Livros 2024 #5 - A criação do patriarcado (1986)


Esse ano eu quero ler mais sobre dois temas: racismo e feminismo. Como assinei o Kindle Unlimited, digitei lá na busca "feminismo" e me sugeriram essa obra da Gerda Lerner. Apesar do grande embasamento acadêmico, ela aborda de um jeito de fácil entendimento e muito elucidativo. Eu comecei a ler e eu não conseguia parar, fazia tempo que eu não lia um livro teórico que me prendia tanto! E acima de tudo livros como esses nos ajudam a observar o nosso entorno e entender como funciona a machista sociedade que nos cerca.

Um livro como esses é essencial, não apenas para mulheres, mas também para homens. 

O tipo de obra que nos faz perceber que apenas por possuirmos um pênis entre as pernas nos garante uma vantagem desproporcional em tudo durante toda a história. É verdade que o feminismo trouxe avanços, mas a perspectiva que eu tenho quando leio um livro desses é que ainda falta muito — e isso considerando um livro que é mais velho que eu. 

Esse livro se debruça não apenas em contar como mulheres, que sempre tiveram sua história depreciada no lugar dos homens, na realidade tiveram sim participação essencial na sociedade, mesmo que essa participação tenha sido apagada uma vez que todos os registros foram feitos por homens. Afinal elas sempre foram denominadas para servirem no trabalho doméstico, cuidar da família, sem protagonismo histórico, e sequer sendo dignas de terem sua história contada.

A questão é que homens e mulheres sofreram exclusão e discriminação por razões de classe. Mas nenhum homem foi excluído do registro histórico por causa de seu sexo, embora todas as mulheres o tenham sido.

A primeira coisa que a Gerda faz no livro é cortar essa de que a submissão feminina começou em algum ponto. Logo, havia um momento em que esse tipo de coisa não existia, no entanto é algo tão longíquo, tão pré-histórico, que sobreviveu poucos registros de tal organização social. O problema é que por ser algo tão longíquo, existe uma afirmação tradicionalista de que a dominação masculina é algo natural. Que é assim que as coisas sempre foram, que é parte da nossa natureza. Mas não é bem assim, como ela mostra em sua pesquisa.

Eu lembro de muita ladainha que quando eu era jovem li no livro "Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor". Um livro que eu até cheguei a comprar na época (eu tinha uns dezessete anos). E lá afirmam que o facto do homem primitivo ter o papel de caçador, o que traz o alimento para a casa, logo seria papel dele também o de proteção da família. Mas sabemos que esse não é o caso, é claro: existem homens que estupram, os que agridem suas esposas, que maltratam os filhos, e por aí vai. Não dá pra delegar um papel de tanta importância assim para apenas uma pessoa. Esse livro classificava isso baseada em uma suposta "vantagem biológica", mas a Gerda Lerner na década de oitenta já tinha refutado isso tudo:

Existem evidências arqueológicas de que a caça era uma atividade compartilhada. Para grandes animais eram grupos de homens, mas as mulheres também caçavam animais menores e coletavam outros tipos de alimentos. Havia uma complementaridade entre os sexos, não tem essa de que apenas a mulher que ficava com os filhos e o macho ia buscar o alimento. O mito do homem caçador só serve para reforçar a infundada supremacia que homens teriam, quando referências arqueológicas que Gerda traz diz que foram mulheres que criaram coisas como cestaria, olaria, e horticultura.

Que doido pensar isso, que toda a agricultura, que trouxe a nossa espécie a outro nível de evolução, foi criado por mulheres! Como isso é incrível!

Isso sem contar outros artigos que reforçam ainda mais. Saiu um artigo ano passado mostrando que estrogênio e adiponectina ajudaram mulheres na pré-história a ter mais resistência durante a caça, prolongando-as. E na caça não é necessário apenas força muscular, característica do corpo masculino, mas por conta dos quadris mais avantajados, mulheres podem dar passos mais longos, chegando mais rápido atrás da comida. Isso sem contar que os registros fósseis mostram que tanto homens quanto mulheres tinham o mesmo tipo de ferimento decorrente da caça. Era algo compartilhado, cada um tinha sua importância, não havia a suposta supremacia do homem. Isso é mentira.

O fato de mulheres terem filhos ocorre em razão do sexo; o fato de mulheres cuidarem dos filhos ocorre em razão do gênero, uma construção social. É o gênero que vem sendo o principal responsável por determinar o lugar das mulheres na sociedade.

Tradicionalistas constantemente afirmam que a inferioridade da mulher é natural. Mas antropólogas feministas mostram que isso está longe de ser universal. Mas humanos se organizaram, apareceu a religião, e a anatomia feminina, e a capacidade de produzir prole, as tornou inferior. Metade da humanidade era impossibilitada de se desenvolver, de buscar conhecimento, por serem obrigadas apenas a cuidar da casa e família, e forçada à servidão por conta de sua biologia.

Quando temos evidências de que antes das sociedades se formarem, as mulheres eram responsáveis por 60% da alimentação na época em que vivíamos nas cavernas, em média.

O ponto de mudança foi quando surgiu a agricultura e pecuária. Se foram as mulheres que criaram ambos, em algum momento o homem se apropriou dos excedentes dessas produções. E então para garantir isso para si mesmo e seus herdeiros, foi criada a propriedade privada. Começou então a controlar a sexualidade das mulheres, exigindo fidelidade para manter a prole, a virgindade, e a propriedade em cima das mulheres também.

Não sei se hoje existem evidências de quando essa mudança aconteceu. Gostaria de saber o que aconteceu para que homens ganhassem essa importância quando até então era uma responsabilidade compartilhada. Será que foi consequência do sedentarismo? Não sei, é apenas um devaneio de minha parte.

Essa propriedade em cima das mulheres nos leva a transformação delas em mercadoria. Não faz muito tempo que ouvimos falar de "casamentos arranjados", embora isso tem sido uma coisa cada vez mais criticada nos dias de hoje. Mas isso acontecia pois o pai tinha propriedade sobre a filha também, e a mulher era oferecida, por meio do casamento, para servir outro homem em outra família, e assim criar um laço entre as duas famílias.

