Livros 2024 #9 - Ioga (2020)


Eu me perguntava o que aconteceria quando no clube do livro encararia um livro que não fosse pra mim. Cada um tem uma vivência, existem temas que são complicados para algumas pessoas, mas eu sempre me perguntava qual tema seria o que mais me abalaria — a ponto de eu tentar tirar tudo isso de ruim de mim escrevendo — e depois de anos nessa dúvida, enfim encontrei meu calcanhar de Aquiles literário: livros sobre depressão.

"Ioga", de Emmanuel Carrère não é exatamente sobre depressão. Ele tem uma primeira parte que eu achei excelente, sobre sua experiência em um retiro de Ioga. Essa parte eu devorei em poucos dias, me prendeu muito: afinal o cara é um iogue com muita bagagem, além de um artista marcial em Tai chi chuan. Inclusive muitos dos conceitos de meditação ali expostos eu já conhecia do budismo, que eu já pratico há 14 anos, até mesmo coisas bem avançadas que eu só aprendi nos meus estudos para chegar no grau de monge (sim, não parece, mas eu sou até certificado nisso).

Sem perceber que ia acontecer, eu comecei a chorar, e um pouco depois, quando voltamos para nosso quarto no hotel Cornavin, disse a ela: "Você sabe por que comecei a chorar agora há pouco? Não porque você vai embora, nisso a gente dá um jeito, mas porque pensei que você vai morrer. Não era o medo de que você sofresse um acidente, apenas a constatação de que um dia, como todo mundo, você vai morrer.

Só que o retiro é interrompido com apenas alguns dias, pois na mesma época aconteceu os atentados à sede do Charlie Hebdo, em Paris, que vitimizou amigos de Emmanuel Carrère, como o jornalista Bernard Maris, e os cartunistas Cabu e Wolinski. Eu não sou de procurar a vida pessoal dos autores, mas na reunião do clube do livro descobri que o Emmanuel Carrère é uma pessoa de uma família de renome da França, tá aí a explicação dele andar com tanta gente influente.

Meu problema foi mesmo na terceira parte, a "História da minha loucura". Meu deus do céu, que parte sofrida. Nela o autor discorre sobre sua depressão, incluindo tentativas de dar cabo de sua vida, e internação para se tratar. Não vou negar que achei muito triste essa parte, pois esse tipo de vivência unido com a capacidade ímpar dele saber escrever muito bem, era quase como reviver todas as dificuldades que sempre senti nessa constante luta contra a depressão.

Depressão é uma luta injusta. A gente a vence um dia, mas perde os outros seis pra ela ao longo da semana. Atualmente estou na minha segunda onda de depressão, eu tive uma bem forte quando eu tinha meus 18-20 anos, aproximadamente (tem até alguns registros aqui no blog). Essa parte foi uma das coisas mais doloridas que eu li nos últimos anos. Como os depoimentos dele são tão fortes, eu tinha vontade de chorar e botar aquilo tudo pra fora, mas outro aspecto nefasto da depressão é essa tristeza ficar tão lá dentro da gente que a gente não consegue nem colocar pra fora pra aliviar. Eu queria poder me acabar em prantos como pessoas normais fazem, mas eu não consigo.

Não conseguir mais cumprir tarefas básicas da vida e principalmente não conseguir mais imaginar que alguma outra coisa vá acontecer. É a característica da depressão: não é possível acreditar que um dia as coisas vão melhorar. Os amigos bem-intencionados lhe dizem "você ai sair dessa" e, estraçalhado, você até se ressente deles: dizer isso é tão distante da realidade...

Ler isso que o autor escrevia me fazia tanto reviver todas as dificuldades, sabe? É como se eu fosse confrontado com tudo aquilo o que nunca mostrava para ninguém: afinal ninguém no mundo tem a ver com sua condição, estão todos vivendo suas vidas, com seus desafios e dádivas da vida, e raramente alguém vai entender o que você sente. Mesmo na minha família a coisa que eu mais ouvia era que "faltava força de vontade" de minha parte.

