filha que escrevia aquelas coisas.

Acontece que um dia aconteceram alguns imprevistos e nenhum dos pais conseguiram buscar Paula na escola. Pediram então ao avô, esse tio Ramón, que arranjou uma limusine para buscá-la, toda cheia de bandeiras, alguns guardas falsos trajados, e quando ele desce do carro seu peito está cheio de medalhas de condecorações. Obviamente foi uma brincadeira do avô, mas de acordo com Isabel a professora ficou encabulada, fazendo até uma reverência ao tio Ramón, e achando que não era mentira aquilo que Paula havia escrito na redação!

Quando Isabel trabalhava como redatora de uma revista, ela foi mandada para entrevistar ninguém menos que Pablo Neruda, o grande poeta chileno. Não tendo muita experiência como entrevistadora, e muito nervosa em encontrar ali uma lenda viva, Pablo dá um conselho para Isabel: "Não consegue ser objetiva, se coloca no centro de tudo e desconfio que mente um bocado (...). Por que não passa a escrever romances? Na literatura, esses defeitos viram qualidade". Mal tinha como ter noção que ali estavam dois grandes expoentes da literatura chilena se encontrando na primeira e última vez: Pablo Neruda morreria pouco depois desse encontro do destino.

Isabel também conta com detalhes como foi o período da sombria ditadura de Augusto Pinochet. Isso é algo tão recente, que deixou tantas marcas, que enquanto eu lia me lembrava da minha amiga Sandra Gárdenas, chilena, que era uma criança na época do regime de Pinochet e me contava suas memórias dos anos de chumbo. Isabel descreve como foi o golpe, seu exílio na Venezuela em um tempo completamente diferente de hoje em dia, e posteriormente seu divórcio e novo casamento com um estadunidense (onde ela se mudou para os Estados Unidos).

Apesar da censura da ditadura, várias cópias ilegais de seu livro circularam entre os chilenos, e ela, ao retornar do exílio, foi recebida com muita pompa pelos seus fãs compatriotas! Essa parte é bem legal!

Isabel conta muito sobre seu processo criativo. Ela fala da onde veio as inspirações, as ideias, a dificuldade em conseguir se lançar no mercado, e o carinho que ela tem por todas suas obras. Tem até uma parte onde ela descreve que um autor nunca termina um livro, e sim se dá por vencido. Adorei isso, hahaha!

Depois dos médicos tirarem as esperanças da recuperação de Paula, Isabel acaba se mudando com a filha para os Estados Unidos, onde todas possam se despedir da filha. O amor que ela sentia pela filha é imensurável, mas ela percebe que é ela quem a está segurando aqui nesse mundo. E que infelizmente não há esperança de recuperação, Paula deve partir.

Tem um dos capítulos finais do livro onde Isabel conta um sonho final que ela teve com a filha, que é uma das coisas mais lindas e emocionantes que eu já li na vida. Isso sem contar o momento em que ela abre uma última carta que a filha escreveu antes de entrar em coma. Nesse sonho a filha diz que quer morrer, mas não pode. E ela relembra todas as passagens que ambas tiveram juntas, como uma última conversa antes dela partir. Pedindo para que a mãe não mais a retenha aqui, dizendo que ela irá partir dessa vida, mas estará sempre ao lado dela em forma de espírito. E que estará sempre presente de forma espiritual ao seu lado.

No final do livro ela conta como foi difícil essa despedida da filha, terminando com um "Adeus, Paula, mulher. Bem vinda, Paula, espírito".



Eu terminei o livro e fui pesquisar se haviam fotos da Isabel Allende e a Paula. Eu ficava olhando a foto das duas e relembrando tudo o que se passa no livro. Ambas pareciam sempre tão felizes. Mesmo tendo uma vida muito curta, menos de trinta anos, pareceu ter vivido de maneira muito mais intensa que muita gente que chegou aos cem. E deixou essa marca no nosso mundo, na forma desse livro magnífico, que tocou meu coração (e o de tantas outras pessoas) que ganhou forma através da mãe.

Espero que tenha partido em paz, Paula Frías Allende. Foi uma pena o mundo perder alguém como você, mas obrigado por tudo o que você nos deixou.

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