Uma coisa que é citada no livro, que eu não conhecia é o assentamento pré-histórico de Çatalhüyük, na Turquia. Nele, mulheres de classes altas tinham suas lápidas pintadas de ocre, o que pode denominar que elas tinham um protagonismo dentro daquela sociedade. Inclusive havia uma mulher enterrada logo abaixo do templo, com ornamentos, indicando que ela fosse uma rainha/sacerdotisa. Alguns homens também tiveram um "enterro ocre", mas ver mulheres com tal privilégio pode mostrar que havia algum tipo de igualdade entre os sexos ali. Acreditam que ali homens e mulheres compartilhavam o poder e o controle, especialmente enquanto caçavam juntos. 

Na nossa espécie existe algo que complica: ao contrário de outros hominídeos, nós, que somos bípedes, tivemos a pelve feminina mais estreita que em outras espécie. A evolução achou como solução fazer com que bebês humanos nascessem num estágio de imaturidade maior que em outras espécies, logo existe aí uma dependência da mãe muito mais forte.

Consequentemente, mulheres escolhiam ou preferiam atividades econômicas que pudessem ser combinadas com facilidade aos deveres da maternidade. (...) Além disso, embora um bebê carregado nas costas possa não ser um impedimento para a mãe participar de uma caçada, um bebê chorando pode.

Logo parece que foi justamente a capacidade das mulheres serem mães que causou a primeira divisão do trabalho do mundo. Foi por conta da divisão biológica sim, mas como a própria Gerda Lerner destaca, isso só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento humano, e não justifica as outras divisões que o patriarcado fez surgirem depois. Simone de Beauvoir especulou que foi essa divisão que levou as mulheres para a "imanência" (busca pelo trabalho diário, repetitivo e sem fim) enquanto o trabalho do homem o levou à "transcendência" (superioridade e liderança).

Elise Boulding, uma socióloga feminista enxerga que as habilidades tanto de homens quanto mulheres no neolítico tinham igual importância. A mulher das cavernas era a guardiã do fogo doméstico, caçava, tinha conhecimento elaborado em plantas, medicamentos, fazia recipientes de argila e tecido, além de saber transformar a matéria prima da caça em alimento. 

E mesmo quando havia a dificuldade de levar os filhos pequenos para a caça (por conta da dificuldade de carregá-los, ou mesmo o choro da criança afugentar a caça), a guarda da criança era compartilhada por outros membros da família no momento da caça, como idosos ou irmãos mais velhos. Haviam tantas habilidades que talvez elas deviam ter uma importância igual, se não superior ao homem.

Meninos e meninas aprendem a esperar de mulheres o amor infinito e acolhedor de uma mãe, mas também associam a mulheres o medo de suas fraquezas. A fim de encontrar a própria identidade, meninos se desenvolvem como “diferentes da mãe”; identificam-se com o pai e repudiam expressões de sentimentos, preferindo a ação.

Essa citação acima me fez pensar muito. Afinal, as meninas, desde criança, são ensinadas a serem empáticas por natureza dentro dos valores da sociedade patriarcal. Quando são ensinadas a se conectarem com o outro, isso faz com que o limite do ego delas seja sempre mais flexível ou permeável. Já com meninos é o oposto, por conta de se isolarem e serem incentivados a se distinguirem, se individualizarem, são preparados para participar da esfera pública, enquanto as mulheres são proibidas disso, se mantendo na "esfera dos relacionamentos e reprodução".

Algumas hipóteses para a dominação masculina podem ser que por conta de serem os homens enviados para batalhas, acabou fazendo-os criar estruturas militaristas, para reforçar suas lideranças baseadas em seu gênero. Pode haver também questões hormonais, da testosterona o dar mais força e deixá-lo mais agressivo, ou a incapacidade de dar luz o fez querer exercer dominância sexual por meio da agressividade contra mulheres: fatores psicológicos.

E isso porque não entramos na questão da capacidade de homens poderem estuprar mulheres. Foi por causa da capacidade que levou a propensão a estuprá-las, se tornando mais uma maneira de homens exercerem a dominância dentro do patriarcado. Tem até uma teoria de que quando o homem percebeu que poderia multiplicar seu gado, deve ter surgido aí a ideia de violentar sexualmente uma mulher para aumentar sua prole. Um bagulho doentio pra um caralho.

A Gerda Lerner usa muito o termo "reificação" das mulheres — basicamente transformá-las em "coisas", ou "mercadorias". E como eu disse anteriormente, o facto delas serem uma propriedade do homem, poderia ser usada para transações entre os mesmos. Mas sempre entre dois homens, onde um oferece a mulher para casamento, desconsiderando sentimentos ou inclinações da mulher, transformando-a realmente em uma "coisa". 

Mas por que as mulheres seriam reificadas, e não homens?

Aqui a autora traz algumas suposições. A primeira seria que homens seriam mais propensos a rebeldia, independente de terem produzido uma prole, se fossem dados a casamento (como no caso das mulheres). Provavelmente ao saírem para caçar voltariam com os membros de sua tribo prontos para guerrear contra seus captores. Mas as mulheres, por conta de não terem a mesma força física, seriam coagidas através de estupros e violência. E uma vez que filhos nascessem desses abusos, as mulheres criariam lealdade aos filhos e maridos, estreitando laços inevitavelmente. Por mais que tenham estes laços sido criados na base de muita dor e injustiça.

Meillassoux argumenta que a vulnerabilidade biológica das mulheres no parto fez as tribos buscarem mais mulheres de outros grupos, e que essa tendência ao roubo de mulheres levou a constantes conflitos inter tribais. No processo, surgiu a cultura do guerreiro. Outra consequência desse roubo de mulheres é que as mulheres conquistadas eram protegidas pelos homens que as haviam conquistado ou por toda a tribo conquistadora. Como resultado, as mulheres eram consideradas bens, coisas – elas foram reificadas –, enquanto os homens as reificavam porque as conquistaram e protegeram.

E nesse contexto mulheres e crianças viram mercadoria dos homens. Era como se a existência delas alimentasse o ciclo: mulheres seriam geradoras de herdeiros, e esses herdeiros poderiam ser trocados entre tribos, estreitando laços. Afinal homens não geram bebês diretamente, não gestam. Logo, são mulheres que são comercializadas, não homens. Não há nenhum interesse na mulher como humano: seus pensamentos, solução de problemas, intelectualidade. Elas são reificadas por conta da capacidade reprodutiva.

