Livros 2024 #7 - A palavra que resta (2021)


Esse livro me causou um misto de sentimentos. Mas o que mais me chamou a atenção é a técnica de escrita do autor, Stênio Gardel. É alguém com tamanha maestria e familiaridade com a composição textual que me impressiona alguém arriscar numa escrita tão heterodoxa e conseguir acertar tanto! Uma linha do tempo que vai e volta, personagens bem construídos, e blocos de muita conversa — sem travessão, inclusive — mas nem um pouco confusos. Como ele faz isso?

Livros com temática LGBTQIAPN+ sempre me deixam com uma sensação de muita injustiça. E o livro de Stênio não é diferente. Ambientado bem no meio do sertão, conta a vida de Raimundo, um jovem que se apaixona por Cícero, e conta todos os desdobramentos de tal história de amor. A injustiça que sinto é o constante medo de ser descoberto, a vergonha que a família os imprime, e as consequências cruéis por ter nascido de um jeito que a sociedade inteira vai te repreender para toda sua existência.

Nessas horas eu penso que posso, por exemplo, sair de mãos dadas com uma eventual namorada, pois ninguém vai me olhar torto, ou ter preconceito por conta disso. Mas fico triste quando penso que nem todos podem fazer isso, e os alvos do preconceito são sempre a população LGBTQIAPN+. 

Imagina só se o pai de Raimundo ao descobrir a homossexualidade do filho apenas o dissesse: "Que bom que está amando e encontrou alguém filho! Desejo que seja sempre feliz, estarei sempre aqui quando precisar". Não apenas o livro teria quinze páginas, mas não geraria a dor da separação e abandono que Raimundo sente ao ser expulso de casa e ter que encarar o mundo sozinho, sem assistência alguma, por algo que ele não escolheu.

Stênio muitas vezes usa um grande bloco para um diálogo jogo-rápido entre os personagens. Pode parecer um pouco confuso, pois não há nenhum travessão, mas adorei essa solução! Não apenas tornou a conversa fluída, como também as divisórias estão lá, nas letras iniciais maiúsculas indicando que é o outro personagem quem está falando.

"Só viu a vergonha em mim, não viu o que era importante, o que eu queria tanto dizer pra ele, que me sentia diferente, um desencontro, um desconforme dentro de mim, É difícil explicar, pai, sabe se o senhor coloca umas pedras dentro de um copo e o que fica dentro, as pedras, não se aformam ao copo, fica sempre uns espaços, sem pedra ou sem copo, não é igual quando você enche um copo com água, que o copo fica todo preenchido, a água colada nas paredes do copo, sem sobrar um cantinho de ar que não tenha água, todo mundo parecido feito água, eu me sinto a pedra dentro do meu corpo, eu disse pra ele, mas disse com vergonha do que estava sentindo. Ele só viu a vergonha, porque a bicha é nojenta, sebosa, viu? Quem é que quer viver com vergonha dentro de casa?"

Raimundo logo no começo do livro mostra um elemento que é central do livro: uma carta, escrita pelo Cícero ao se despedir de seu amor. No entanto Raimundo é analfabeto, e decide, já na velhice, aprender a ler para enfim abrir a carta e descobrir o seu conteúdo. Uma coisa que, embora seja apresentada ali no começo do livro, só volta a ter protagonismo no seu final, onde passamos o livro inteiro nos perguntando o que estava ali naquela carta.

Independente de qualquer coisa, essa carta, que é sempre guardada com muito carinho, carrega em si só muito mais conteúdo do que qualquer texto escrito nela poderia ter: ela serve de porto-seguro para onde Raimundo consegue, em pensamento, voltar aquela época de amor mais simples e puro, como também o catapulta para seu próprio crescimento como pessoa, buscando uma carreira, criando novas amizades, e tendo a garra para se alfabetizar já na velhice (o que não é fácil, definitivamente).

Apesar de ser um livro se passando em uma região tão empobrecida e conservadora do nosso país, muitas vezes eu tinha que fazer um esforço pra imaginar a trama se passando lá. Existem algumas partes onde Raimundo vai morar na cidade, mas todas aquelas falas tão cheias de preconceito pareciam tão cotidianas, mesmo eu morando em São Paulo. 

Isso só mostra como ainda estamos muito longe de criar um mundo seguro, onde pessoas LGBTQIAPN+ sejam amados e respeitados pelo que são, que possam expressar seu amor sem restrições ou censura, e que possam ter todos os privilégios que nós héteros temos. A caminhada pra essa igualdade ainda é longa, mas não podemos deixar de nos esforçar jamais.

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