Livros 2024 #8 - A disciplina do amor (1980)


Ainda me faltava ler um da Lygia. Foi num encontro do nosso clube do livro que a Paula me emprestou "A disciplina do amor", que li esse mês. Acho que a primeira coisa que me chamou atenção na Lygia é como a escrita dela é tão concreta, e ao mesmo tempo tão profunda. Parece até um pouco formal e distante, mas as entrelinhas dela trazem à tona tantas coisas que eu amei desde a primeira linha. Acho que li o livro em quatro dias, de tão bom que ele é.

Esse é um livro de contos da Lygia. São experiências pessoais, vivências, ou mesmo divagações e histórias que ela ouviu. Existem tanto capítulos bem curtinhos, com nem dez linhas, como uns bem mais longos.

Encontro um antigo colega na livraria. Estranhou o título que vou dar a este livro, mas por que Disciplina do Amor? O amor lá tem disciplina? Perguntou e deu a resposta: amor disciplinado nunca foi amor, pode ser método, arrumação no sentido de botar tudo direitinho nos lugares, cálculo, mas amor?! Pois amor não era ilogicidade? Transgressão?

Mas uma coisa que me impressionou na Lygia é essa tamanha profundidade que ela é capaz de expressar nas suas palavras. Eu sou um fã da Elena Ferrante, mas posso dizer com certeza que enquanto a Ferrante vai uma vez, a Lygia foi e voltou cinco vezes no mesmo tempo. Em outras palavras, é como comparar um mestre (Lygia) com um aprendiz com muito potencial (Ferrante). Tudo o que a Lygia escreve toca lá no nosso âmago, sabe? Provoca umas emoções muito profundas, é uma coisa linda de se admirar!

Logo no começo ela conta histórias bem antigas, da época em que ela era estudante universitária, com sua gatinha Iracema. Existe uns depoimentos bem tristes sobre a luta dela contra Herpes-Zoster (quando o vírus da catapora se reativa no organismo) e do quanto isso a incomodava em vida. Ao mesmo tempo existem muitos capítulos de reminiscências da infância, e das muitas viagens que Lygia fez pelo mundo em sua vida.

Nasci junto com o dia. Então me lembrei que já tinha nascido na véspera e vi que não ia nascer mas ressuscitar. Duas mãos se colocaram firmemente nas minhas costas e me empurraram fora da cama, Vai! A estrada comprida. Opaca. A ventania levantou meu cabelo e disse dentro do meu ouvido que era preciso calçar sapatos de ferro.

Lygia Fagundes Telles sempre foi à frente do seu tempo, e existem vários capítulos onde ela escancara o quão machista é a sociedade em que vivemos. E, mais uma vez, é de se perder muito a esperança na sociedade ao ver que muitas das reivindicações da Lygia ainda são pautas da luta feminista de hoje. Quarenta e quatro anos e as coisas que ela fala continuam tão atuais, infelizmente.

Existem muitas crônicas que eu adoraria falar aqui, mas vou escolher apenas algumas. Em um texto chamado "Satanificação", ela identifica todos os detentores dos sete pecados capitais dentro da nossa sociedade de forma genial. 

São figuras do nosso dia-a-dia, como os motoristas no trânsito serem os detentores da ira, os da soberba serem as pessoas que não gostam de aglomerações, os da inveja gostarem da palácios burocráticos, os da luxúria sendo as pessoas que andam a noite buscando prazer a qualquer custo, os da avareza sempre com medo de perder algo, preferindo viver às escuras do que desperdiçar acendendo a vela, e os da gula e preguiça, que ela agrupa juntos, o primeiro sendo o que nunca se satisfaz mesmo vivendo nos bairros ricos, e os da preguiça achando que até o amor é algo laborioso:

Ele não odeia nem ama, a paixão é laboriosa, exige fervor e o presuiçoso nunca esquenta. É morno. Não se define nem define: contorna. Na imobilidade se defende dos prazeres da cama e da mesa. (...) Vem a mosca obumbrada, pousa na sua face e ele afasta a mosca com um movimento branco mas quando ela volta uma segunda vez ele deixa ficar deixa ficar deixa ficar...

Tem um conto lindo dela, chamado "Os sapatos eram de ferro", onde ela começa contando como ela lembrava do dia em que havia nascido, mas ao vir ao mundo existem vários homens, todos ameaçadores, misteriosos, que vão a conduzindo para diversos locais, e lhe causando medo. Achei esse conto com tanta profundidade! Eu o li umas três ou quatro vezes e ainda acho que faltou muito para absorver o tamanho de complexidade que há nas palavras da Lygia.

Um outro que eu amei foi "A mulher de Omsk", onde a Lygia conta um perrengue que ela passou em uma viagem ali na região da Sibéria quando botões de seu casaco estouram, e ela encontra uma mulher que, mesmo não entendendo uma palavra do que a Lygia falava, consegue ajudá-la a achar uma linha e agulha para que ela pudesse costurar o botão de volta. É lindo!

No texto "As frases ideais" ela cita Simone de Beauvoir, sobre o facto de que somente o trabalho fora do lar é capaz de ajudar na realização psíquica e social da mulher. Mas aí a Lygia nos dá um choque de realidade, trazendo isso ao contexto brasileiro, dizendo que enquanto não se superar a necessidade de uma empregada doméstica no Brasil, ela não acredita que haverá um feminismo aqui. Coisas para se refletir, tanto na necessidade de se tirar as mulheres, muitas vezes negras, e eleva-las da condição de empregadas domésticas através de estudo e oportunidades, como também um puxão de orelha aos homens, para que aprendam que os afazeres de casa devem ser divididos.

"Minha caneta estourou", disse. "Estava aqui no bolso e de repente fez puff! não é estranho?" e mostrou a nódoa azul no peito do suéter vermelho. Aconselhei-a, não usasse mais a caneta naquele bolso bem na altura do coração, o calor ali era excessivo, capaz de fundir acrílicos, metais — todas as canetas acabariam explodindo.

Um outro dela que me chamou a atenção foi "O direito de não amar", onde ela conta de um rapaz que, com o coração partido havia até ameaçado a vida da mulher que ele amava, mas depois de se acalmar, e ver que ela está feliz com o homem que ela escolheu, ele afasta tais pensamentos e começa a desejar que ela seja feliz, independente com quem seja. É muito bonito, até o texto que começa agressivo, termina de uma maneira plácida, como se a própria autora fosse se acalmando. Excelente!

E, por fim, o texto que dá nome ao livro, "A disciplina do amor", até bem famoso, contando a história de um soldado que tinha um cachorro que ia sempre esperá-lo voltar do trabalho para brincar com ele e ser alimentado, até o dia em que esse soldado é chamado para lutar na Segunda Guerra e não volta mais. Mas o cachorro continuava o esperando, todos os dias, no mesmo lugar. Lembra muito a história do Hachiko, e impossível não derrubar lágrimas lendo essa bela história que ela escreveu.

Como minha primeira impressão com a Lygia, tenho que admitir que foi sensacional. Ela é muito mais do que eu sequer pudesse imaginar, uma autora com tanta sensibilidade, e ao mesmo tempo bastante sobriedade, unindo dois opostos de uma maneira tão singular, já me fez virar fã dela! Quero agora conhecer o resto das obras dela. Agora sempre fico pensando na Lygia, e quando não penso nela, fico torcendo pra alguém falar dela para que eu possa falar mais um pouquinho sobre ela!

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