Se as mulheres teriam desenvolvido a horticultura e os homens a pecuária, por que no final das contas os homens que acabaram no controle de tudo? O livro levanta como resposta o facto de que nem toda sociedade passou pelo estágio da horticultura (a ciência da produção de alimentos), a pecuária era a atividade principal. E não demorou muito para que produzisse excedentes, e os homens que os controlassem, reforçando seu domínio e criando a propriedade privada.

Mas existe um outro ponto que achei interessante que, quando os humanos se tornaram sedentários, começou a existir muito mais tempo livre. Se o esquema era plantar ou cuidar das vacas, homens se beneficiaram disso para se expandirem para outras atividades, forçando as mulheres a cuidarem da casa e dos filhos, não lhes dando tempo hábil para outras atividades. Afinal a primeira coisa que a propriedade privada se apropriou foi o trabalho das mulheres como reprodutoras. Gerda Lerner explica:

As coisas se desenvolveram de certa maneira, causando determinadas consequências que nem homens nem mulheres planejaram. Eles não tinham como saber das consequências, da mesma forma que os homens modernos que deram início ao admirável mundo novo da industrialização não tinham como saber de suas consequências em relação à poluição e seu impacto sobre a ecologia. Quando a consciência do processo e de suas consequências se desenvolveu, já era tarde demais – pelo menos para as mulheres – para interromper o processo.

No terceiro capítulo ela se debruça sobre o facto de que conforme a necessidade de homens para guerras e batalhas foi aumentando, isso fez com que eles — com praticamente total monopólio da violência — se unissem também para criação de regras, as primeiras leis que seriam impostas nas sociedades mais antigas da Mesopotâmia. E como eram os homens que detinham esse poder de criação das leis, monopolizando o poder, nem é preciso ir muito longe pra pensar que (mais uma vez) mulheres pagariam esse pato.

Apesar da tradição de casamentos dinásticos, oferecendo as mulheres para legitimar ou fortalecer o domínio sobre os conquistados, nesse período do segundo milênio a.C. mulheres da aristocracia eram educadas e letradas — muitas vezes para servirem de informantes para o reinado de sua família original. Uma das coisas que sobreviveram foi uma carta da princesa Nin-shatapad, talvez a primeira escritora da história.

Foi tudo algo gradual. No norte da Suméria ainda havia um costume de permitir que a esposa ou a filha pudessem substituir o pai no papel de rei da região:

As mulheres eram também escribas, instrumentistas e cantoras. Realizavam funções importantes como sacerdotisas, adivinhas e profetisas. Como o rei consultava com regularidade profetas e adivinhos antes de tomar qualquer decisão importante ou antes de ir à guerra, essas pessoas eram, na verdade, conselheiros do rei.

Mas é óbvio que quando um rei era subjugado, essas mesmas mulheres aristocráticas eram entregues como escravas domésticas. 

Ainda no tema da escravidão, Gerda Lerner explora algo que eu não tinha parado pra pensar: que antes da escravidão de qualquer povo existir, as mulheres foram as primeiras escravas. Afinal a escravidão é basicamente um tipo de dominação hierárquica. E ela só poderia ocorrer se houvessem excedentes de alimentos, meios de repreensão dos escravizados, e distinção (fosse visual, ou conceitual) entre os escravos e escravizadores. 

E se você consegue diferenciar um grupo dominado de um dominante torna possível que a escravidão começou precisamente com mulheres como alvo. As reificar como escravas era diferencia-las até na função: enquanto homens "faziam parte" de uma família ou sociedade, mulheres "pertenciam", eram um objeto de posse. Era fazer com que mulheres aceitassem que sua impotência perante os homens eram condições "aceitáveis" de interação social.

Outro fator essencial para se existir a escravidão é a desonra. A moeda de troca que o patriarcado criou foi a questão da honra. E honra nada mais é do que atribuir dignidade e virtuosidade para alguém na sociedade, não é um atributo intrínseco. E homens gozam disso através da autonomia deles que é reconhecida pelos outros: o cara trabalhador, intelectual, político, isso tudo os fazem honrosos. Mas o que fazem mulheres honrosas? Suas condutas sexuais. A virgindade e a fidelidade sexual é o que as tornam "honrosas".

Isso me lembra esse vídeo da genial da Anaterra Oliveira.

E essa escravidão é pra se fazer tudo. Desde cuidar da família, fazer comida, fiar lã, moer grãos, cuidar de animais domésticos, e por aí vai. Houve casos que não haviam talvez tanto objetivo de usá-las para fins sexuais (uma vez que não teve um aumento da população), mas ainda assim estamos falando de escravidão.

Com o constante avanço do militarismo por parte dos homens, as mulheres que eram capturadas em guerras que eram escravizadas. Gerda nos lembra que até mesmo na Ilíada de Homero essa prática é tão comum que o autor nem precisa explicá-la (quando cita o que Agamenon fez ao tomar Briseida). Escravizar mulheres é ganhar honra entre os homens. E o que aconteciam com os homens que eram prisioneiros de guerra? Mortos.

Aí que entra a reificação das mulheres. Como eram um objeto, a mulher escrava ficava em casa, lavando, costurando, limpando. E na Babilônia há relatos de que se fossem jovens, também eram usadas como objetos sexuais, fosse na cama do senhor ou em bordéis e harens. A servidão sexual era algo tão disseminado que surgiu daí o droit du seigneur, o "direito da primeira noite" das noivas de servos em um feudo. 

A autoridade absoluta do pai sobre os filhos deu aos homens um modelo conceitual de dominância e dependência temporárias em razão da vulnerabilidade dos jovens. (...) Portanto, a autoridade parental precisava funcionar sob o controle tanto do ciclo da vida quanto do futuro poder em potencial dos jovens. O garoto, observando como seu pai tratava seu avô, aprendia sozinho como tratar o pai quando chegasse sua vez.

Essa parte de cima parece a história da minha família, haha. Meu pai sempre foi muito patriarcal, e eu vejo o ciclo repetindo. O único exemplo que temos é o péssimo que nos foi deixado pelos pais, avós, que trouxeram de uma geração ainda mais antiga. Essa autoridade absoluta é algo que sempre foi uma lei vinda da parte da família do meu pai, meu avô costumava repetir e enfatizar muito que "era assim que as coisas sempre funcionaram". 

