Aquela envolta de pessoas do bem.
Professores de arte sempre foram os professores com os quais eu sempre tinha mais afinidade. Eu posso até esquecer quem me ensinou matemática ou física, mas lembro com carinho de todos os professores de arte que eu tive. Foi na sexta-série que tive aula com a Sônia, que embora ela desse uma aula de arte diferenciada — focada em desenho técnico, e não somente em artes plásticas — outra coisa que me marcou é que ela era amiga de infância da minha mãe e minhas tias. Inclusive frequentava minha casa na época.
Fiquei sabendo hoje que ela faleceu. Já faziam tantos anos que eu não a via! Da última vez a encontrei numa farmácia, enquanto eu estava comprando protetor solar. Ela se surpreendeu pelo facto de eu estar solteiro na época e me apresentou uma conhecida dela, que também estava buscando alguém. Nos conhecemos, mas a relação não foi adiante. Mas achei fofinho as palavras que ela elencou para me adjetivar: que eu era uma pessoa do bem. Isso numa época pré-Bolsonaro, onde isso ganhou um significado ruim.
A Sônia tinha dessas. Ela sempre se endereçava para as "pessoas do bem", e gostava que apenas esse tipo de pessoas fizessem parte de sua vida. Ela via muito além do que as aparências mostravam, e sabia como ninguém dizer se alguém prestava ou não. Uma intuição apuradíssima.
Ela sempre acreditou em mim, e como eu tinha facilidade com seu conteúdo, ela sempre me propusera desafios que iam além dos que o resto da sala fazia. Fazíamos desenhos técnicos de cubos, com cortes, adições, sempre nos mais diferentes formatos. Uma aula de modelagem 3D sem nenhum software — afinal éramos de uma escola pública da periferia de São Paulo.
Eu lembro que como eu tinha muita facilidade em traçar, ela me fez criar noção dos comprimentos e larguras sem precisar ficar toda hora na régua: eu sabia traçar as linhas com qualquer centímetro que fosse sem precisar olhar na medida. Acho que até hoje eu consigo fazer isso. E isso me ajudou muito no ano de arquitetura que eu fiz, os outros colegas ficavam impressionados com a minha precisão. Tudo isso graças às lições da professora Sônia!
Uma paixão absurda pela vida ela tinha. Ela se assumiu lésbica, o que aparentemente fez grande parte de sua família a isolar. A gente ouve tanto isso acontecer com pessoas jovens, mas ela sofreu a mesma coisa na fase adulta, mostrando que homofobia infelizmente é algo que não tem idade. Estava feliz, casada com sua esposa, com uma enteada (que inclusive foi aluna da minha mãe), mas de acordo com o que ouvi, ela acabou desenvolvendo um câncer agressivo na mama, e estava com um sério problema nos rins, lutando para fazer uma hemodiálise.
Foi um dia que o Tiktok me recomendou pessoas que talvez eu conhecesse, e lá estava a Sonia! Ela tinha criado um perfil no Tiktok para compartilhar as pessoas que ela amava nessa vida, e sua luta pela recuperação. Mesmo passando pelos incontáveis problemas que ela devia estar sofrendo naquele momento, ela sempre estava sorridente, mostrando o apoio que recebia da sua esposa e enteada, e esperançosa rumo à sua recuperação.
Ela partiu desse mundo nessa última noite.
Até o último vídeo que ela postou (nesse link) ela sempre se mostrava determinada. Isso me pegou tanto, sabe? Não vou negar que em muitos momentos enquanto estive deprimido nada nessa vida fazia sentido. É o ponto de vista de alguém que luta contra depressão. Mas vendo a Sonia, esse foi o último registro dela em vida. E mesmo nele, com máscara de inalação na cara, respiração ofegante, ela ainda mostrava esse espírito inabalável, de que aquilo passaria logo, e que ainda teria muitos anos pela frente.
Minha mãe logo depois de me dar a notícia me disse que quando eram crianças imaginava que teriam uma vida super longa, e ficava imaginando qual delas partiria desse mundo primeiro. Só não pensava que seria assim tão cedo — Sônia devia mal ter completado sessenta anos.
Vá em paz, Sônia. Obrigado por tudo.
Comentários
Postar um comentário