No entanto quando se está na depressão é igual como Carrère diz: não nos importa. Não me importa se o mundo vai acabar com um meteoro, ou com uma pandemia. Não me importa se haverá um amanhã, ou se vou morrer dormindo. Nada mais faz sentido, pois a paixão pela vida se esvai. E a gente começa a entrar em uma espiral descendente onde a gente vai mergulhando cada vez mais em sentimentos ruins, de que as coisas nunca vão passar. E a dor chega em um nível tão grande que a gente só quer que isso tudo acabe. Que o sofrimento tenha um fim.

E muitas vezes essa vontade leva um depressivo a atitudes mais drásticas. Eu cheguei a tomar esse tipo de atitude lá atrás, quando eu tinha apenas vinte anos de idade. Não é preciso dizer que, por eu estar aqui escrevendo hoje, eu não consegui ser exitoso. Mas a depressão é como um mar em ressaca, não se tem controle do tamanho da onda. E quando ela vem com tudo, quando a gente fica ali naquela linha tênue, entre tomar a decisão ou não, mesmo que a gente não se afogue, ou seja levado pelo mar, a onda invade o calçadão da praia e bagunça tudo. 

E vivemos observando o mar, sem saber se a ressaca dará lugar ao tsunami — a derradeira atitude — destruindo tudo ou não.

E quando eu lia o autor falando da própria experiência, era muito triste reviver tudo aquilo dentro de mim. Quando eu penso que o mar deu uma acalmada, eu vejo que é um equilíbrio muito mais frágil do que eu pensava. Eu não pensava que um livro poderia me abalar tanto. Haviam partes que eu lia dez ou quinze linhas e desistia, e tudo o que eu queria era apagar aquelas palavras de Emmanuel Carrère da minha mente.

Mas ao mesmo tempo, para a gente que tem depressão, existem alguns lapsos de luz que alguma coisa, muitas vezes aleatória, que passaria desapercebida por qualquer outra pessoa, mas isso desperta uma esperança na gente. E ainda bem que o Carrère faz isso em algumas partes, tem uma parte super bonita de uma conversa dele com um psiquiatra, onde ele lhe conta que pensava em tirar sua própria vida. O psiquiatra diz que embora essa opção não seja bem vista, ás vezes é a melhor opção. E a resposta dele me emocionou muito:

Se tem uma coisa que um terapeuta de qualquer escola não pode dizer é exatamente isso: que o suicídio é a melhor opção. Depois ele completou: "Ou, então, você pode viver". Entende por que eu digo que, no fim, ele era um mestre zen? Esta frase: "Ou, então, você pode viver" atuou em mim como um curto-circuito psíquico e me possibilitou não apenas sair da depressão mas viver os dez anos plenos e felizes que se seguiram.

Ainda existem algumas cenas bem pesadas depois dessa fala, sobre o tratamento e internação dele para se tratar, mas não vou negar que essa parte é aquela luz no fim do túnel em meio um capítulo que, pra mim, foi pesadíssimo. Eu até comentei na reunião do clube que esse tipo de aleatoriedade da vida real que pega a gente deprimido, e dá uma erguida no espírito, acontece de vez em quando. Como a que senti quando vi o excelente vídeo da neurocientista Rachelle Summers.

Na época da pandemia eu estive prestes a cruzar essa linha tênue da vida e morte muitas vezes. Não apenas por conta do isolamento social, o medo de infecção, mas também pela profunda crise de fé que eu tive. Como sou uma pessoa religiosa, senti que os Budas enviaram o clube do livro que participo até hoje. Foi (e ainda é) muito mais que apenas uma reunião mensal para conversar sobre uma leitura em comum. Foi o que me fez querer continuar nesse mundo muitas vezes durante momentos que eu não queria.