Uma hierarquia foi toda criada. No topo haviam mulheres excepcionais, que por conta de serem virgens ou terem alguma função dentro da religião tinham direito até a alguns reservados aos homens, como ter escravas. A segunda casta seriam as esposas, onde a servidão ao marido lhe dava direitos sobre a propriedade do homem. Em terceiro lugar estavam as escravas-concubinas, que embora estivessem ali para realizar trabalhos forçados, poderiam ter algum tipo de ascensão social caso trouxessem filhos. E por fim as escravas, que eram apenas usadas como mercadoria, algo pior do que um objeto.

Toda essa estrutura é vista na história de Penélope e Odisseu. 

Quando um grupo é marcado como escravizado, ele carrega o estigma de ter sido escravizado e, pior, o de pertencer a um grupo que é escravizável. Quando a escravidão se tornou comum, a subordinação de mulheres já era um fato histórico.

O quinto capítulo ele se debruça entre os principais códices de leis da antiguidade: o código de Hamurabi, Leis Médio-Assírias, leis Hititas, e a lei bíblica. E o que todas elas dizem? Assim como nos dias de hoje, promulgar uma lei indica que a prática legislada não está sendo vista de bons olhos pela sociedade. Aquela clássica: se há uma placa proibindo algo, tem uma história por detrás dela.

O costume de que apenas filhos homens levavam adiante o sobrenome da família vem da sociedade Babilônica, mostrando que desde essa época o nascimento de meninos era muito mais valorizado que o de meninas. E claro, apenas os filhos homens podiam herdar as propriedades e servir ao templo, incluindo ritos religiosos. Nada de mulheres.

Alguns poucos direitos eram garantidos às mulheres, como se no caso de divórcio a esposa tem o direito de ficar na casa do marido e ser sustentada por ele até o fim da vida, no Código de Hamurabi. 

Chefes de família homens agora tinham a obrigação de utilizar familiares para fins de casamento de modo a maximizar as riquezas da família e manter ou melhorar seu status. (...) Os serviços sexuais e reprodutivos das mulheres é que foram reificados, não as próprias mulheres.

Embora os casamentos fossem monogâmicos, não havia nada que impedia os homens de cometerem adultério com meretrizes ou escravas. Adultério é apenas o que é cometido pela esposa, no caso de traição. Mas o homem, de acordo com os costumes babilônicos, só devia respeito ao casamento de outro homem. Pela lei o controle sexual da mulher era dado ao homem.

O aborto já naquela época era visto com o olhar muito similar ao de hoje. Havia uma Lei Médio-Assíria onde a mulher que causasse aborto e fosse descoberta, seria empalada e não seria enterrada. Essas duas punições eram as mais rigorosas de todas, equiparável a uma alta traição ou atentado contra o rei. E o pior é que especialistas, ao analisarem essas leis, afirmam que o homem tem o direito de abandonar uma criança. Mas uma mulher não. Tem aí uma clara questão de prioridades, né?

Assim, o direito do pai, até então praticado e sancionado pelos costumes, de decidir sobre a vida dos filhos bebês, o que na prática significava a decisão de se suas filhas bebês viveriam ou morreriam, está, nas LMA, equiparado à manutenção da ordem social. O fato de a esposa usurpar esse direito do homem passou a ser visto como equivalente, em magnitude, a traição ou atentado ao rei.

O patriarcado existe por conta da família. Se membros da família prestam obediência ao patriarca, logo a família também é obediente à ordem no domínio público. Pense que por conta do poder dado ao pai de tratar a virgindade das filhas mulheres como recurso da família, lhes dava a autoridade de um verdadeiro rei. E crianças que vêem esse exemplo, dificilmente agirão diferente, sendo o tipo de cidadão perfeito dentro de um regime absolutista. As esferas de ordem amplamente difundidas.

O sexto capítulo se debruça sobre a prostituição. Eu gosto da Gerda Lerner pois logo no início ela corta esse mito de que "é a profissão mais antiga do mundo", como se fosse natural ela existir. Uma grande mentira, pois onde há tolerância sexual ela costuma ser rara. A prostituição só existe onde há uma restrição, sendo apenas uma justificativa pra promiscuidade masculina. Pense comigo: como a sexualidade das mulheres é cerceada, e a dos homens não, é óbvio que estes irão exercer seu privilégio através do uso de prostitutas.

Gerda fala sobre um aspecto que eu nunca tinha ouvido falar: que a prostituição no templo precedeu a prostituição comercial. Foram os cultos em prol da fertilidade, de cunho religioso, através do sexo com sacerdotisas onde começou tudo. Havia a crença de que os deuses residiam nos templos, e através do ritual do casamento sagrado, onde acontecia as relações sexuais, se acreditavam que isso lhes trariam colheitas férteis e abundância. E isso acontecia em homenagem a muitos deuses, não importa a civilização: Tamuz, Átis, Adonis, Baal, Osíris, etc.

Mas onde entra a prostituição nisso? As sacerdotisas, conhecidas como naditu levavam dotes que recebiam nesses festivais da fertilidade para o templo. E com esse dinheiro poderiam usar para empréstimos, comprar terras, escravos e casa. No entanto, eram proibidas de terem filhos, usando sabe lá deus que métodos contraceptivos para tal — mas adotavam crianças para cuidar delas quando ficassem velhas e administrar toda a riqueza que era oferecida ao templo, e parava no bolso delas. Não podiam se misturar com bordéis, e isso lhes dava respeito dentro da estrutura social.

A meretriz de templo é uma parte aceita da sociedade; seu papel é honorável – aliás, é ela que é escolhida para civilizar o homem selvagem. A hipótese aqui é de que a sexualidade é civilizatória, agradável aos deuses.

Já a prostituição comercial deve ter surgido da escravidão das mulheres quando as classes foram definidas. Quem tinha escravas, as alugava como prostitutas, e não demorou muito para que os primeiros bordéis surgissem alimentados com essas pobres escravas. Isso sem contar quando fazendeiros empobreciam, e seus filhos eram vendidos para adoção. E, óbvio, usar as filhas como prostitutas para pagar essas dívidas. Poderiam ter alguma ascensão como concubinas, era uma possibilidade também.

