Livros 2024 #4 - A filha primitiva (2021)


Assinei o Kindle Unlimited e me deparei com essa joia que me foi sugerida. Livro vencedor do Prêmio Kindle de literatura, a escritora Vanessa Passos nos entrega um livro magnífico, juntando a revolta de uma filha que deseja saber quem é seu pai, da mãe dessa que quer que acima de tudo ela conclua seus estudos, e uma bebê ali requerendo cuidados, e criando dilemas para sua progenitora. Um grande exemplar da literatura marginal.

Não dar nomes às personagens é uma grande sacada por parte da Vanessa Passos. Afinal são mulheres pobres, mães solo, que possuem essa história tão comum, mas igualmente tendo suas identidades sempre relegadas. A avó, a filha, e a bebê.

Acho que a primeira coisa que me chamou a atenção foi como a maternidade da filha é mostrada. Existe essa pressão machista na sociedade de que tudo tem que ser as mil maravilhas, especialmente nos tempos atuais de redes sociais. Nunca é mostrado quando a criança faz birra, ou quando a mãe simplesmente não sente essa tal felicidade de completude da maternidade. E mesmo quando mostra, acaba sendo apedrejada socialmente — outra triste e injusta faceta dessa sociedade patriarcal na qual estamos rodeados, onde a mulher nunca pode expressar algo sobre a maternidade que não seja total felicidade.

Muitas vezes a filha tem essa crítica muito real e pertinente: de que não queria ser mãe, que sente dificuldade, que as responsabilidades a cansam, e o abandono por parte do cara que a engravidou. E cara, quantas vezes mulheres foram impedidas de expressarem tais coisas? Se a mulher não está preparada, a vinda de um filho acaba sendo um grande balde d'água fria por conta do significado real do que é ser mãe.

Outro aspecto da literatura marginal é escancarar o racismo ali nas coisas diárias. Apesar da protagonista ser uma negra não-retinta, ainda assim é alvo de muito preconceito, que é exibido de todas as formas nesse livro. Logo no começo mostra o tratamento que ela tem no hospital, onde ela recapitula seu parto, onde diziam que "ela era uma puta", e "nem devia saber quem era o pai da criança". Isso sem contar outros julgamentos preconceituosos que ela sofre, que infelizmente a gente sabe que é muito real.

A filha sempre quis saber quem era seu pai. Ela até relembra de uma tarefa escolar onde ela devia fazer uma árvore genealógica da família, e ela não sabia nada do ramo que viria de onde seria seu pai. Durante todo o livro ela persiste em questionar sua mãe sobre quem é seu pai, buscando de alguma forma preencher esse vazio que a ausência de um pai a causou. E a mãe reluta em revelar a ela, e entendemos isso quando enfim tudo sobre isso é revelado.

Isso me lembra algo que minha amiga Paula disse: "Que o difícil mesmo é achar um pai". E ao ler esse livro não tem como negar que isso é realmente um artigo raríssimo. Afinal o homem faz filho, abandona, a sociedade faz vista grossa, e todo o fardo é carregado pela mãe sozinha. Numa sociedade que vai sempre julgá-la, menospreza-la, e impedi-la até mesmo de ser feliz. Como um castigo de algo que não foi ela quem fez sozinha.

Ironicamente apenas os homens são os que possuem um nome próprio no livro. Afinal é assim que a sociedade funciona: o homem é o bicho social, o que é um agente da mudança, o que tem direito a identidade. Já a mulher, sempre relegada como a descartável, a que não merece importância. E Vanessa Passos demonstra isso de maneira genial dando nomes próprios apenas ao pai da filha (José) e seu namorado na universidade (Otton).

Mas nada disso me fez refletir mais do que o quanto a filha se revolta com o machismo no dia-a-dia. Sem medo de criticar ou chamar os homens do que esses canalhas merecem, esse livro me fez repensar não apenas em todo o privilégio que tenho de ser um homem, hétero, e branco que tenho, como ver do outro lado como tanta coisa machuca, coisas que seriam muito minimizadas se nós homens tivéssemos um mínimo de empatia e responsabilidade.

Livros assim sinto que me fazem crescer como homem, sabe? Mesmo que eu tenha noção de que a caminhada pessoal ainda é muita longa.

Estamos falando aqui de uma filha que engravidou sem planejamento de uma relação, que uma vez abandonada acabou tendo que se virar sendo uma mãe solo, e que embarca em outro relacionamento com um velho tóxico da faculdade, que a engana e a enrola de todas as maneiras mais covardes possíveis. Precisamos apontar o dedo para nós mesmos e, através de todos os exemplos e sofrimentos que ouvimos por parte das mulheres, melhorarmos como pessoas. Um mínimo de alteridade não custa nada, rapaziada.

"A filha primitiva" é um livro pesadíssimo. Muito chocante, mas necessário. Todos os homens deveriam ler essa obra, especialmente aquele tipo que não têm a mínima noção da dificuldade que é ser uma mulher, negra, e pobre. Essa galera da meritocracia, sabe? Quem sabe consigam perceber que as coisas podem ser muito difíceis, e no caso das personagens do livro, ainda mais complicadas por conta de fatores sem nexo que fixamos nessa sociedade fundada no preconceito.

E acima de tudo esse livro é um exemplar magnífico da literatura marginal. Essas histórias de pessoas da periferia, pobres, que não possuem ninguém para narrar suas vidas — ao contrário das pessoas mais abastadas das classes superiores — é tocar na ferida da infeliz desigualdade na qual esse país está sempre mergulhado. Tirar essas pessoas da invisibilidade, desse jeito que a Vanessa Passos faz, serve também como registro da nossa atualidade. E se não melhorarmos as condições dessas pessoas, jamais poderemos evoluir como uma nação.

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