Emprego se arranja outro. Mãe só se tem uma.
Fico pensando ás vezes no que faz as pessoas perderem a qualidade humana dentro de si mesmas. Parece que a primeira ação nessa direção é deixar de considerar o outro um humano, o compará-lo a animais, como israelenses fazem com palestinos, por exemplo. Mas um caso bem próximo de mim, bem mais sutil, entre uma mãe e filha conhecidos me fez pensar que essa desumanização é algo na verdade muito mais próximo do que pensava.
Semana passada uma conhecida veio desesperada, pois a mãe dela havia tido um mal súbito e teve que ser internada de emergência. Parece que a mãe dela já teve outras vezes esse problema — um sangramento na região do esôfago, que a fazia vomitar e defecar muito sangue.
O estado da filha era lamentável. Com a cara inchada de tanto chorar, mal conseguiu dormir, preocupada com a mãe. Só que naquela semana ela já tinha marcado uma viagem a trabalho, onde ela teria que fazer importantes apresentações para a diretoria da sua empresa, e ela veio pedir a opinião se deveria ir ou não.
Cada pessoa é diferente, e eu duvido que eu, vendo minha mãe hospitalizada em estado grave, conseguiria viajar, ficar longe dela, sem poder visitá-la, e menos ainda conseguiria me concentrar para realizar qualquer ação, tomado pela preocupação pelo estado da minha mãe.
Achei sinceramente que ela cancelaria a viagem para ficar em São Paulo para visitar a mãe, mas ela decidiu não cancelar a viagem e ir assim mesmo.
Nesse momento eu pensei: eu entendo que o emprego é importante, óbvio, mas aquela situação foi inesperada e emergencial. Mesmo se o chefe reclamasse — o que eu acho improvável, pois se trata da mãe — eu não teria sangue de barata para deixar minha mãe internada num hospital longínquo enquanto estou em outro estado numa viagem a trabalho.
Emprego a gente consegue outro, mas mãe só temos uma.
Mas ela não seguiu esse pensamento. Fui junto de outra pessoa visitar a mãe dela no hospital, que estava do outro lado da cidade, para ver a evolução de seu diagnóstico. Felizmente o quadro dela foi melhorando, foi feito uma cauterização no ferimento, e as coisas foram melhorando. A filha ao menos perguntava sobre novidades sobre o estado dela, mas poxa vida, era pra ela estar lá fazendo isso, cuidando e preocupada com sua própria mãe.
O que mais me deixou puto mesmo foi que o retorno dela estava agendado para a sexta-feira daquela semana. Se tudo corresse bem sua mãe teria alta naquela sexta, ou mais tardar no sábado. Com ela aqui poderia ir lá buscar sua mãe quando tivesse alta, mas ela ligou avisando que não conseguiu voo para a sexta, e voltaria apenas no sábado. Algo muito estranho, pois como assim a empresa remarcaria o voo desse jeito?
A resposta veio nas redes sociais. Essa menina gosta muito de se exibir nas redes sociais. Enquanto a mãe estava lá internada numa ala de um hospital público, compartilhando uma sala com diversas outras pessoas doentes, sozinha, a quase trinta quilômetros de casa, com visitas escassas, e nenhuma visita da sua própria filha, esta estava de um chique vestido azul, jantando em um lugar pomposo, depois tomando café no local que mais gostava, e ostentando tudo isso nas redes sociais.
Nessas horas tenho medo de levantar essas questões e parecer machista. A gente sabe como a sociedade patriarcal funciona, onde as mulheres que são as ensinadas a ter cuidados com os outros — sejam como esposas, mães, ou até mesmo cuidadoras de carreira — e não homens. Eu vejo meu pai, por exemplo, nunca ele mexeu um único dedo para fazer uma massagem na minha mãe quando ela sentia as terríveis dores dela. Mas minha mãe sempre tinha que cuidar quando meu pai ficava doente, mesmo se ela também estivesse mal.
Minha mãe sempre me ensinou a cuidar dos outros, e por isso ser tão natural para mim, achava que todo homem também era ensinado a isso, mas conforme fui amadurecendo, vi que infelizmente esse tipo de criação que eu tive era a exceção. Mesmo quando minha mãe tinha a necessidade de estar internada, era eu quem ela queria que ficasse com ela, pois eu saberia a levar para o banheiro, ajudá-la a tomar banho, servir sua comida, ajudar a se vestir, e tudo mais.
Me parecia que essa filha devia ter muito sangue de barata para curtir a viagem com a mãe dela aqui, sozinha, adoentada, e ainda ter a cara de pau de postar isso nas redes sociais para todo mundo — incluindo sua família — ver como ela estava lá aproveitando a vida ao invés de voltar logo para ficar com sua mãe. Claramente ela não estava nem um pouco preocupada com sua mãe, pois como teria cabeça para curtir aqueles passeios daquele jeito?
No final das contas sobrou até pra mim ir buscar a mãe dela no hospital, pois no dia que ela devia voltar ela disse que não estaria de volta a tempo. E ainda levou algumas horas desde que sua mãe chegou em casa até que ela chegasse do aeroporto.
E então as coisas voltaram aos seus eixos. Mas até quando? Por ter uma mãe com tantos problemas de saúde — de diabetes, até pressão alta — ela não faz muito para ajudá-la. Queima o dinheiro em viagens e baladas, como se não tivesse responsabilidades. Isso sem contar o filho, que é muito mais criado pela avó adoentada do que a filha, que quando confrontada diz: a gente tem que aproveitar a vida, gente!
Mas aproveitar a vida sem responsabilidades, do que vale se for assim? Parece que ela não tem noção de que para que ela possa "aproveitar a vida" tem toda uma rede de apoio ao seu redor que faz sua comida, limpa sua casa, cuida de seu filho, para que ela possa fazer essas coisas.
Esse tipo de coisa me deixa muito revoltado.
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