E com essas questões de oferecer as filhas à prostituição, aí sim que a virgindade se tornou uma moeda de troca ainda maior: as filhas respeitáveis eram justamente as que não eram submetidas a tal condição, e a comprovação disso era através da virgindade. E aí entramos em um símbolo da virgindade que atribuía respeito à mulher: o uso do véu. Uma coisa que até hoje é muito usada, especialmente de religiões abraâmicas. E se a mulher usasse um véu, e fosse uma prostituta, seria punível com a morte da mesma. 

Nem [esposas] de [lordes] nem [viúvas] nem [mulheres assírias] que saem na rua podem estar com a cabeça descoberta. As filhas de um lorde [...] seja com um xale, um manto ou [uma capa], devem se cobrir. [...] quando saírem sozinhas, devem se cobrir. Uma concubina que sair com sua senhora deve se cobrir. Uma prostituta sagrada que se casar com um homem deve se cobrir na rua, mas aquela que não se casar deve andar com a cabeça descoberta; ela não deve andar coberta. Uma meretriz não deve andar coberta; sua cabeça deve ser descoberta.

O patriarcado, ao criar esses tipos de classificações para mulheres, dizendo que as honrosas usariam véu, e as não honrosas não o usariam, impediu a formação de alianças entre as mulheres. E isso dificultou ainda mais a formação da consciência feminista.

No capítulo sete, "As Deusas", Gerda expõe uma coisa que eu nunca parei pra pensar: mulheres são as que gestacionam, então por que existe tantas imagens ligando fertilidade ao homem (e muitas vezes apenas a eles)? Uma coisa que, parando pra pensar, não faz o menor sentido. Era no corpo das mulheres que residia o mistério da criação da vida, mas o patriarcado distorceria isso de tal maneira que levaria à elevação de figuras masculinas como as divinas e geradoras da vida lá na frente.

A estrutura é para rebaixar as mulheres do papel de gerador de vida, lhes negando qualquer representação divina é bem básica: 1- Quem cria a vida?; 2 - Quem traz a maldade para o mundo?; 3 - Quem faz a mediação entre humanos e o sobrenatural? A resposta para a (1) de início era a vulva (uma escolha bem óbvia), mas passou para a semente (não à toa, "sémen") do homem; Para a (2) antes era a árvore da vida, representado o desejo pela imortalidade, passou para a árvore do conhecimento, onde Eva roubou o fruto; Já a (3) passou do casamento sagrado, união do masculino e feminino, para a aliança bíblica, deixando nos dedos da mulher o atestado de ser propriedade do marido. 

Minha proposta é de que, assim como o desenvolvimento da agricultura de arado, coincidindo com o aumento do militarismo, resultou em mudanças importantes nas relações de parentesco e de gênero, o desenvolvimento de fortes reinados e estados arcaicos também originou transformações em sistemas de crenças religiosas e símbolos. O padrão observável é: primeiro, o rebaixamento da imagem da Deusa-Mãe e a ascensão e posterior dominância de seu consorte/filho; depois a fusão deste com um deus da tempestade em um Deus-Criador, que lidera o panteão de deuses e deusas. Onde quer que ocorram essas mudanças, o poder da criação e da fertilidade é transferido da Deusa para o Deus.

No antigo culto à Grande Deusa vemos que ela era baseada em uma totalidade. Era por meio da dualidade de seu papel duplo tanto de criadora da vida, como a associação à morte, que a vinculavam com a natureza. Isso era observado nas divindades Nun (Egito), Nammu (Suméria), Tiamat (Babilônia), Gaia (Grécia), e por aí vai.

A mudança começou quando o Homem percebeu seu papel na criação — dizem que foi observando na pecuária que essa ficha caiu. Começou então a aparecer a Deusa-mãe associada a um parceiro masculino, onde o homem ao se acasalar com a mulher morreria para depois renascer. Isso eu achei tão preciso, pois dizem que é através da descendência que o homem se tornaria imortal — com sua vida continuando através de seus filhos. Faz sentido essa de que quando estava solteiro e se casasse ele "morreria" para "renascer" na forma dos filhos.

Um exemplo disso atualmente é o facto de que é apenas o sobrenome masculino que é passado para os filhos em diversos países. Ou mesmo em sociedades onde não há sobrenome, são os nomes dos pais, avós, e até bisavós que são passados (como as árabes). Nunca o sobrenome ou nome das mulheres, com exceções, óbvio.

No oitavo capítulo a Gerda Lerner fala sobre as narrativas distintas da Bíblia, que eu não sabia da existência disso. Pesquisando aqui encontrei as pesquisas do alemão Julius Wellhausen, que mostra que os primeiros livros não foram escritos por apenas uma pessoa, mas no mínimo por quatro fontes: javista, eloísta, sacerdotal, e deuteronomista. Aliás são ótimas páginas do princípio das religiões abraâmicas que não é o foco dessa postagem, mas achei interessantíssimo.

O caso de Abraão e de Ismael, filho de Agar, é assim, e a história bíblica indica sem deixar dúvidas que o plano de Deus é que o povo escolhido (semente de Abraão) deva ser prole de Isaac, o filho do casamento legítimo, e não de Ismael, o primogênito, filho de uma escrava concubina. Há um precedente na Lei de Hamurabi § 170 para que a herança vá para o primogênito da primeira esposa em detrimento dos filhos da concubina, tendo estes direito a uma parte menor da herança se o pai reconhecê-los em vida.

Tem um capítulo do livro Juízes da Bíblia que demonstra o pouco valor que a vida de uma concubina tinha. Sem citar nomes, um levita tinha uma concubina que "agiu como uma meretriz contra ele e fugiu para a casa de seu pai". Ele foi lá buscá-la, mas no retorno ninguém queria lhe oferecer hospitalidade, exceto um senhor idoso. Ao se hospedar na casa desse idoso, homens apareceram batendo na porta e demandando que "Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações sexuais com ele!" (WTF? Sim, queriam comer o bumbum do cara)

Só que o velho manda a concubina no lugar. Ela é abusada e estuprada por toda a noite. Ao retornar, complemente destruída, caiu na frente da casa. O dono dela a levou, e quando chegou em casa a matou e dividiu seu corpo em doze partes e mandou para todos os cantos de Israel. 

Um exemplo de como se usam mulheres para receber uma punição no lugar de um homem, além do valor da vida ser zero naquele contexto, com sua vida oferecida para salvar a vida e honra do hóspede. E isso devia ser tão normal, que não há uma explicação aprofundada sobre isso. Apenas aconteceu.