A quarta parte do livro é sobre uma estada dele na ilha de Leros, onde ele ministra um curso de escrita, e conhece Frederica, uma estadunidense que logo estreita laços com Emmanuel, além dos jovens Hamid, Atiq, Mohamed, Hasan, refugiados de origem afegã e paquistanesa que estão em busca de uma vida melhor na Europa. Essa parte é bem mais leve que a anterior, embora o autor continue na sua melancolia característica. Mas é um capítulo que fala da vida comum, da busca pela cura da depressão, e de vivências dessas que a gente não esquece na vida, deixando boas marcas na memória.

E, por fim, a última parte, também achei muito boa. Começa falando da morte repentina de seu editor, e um de seus melhores amigos, e se questionando sobre as coisas boas que pessoas deixam em nossas vidas. No caso de Emmanuel, foi o incentivo do amigo a fazê-lo aprender a digitar com todos os dedos da mão — o autor só digitava com os indicadores.

Parece algo besta, mas a questão não é o valor, se vai ser algo útil ou não, mas a marca que a pessoa nos deixa. Sobre as coisas que acabamos aprendendo a gostar ou hábitos que adquirimos com algum amigo, parente, ou namorada, e que fica na gente, mesmo depois que acaba a relação. Ás vezes essa coisa pode ficar disfarçada de saudade daquela relação, onde tentamos ressuscitar dentro de nós o que aquela pessoa foi, ou simplesmente foi algo adicionado à nossa vida por conta da convivência que não conseguimos mais deixar de fazer.

A melhor coisa que pode acontecer na vida é um encontro assim. (...) Esses vinte por cento são os únicos e verdadeiros seres humanos felizes do mundo. Quando a vida concede essa graça, é preciso agarrá-la, não soltá-la, pois nada é mais precioso e é pouco provável que ela se apresente de novo se você tiver a infelicidade ou a estupidez de deixá-la passar: a vida depois de um erro desses é inevitavelmente uma vida amarga, uma vida corrompida, eu teria muito a dizer a esse respeito.

Eu enquanto lia não conseguia deixar de lembrar de uma menina que fiquei com ela pouquíssimo tempo, lá em 2009, eu tinha dezoito e ela tinha vinte e nove. Mas como eu estava todo apaixonadinho, alguns hábitos que ela me ensinou ficaram: até hoje eu só uso um guardanapo quando faço uma refeição. Dobro, acho uma parte mais limpa, e fico me limpando apenas com um único. Apenas um mesmo, pois ela dizia que a gente tinha que pensar nas árvores que serviram para fabricar aquele papel, poupar a natureza.

Hoje eu sei que não faz muita diferença, afinal os 1% mais ricos desse injusto mundo poluem mais que 66% do restante da população. Mas eu mantenho esse hábito, uma coisa pequena, que não sei o porquê. Eu nem converso mais com ela, cada um seguiu sua vida. Apenas ficou. Como o hábito de digitar com todos os dedos que o falecido amigo de Emmanuel tanto o incentivara a evoluir.

Emmanuel Carrère escreve bem. Pegar um tema tão genérico, que poucas pessoas conhecem, e conseguir fazer um negócio tão interessante, saber traduzir tudo aquilo tão bem, me impressionou muito. Existem diversas partes ali do cotidiano que me encantaram demais, tocaram muito minha alma. E, ao menos nesse livro, ele o faz sem o uso de parágrafos, uma técnica que eu só vi Jefferson Tenório fazer com tanta maestria (mas o nosso brasileiro é bem melhor que o francês, sem dúvida!): passar de um assunto para o outro quase como um degradê, interligando tudo com suavidade.

E apesar de eu não ter gostado, e passado muito mal enquanto o lia, é um livro que eu indico totalmente. Acho muito valioso que pessoas que não tenham doenças mentais possa entender como funciona a cabeça de alguém assim. Obras assim derrubam preconceito. Mas se a pessoa está lutando contra depressão, ou possui outras condições, eu sugiro que a pessoa passe longe desse livro: é um poço sem fundo, como é mostrado na ilustração da capa.

É um livro excelente. E embora eu evite ao máximo criticar qualquer obra literária, tenho que ter a maturidade de ser sincero: não é pra mim. E tudo bem! 

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