No nono capítulo vemos como o patriarcado distorceu até o conceito de concepção da vida. O que antes era creditado à Deusa-Mãe sozinha como princípio único da fertilidade universal, passamos por uma Deusa-mãe auxiliada por deuses masculinos para criar a vida, e então para um único deus masculino e poderoso, que gera pela "palavra", pelo "nome", e tal. A deus abraâmico que possui o tal "sopro da vida", que dá a Adão o poder de nomeação.

Ao interpretarmos a palavra hebraica adam como “humanidade”, consideramos que Deus tenha dado o poder de nomear tanto para o macho como para a fêmea da espécie. Mas, nesse caso, Deus concedeu o poder somente, e de modo específico, ao ser humano do sexo masculino.

E aí começamos a analisar o machismo imenso dentro das religiões abraâmicas: é o homem (Adão) que dá o nome de "mulher" para o ser humano do sexo feminino. E ao dar-lhe um nome ele a define como uma parte "natural", e isso só é possível e lógico quando há uma relação de mãe que gera o filho, pois "dar o nome" tem o mesmo peso de "gerar" aquilo. O ato de nomear também impõe a autoridade masculina em cima da mulher. E essa autoridade significa intimidade de interdependência, sendo usada para sempre através da teologia para criação do casamento e definir a dignidade das esposas.

Nomear, nas tradições abraâmicas, é um ato poderoso, simboliza a soberania de um pelo outro. Afinal tem uma crença de que o nome que é dado é quase como algo místico, prevendo o futuro daquela pessoa. Pode ser feito por Deus, como foi quando Abrão virou Abraão, ou quando Adão renomeou Eva depois da Queda. Logo isso demonstra que os homens são como deus, podem nomear e renomear, compartilhando o mesmo poder machista.

Isso fica ainda mais evidente quando o mito afirma que é Eva, a sedutora, que fez com que a humanidade caísse na desgraça, só reforçando a subordinação da mulher como castigo divino. Mesmo que hoje existam diversas mulheres que tentam recontar a história bíblica com menos machismo, Gerda nos alerta que são feitas contra uma tradição enraizada e teologicamente consagrada. 

Nem mesmo a Bíblia tem certeza de como Eva & Adão foram criados. Tem a versão javista, mais antiga, que fala que Eva foi "criada a partir da costela de Adão" (Gen 2:18-25), enquanto a versão sacerdotal (Gen 1:27-29), mais nova, diz que "macho e femêa ele criou, então". Alguns intérpretes costumam dizer que a palavra "adam" usada na versão javista é minúscula no original, que significa humanidade. Por isso está equivocada as duas histórias da criação de Adão.

A criação da mulher pela costela de Adão é interpretada em seu sentido mais literal há milhares de anos, para indicar a inferioridade da mulher concedida por Deus – seja porque a interpretação recai sobre a costela como uma das partes “inferiores” de Adão e, portanto, um indício de inferioridade, seja pelo fato de Eva ter sido criada da carne e do osso de Adão, enquanto ele foi criado a partir da terra. Do ponto de vista histórico, a passagem tem recebido um significado simbólico profundamente patriarcal.

É claro que não tem nada de original nas histórias bíblicas, todas foram inspiradas em coisas que vieram antes. Gerda exemplifica muito bem ao citar mitos sumérios parecidíssimos, tem um jardim, fruto proibido, árvore da vida, e dilúvio. 

Nele a Deusa-mãe Ninhursag permitiu que oito plantas surgissem nesse jardim, mas os deuses não podiam comê-las. Porém Enki, o deus da água, se alimentou, e foi condenado à morte. Oito dos seus órgãos adoeceram, e quando uma raposa intercedeu para que ele não morresse, ela criou uma divindade para curar cada um dos seus oito órgãos.

Ao chegar à costela, ela disse: “A deusa Ninti deu você à luz”. Em sumério, a palavra Ninti possui um significado duplo, isto é, “regente feminina da costela” e “regente feminina da vida”. Em hebraico, a palavra Hawwa (Eva) significa “aquela que cria vida”, o que sugere a possibilidade de haver uma fusão entre a Ninti suméria e a Eva bíblica.

A divisão do trabalho na bíblia mostra ainda mais machismo: enquanto Adão trabalhará com o suor do próprio rosto, Eva dará à luz com dor e criará gerações. Embora a punição para o homem seja um fardo, a condenação da mulher se dá pela sua sexualidade. A punição vem através do seu corpo fértil. Mais uma vez julgamento as mulheres pelo aparelho reprodutor, como se elas não fossem seres pensantes tanto quanto os homens.

Quando os homens descobrem que é através da relação entre homem e mulher que a vida é gerada, tudo é distorcido de tal maneira apenas para lhes dar um papel de protagonismo: se gerar a vida era algo divino, agora diziam que era os homens que geravam a vida. A criação (divina) virou procriação (masculina). Até o nome semén, que vem de "semente" é como se dissesse que vem do homem a origem da vida, e não dá nenhuma dádiva genética à mulher, como se não existisse o óvulo. 

Isso parece algo distante, mas é algo muito contemporâneo. Existem diversos países onde apenas o sobrenome do pai é passado para os filhos. E existem países onde sobrenomes não existem, e sim "Fulano filho de Sicrano", citando apenas o pai, como se as mulheres não tivessem nenhuma função na multiplicação da espécie. A procriação é emanada de Deus masculino, abençoando a semente dos homens. Começou a se espalhar que humanos "nascem dos homens", algo que persiste até hoje na nossa sociedade.

Essa metáfora da semente masculina não é original da Bíblia também. É fruto de uma sociedade agrícola, onde a semente é colocada na terra para germinar.

A autora fala da circuncisão, que é o sinal da aliança dos homens com deus, para criar um sinal do corpo que diferencie seu povo. Uma aliança com apenas os homens, não com as mulheres. Eu, que sou um crítico à circuncisão, destaco esse trecho da Gerda:

A maior parte dos comentários sobre circuncisão é pouco elucidativa. Dizem que a circuncisão era muito praticada no Antigo Oriente Próximo, por razões de higiene, como preparação para a vida sexual, sacrifício e marca de distinção. Babilônios, assírios e fenícios não a praticavam, mas alguns povos egípcios e mesopotâmicos, sim.

Alguns analistas sugerem que a circuncisão tem a questão da higiene por trás, mas não faz sentido que justamente esse costume tenha sido escolhido. Por que não uma marca no tórax, testa, ou dedo? Talvez a resposta esteja na benção que deus dá para a semente masculina. Faria sentido usar como o órgão que produz a semente como símbolo dessa união com Deus. Isso mostraria a vulnerabilidade desse órgão e sua dependência e confiança em deus para a fertilidade. Isso só enfatiza que a capacidade de reprodução está ligada à graça de Deus e dada por ele ao homem.

E com o rebaixamento da mulher na criação, as imagens com seios da deusa da fertilidade amamentando a vida foi trocada pelo pênis circuncidado, simbolizando a união de homens com Deus. E quando perguntamos "Quem cria a vida?", vemos a resposta no Gênesis: "Jeová e o homem-deus criado por Ele". Apenas o homem, nenhuma mulher participa disso.

O fruto proibido dá o conhecimento do bem e do mal, e o sexual para a humanidade. Em outras palavras, o livre-arbítrio. Não havia mais a inocência para cumprir a vontade de Deus sem considerações morais. A questão sexual vem da inimizade entre a serpente e a mulher. A serpente sempre foi associada à deusa da fertilidade, e como a serpente é mostrada como o inimigo, é uma analogia também ao estabelecimento do monoteísmo, eliminando a deusa da fertilidade das outras religiões (a serpente). Logo a sexualidade livre e aberta da deusa da fertilidade devia ser proibida para a mulher — que só colocaria em exercício sua sexualidade na maternidade.

Fica implícito que, ao comer do fruto proibido da Árvore do Conhecimento, o casal humano iria almejar adquirir o mistério da Árvore da Vida, o conhecimento da imortalidade, que é reservado a Deus. (...) Almejar o conhecimento de Deus é a húbris suprema; o castigo para isso é a mortalidade.

E para que Eva seja honrada com o dom da vida, ela deve ser controlada pelo marido. E assim o patriarcado estabeleceu a lei, definida e reiterada por um suporte na lei divina — só que criada por homens para controlar mulheres, óbvio. Elas, que representavam o princípio do poder divino da criação da vida, agora tinham suas sexualidades definidas dentro dos limites da dominação patriarcal.

Já perto do final do livro, no capítulo dez, Gerda Lerner fala da questão dos símbolos. Pessoalmente nunca parei pra pensar na importância disso antes. Símbolos são coisas que representam outras. A cruz simboliza o cristianismo, é o elemento que foi escolhido para definir um determinado grupo de crença, no caso. E dentro do patriarcado, apenas homens são os que criam esses símbolos, enquanto a mulher apenas vive na limitação de sua sexualidade, vida-morte-natureza.

E quem manipula os símbolos, é quem narra a história. Usar símbolos para criação de textos, por exemplo, é a forma que o ser humano encontrou para alcançar a imortalidade — afinal até hoje revivemos histórias registradas por pessoas há séculos, ou milênios, por conta desses símbolos que criamos.

Imagina só se mulheres participassem, por exemplo, da criação dos símbolos religiosos? Será que haveria um Deus único, sem sua contraparte feminina? Será que Jesus só teria apóstolos homens? Será que somente homens fariam a mediação entre Deus e os humanos? Quando foi negado às mulheres a capacidade de interpretar e alterar o sistema de crenças religiosas, foram privadas de criarem símbolos que as representassem. Os homens que criaram os símbolos para as mulheres: a esposa fiel, a mãe amorosa, a objeto sexual, e por aí vai.

E isso não foi algo apenas feito pelas sociedades hebraicas, como visto a seguir:

Incapaz de aceitar a própria derrota, ele engole a esposa, Métis, para evitar que ela tenha um filho – e assim assimila seu poder de procriação. Então, o próprio Zeus dá à luz Atena, que nasce já crescida de sua cabeça. Ela passa a simbolizar as forças de justiça e ordem. Devemos observar aqui não apenas a dominação de deuses masculinos, mas a tomada do poder de procriação, que é semelhante às definições simbólicas que discutimos no Gênesis.

Essa falta de símbolo, de não ter voz para criar os mitos ou religiões, se dá também na história de Agamenon: quando esse volta de Tróia, ele traz a princesa troiana Cassandra, como concubina e escrava. Sua esposa, Clitemnestra mata o Agamenon quando ele retorna como vingança por ele ter matado Ifigência, sua filha (isso acontece antes da guerra, um sacrifício para que desse tudo certo na guerra de Tróia). Clitemnestra então é morta por seu filho, Orestes, vingando o pai. As erínias, deusas que castigam os crimes, decidem perseguí-lo pelos seus crimes.

Orestes diz que o ato dele foi justificado, e que sua mãe devia ter sido perseguida antes. No entanto é Clitemnestra que é perdoada, pois ao matar Agamenon ele não era sangue do seu sangue. Orestes então pergunta: "Mas eu sou sangue da minha mãe?", e elas furiosas dizem que ela o nutriu em seu próprio ventre, que só um verme repudiaria a própria mãe.

Mas quem decide o rolê é o deus Apolo (olha o absurdo):

Aquele que se chama de filho não é gerado pela mãe. Ela é apenas a ama que cuida do crescimento da jovem semente plantada pelo verdadeiro criador, o homem. 

E Atena ainda o apoia, dizendo: "Nenhuma mãe me deu à luz. Portanto, a alegação do pai e a supremacia masculina sobre todas as coisas têm toda minha lealdade". E assim as Erínias vão de escanteio.

Essa falta de participação das mulheres na criação dos símbolos usados na humanidade dá pra ver muito em Aristóteles também. Para ele a vida era criada na união do sémen, que trabalhava dentro da mulher a "catamenia" dela. Parece algo igualitário, mas temos que perceber que é sempre enfatizado que a contribuição da mulher é inferior à do homem, pois um suposto "sangue frio" das mulheres a impediriam de criar a vida por si próprias. Em uma analogia posterior ele diz que o homem é o artesão que molda a bola de cera, enquanto a mulher é apenas o material.

Sócrates, apesar de mais antigo, já dizia que não há motivos para propor uma educação pior para as mulheres, já que a única diferença entre os sexos "está apenas no facto de mulheres gerarem filhos e homens procriarem".

Quando o homem começou simbolicamente a ordenar o universo e a relação dos seres humanos com Deus em importantes sistemas explicativos, a subordinação das mulheres já era tão bem-aceita que parecia “natural” tanto para homens quanto para mulheres.

 E por fim Gerda une tudo o que foi dito em uma conclusão genial no último capítulo, o onze.

Ela fala algo muito interessante: onde a mulher tem mais poder econômico, ela pode ter mais controle sobre sua vida do que em sociedades onde elas não podem ter sua própria renda. Alguns antropólogos e historiadores chamam essa pequena melhoria de "liberdade" para as mulheres, mas isso ainda é muito superficial. Essas mudanças na sociedade podem melhorar e ser parte da emancipação das mulheres, mas não muda o patriarcado. Ele é muito mais profundo que isso.

O sistema do patriarcado só funciona com cooperação das mulheres. Citando-a mais uma vez:

Assegura-se essa cooperação por diversos meios: doutrinação de gênero, carência educacional, negação às mulheres do conhecimento da própria história, divisão de mulheres pela definição de “respeitabilidade” e “desvio” de acordo com suas atividades sexuais; por restrições e coerção total; por meio de discriminação no acesso a recursos econômicos e poder político e pela concessão de privilégios de classe a mulheres que obedecem.

São milênios em que as mulheres participam do processo de sua própria subordinação quando são constantemente taxadas de inferiores. E quando não conhecem sua própria história de luta e conquista, elas se mantêm ainda mais subordinadas. 

Melhorar isso não é apenas com a adição das mulheres, mas sim uma reestruturação radical de pensamento que aceite que a humanidade consiste em partes iguais de homens e mulheres, e que todos os pensamentos, experiências e insights de ambos sejam representados em toda generalização feita sobre seres humanos.

Tem uma parte do livro que eu adorei, onde ela fala o seguinte: quando o escravo estava lá sofrendo com trabalhos forçados, ele se apegava à memória coletiva — se lembrando do estado anterior onde ele tinha liberdade, e podia exercer seus rituais, símbolos e crenças que não fossem de seus senhores. Mas esse não era o caso das mulheres. As mulheres não tinham história, e assim viveram e acreditaram. E por não terem um passado, não havia alternativa de futuro. Não houve uma única tradição que reafirmasse a independência e autonomia das mulheres.

E onde não há precedentes, não se pode imaginar alternativas às condições existentes.

Dá pra perceber como a emancipação das mulheres é algo muito mais difícil do que se pensava? As mulheres sempre tiveram pouco tempo livre, pois havia a criação dos filhos e a servidão familiar. Já os homens, sem filhos pra criar ou casa para limpar, podiam se dedicar ao trabalho e estudos. O número de mulheres que tinham esse privilégio de estudo sempre foram as das classes mais abastadas, e com muita dificuldade conseguiam se impor em relação aos homens.

Pensar de forma abstrata é definir com precisão, criar modelos na mente e generalizar com base neles. Tal pensamento, assim nos ensinaram os homens, devem se basear na exclusão de sentimentos. (...) Que sabedoria pode haver na menstruação? Que fonte de conhecimento pode haver no seio repleto de leite? Que alimento para abstração pode haver na rotina diária de alimentar e limpar? O pensamento patriarcal relega tais experiências definidas por gênero ao domínio do “natural”, do não transcendente.

Até as mulheres pensadoras tinham que "pensar como um homem", pois era a única referência que tinham. Eram duas escolhas: ou viviam a vida de uma esposa e mãe, ou uma vida como pensadoras. Não havia uma junção de ambos. E quando a mulher escolhia pensar, tinha que viver à margem da sociedade, sendo ainda mais difícil receber aprovação ou exercer influência.

Elas não conseguiram construir o sistema pois por estarem excluídas do genérico lhes era tirado o direito de pensar de maneira universal.

Foi quando mulheres desafiaram o establishment masculino, escrevendo suas histórias, que elas deixaram de ser anônimas. Apareceram bruxas e fadas boas, não mais as versões masculinas que as rebaixavam. Elas começaram a trazer uma versão alternativa de mundo, criando símbolos da criatividade delas. Mas isso ainda é muito recente: os homens registram tudo desde o terceiro milênio a.C. Já as mulheres começaram isso agora, no século XIX.

Quando negamos as mulheres conhecimento sobre sua própria luta e conquistas é uma maneira muito eficaz de mantê-las subordinadas. E mesmo as que se revoltam contra esse sistema, são atrasadas pelas amarras do desconhecimento gravado em suas psiques. O desafio é a própria definição de si mesmas.

Homens criam as mais diversas maneiras de desqualificá-las. Quando a mulher pensa, é considerada "desviante" da sociedade. Até coisas como aparência, vida amorosa, ou opção sexual acaba se tornando uma arma para que homens usem para desqualificá-las. Para isso é importante que elas se voltem sempre umas às outras para encontrar apoio para que continuem. 

O pensamento revolucionário é sempre baseado na melhoria da experiência do oprimido. O camponês precisou aprender a confiar na importância de sua experiência de vida antes de ousar desafiar os senhores feudais. O trabalhador industrial precisou tomar “consciência de classe”, o afrodescendente precisou tomar “consciência de raça” antes que o pensamento libertador pudesse ser desenvolvido na teoria revolucionária. Os oprimidos agiram e aprenderam de modo simultâneo – o processo de se tornar o mais novo grupo ou pessoa é libertário por si só. O mesmo vale para as mulheres.

E para isso não tem jeito: precisamos, nesse momento de mudança na sociedade, permanecer centrados nas mulheres. E assim que elas criarem os símbolos, entenderem para onde querem ir, que sociedade querem criar, deixaremos o patriarcado para trás. Se ele teve um início, deve ter um fim também, precisamos evoluir. Se pergunta como seria definido o argumento se as mulheres fossem o ponto central.

No final do livro tem um apêndice maravilhoso com ótimas definições de termos, como opressão das mulheres, emancipação, machismo e patriarcado. Levei uma boa semana escrevendo tudo isso aqui, e não sei quanto tempo levarei revisando. Mas fica aqui tudo o de maravilhoso que pude aprender nessa obra magnífica!

Agora chega, ficou gigantesco! 

Comentários

Postagens mais visitadas